31 de julho de 2011

LINHAS DE UMA VIDA


uma alma, só uma alma,

num pingo de um então,
entroncada em calma e cerzindo os agoras,
cabisbaixa o ego esta alma, nessa horas,
quando perdida se sente num mundo atada,
num mundo atado de nós cegos,
atormentada de sossego e deitada em pregos
não vê o passado, não vê o presente,
só o hoje, só o hoje,
e por vezes foge com pernas chumbadas
em nulas coordenadas,
por vezes desperta, sonha,
por vezes desperta de sonhos,
confusa de confusão,
obtusa de dogmas,
contusa de regras,
reclusa de normas,
oclusa de ideias é um espelho esta alma,
barrada em vírgulas reflectidas de pontos,
sem entendimento, sem entendimento,
não se entende, e não se entende,
o que que quer? o que não quer?
não sabe o que sabe, mas, curioso!,
sabe o que não sabe.

30 de julho de 2011

ONDE ESTÁ A VERDADE? (soneto)



Milhentas frases com verdades sondem…
Verão mil ocas, e algumas tão veras, 
Outras mui mansas, muitas como feras
Retalham os véus que as clarezas escondem.

Milhentas frases sem verdades que as rondem, 
Prenhes de engano viveram mil eras, 
Gordas de anseio, mas luzindo esperas… 
Mil erros, mil, sem certezas que os mondem.

Milhentos profetas apregoando o falso, 
Mas crentes fazem de um magote cego 
Semeando em vidas alheias percalço.

Milhentos profetas negando o mundo,
Porque perderam da verdade o apego 
E acham mais cómodo do falso o fundo.

28 de julho de 2011

QUEDA, A - Albert Camus (1972) - viagem ao centro da alma


Um dos livros mais surpreendentes que já li (bem, por esta altura já devem estar enfastiado de ler aqui esta frase) foi A Queda, de Albert Camus, que já foi o Nobel da Literatura 1957, porque o livro parece ter sido escrito por mim. Peraí, não me entendam mal, não estou a reclamar o talento do autor, nem a comparar o génio, mas porque senti que o autor estava a analisar-me nessa obra.

A Queda, começando do fim, é um livro obrigatório e que ninguém nesta vida devia passar sem ler, é um livro necessário porque leva a uma auto-análise e parte dele parece uma versão alargada do Poema em Linha Recta de Álvaro de Campos. Eis a sinopse:

Um advogado, que costumava ser um indiferente, por um acaso qualquer, viu uma mulher a suicidar-se no rio Sena. Não tendo reagido para ajudar a mulher, preferindo esconder-se por isso não ser o seu problema, é perseguido depois pelo fantasma dela, a sua própria consciência. Resolve então mudar o ser e ganhar a redenção, mas é aí então que perde o controlo de si próprio, acreditando que existe uma melhor maneira de utilizar a vida, mas não sabendo qual é essa maneira.

Não acredito que exista algum ser humano que leia A Queda e não se identifique com o protagonista. Camus debruça-se sobre pequenos vícios, idiossincrasias e costumes das pessoas, extirpa-os e revela-os ao sol. Creio que esteve a fazer uma auto-análise, usando o advogado como uma imagem para não parecer autobiográfico, no entanto, ao mesmo tempo, a analisar o mundo todo, o que faz com uma maestria incrível, pois ainda faz com que esse nosso autoconhecimento seja divertido e vejamos como ridículos somos.

A Queda, por verificar o homem, consequentemente verifica o seu meio (não o físico, mas o social: o ideológico, o cultural e outros subjacentes) e, portanto, foca sobre diversos aspectos éticos: o homem consigo próprio, o homem com o outro e o homem e o outro com terceiros (a comunidade ou a sociedade) e, ou, os terceiros com o homem e o outros. É certo que o homem é um ser social, mas será realmente que o inferno são os outros (como disse Sartre)?, será que os outros é que nos corrompem? A Queda atribui a cada um de nós a tarefa de fazer o mundo um lugar melhor, pois somos todos culpados. Aliás numa passagem que quem já leu o Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, de certeza se lembrará, ele disse que até Cristo não é inocente, visto que foi salvo de ser morto, enquanto centenas de criança morriam por sua causa. No entanto, como vamos fazer deste mundo o melhor? Receio que o protagonista não sabe explicar, mas sugere que devemos fazer uma auto-análise.

Camus manifesta n’A Queda uma pouca fé na humanidade? Eu sei lá, no entanto duvido. Como em todos os seus títulos que li, parece procurar pelo sentido da vida ou pela sua ausência, se n’O Estrangeiro o protagonista era um indiferente, n’A Peste um altruísta, aqui, n’A Queda, é um indeciso, no entanto em comum todos os protagonistas têm a mesma característica: introspecção.

A Queda é uma leitura profunda, que dá muito o que pensar, mas ao mesmo tempo, tal como só os grandes autores conseguem fazer, a queda é uma leitura divertida e aparentemente superficial, que provoca bons risos e se lê de uma assentada. Eu li A Queda em diferentes fases da minha vida, a primeira, talvez com 16 ou 17 anos, quando me veio a pancada por filósofos, e embora estivesse no começo da minha aprendizagem de ler dentro dos livros, gostei logo. Dos títulos de Camus é o meu preferido (por ser o que mais está ao meu alcance mental) e é o personagem com quem mais me identifico. 

25 de julho de 2011

MEMÓRIAS DE LÚCIFER - CAIM E ABEL - A Guerra do Fogo - pt.2


THEN,on CAIM E ABEL:



NOW:

Samael no entanto era contrário à ideia; havia rumores de que tinha sido ele que engravidara Eva e era por isso mesmo que Azrael queria o filho de Eva morto. Azrael era a favor da pureza racial e não queria que misturássemos as espécies, principalmente fora do laboratório, onde o nosso controlo era ultralimitado.
um sábado qualquer - carlos ruas
Os humanos e todos os animais terrestres tinham sido criados a partir do caldo orgânico que incubamos durante séculos no núcleo Terra, misturado com o ADN de Eloim em pessoa (ele era o dono do projecto, por isso não houve objecção), e a cada geração houve remisturas, para conseguir a espécie perfeita. Passaram milhões de anos até chegarmos ao homem; milhões de anos na cronologia do núcleo, considerando as voltas que dá em redor ao seu sol, mas para nós, de uma linha temporal diferente, só decorreram seis dias, Adão e  Lilith foram feitos no sexto dia – o projecto não se chamava ainda Lilith, mas sim Adama. Porém o projecto Adama foi suspenso, porque tinha maiores quantidades de ADN da nossa espécie do que da espécie que antecedeu a Adão; ou seja, era muito mais perfeita que Adão, muito mais ainda do que Eva viria a ser, e tinha bastante das nossas características e potenciais. Deus preferiu deixá-la em criogenia e fazer Eva para acompanhar a Adão.
Ou seja, os humanos tinham muito das nossas características, mas uma coisa é seleccionarmos no laboratório as capacidades genéticas para lhes atribuir e outra é deixar o acaso fazer isso através da reprodução natural. Por que Samael tinha dormido com Eva ninguém inquiriu, éramos livres no Inferno o suficiente para cada um tomar a sua decisão, desde que isso não prejudicasse o colectivo. No entanto, para Azrael era bestialidade, e por isso era totalmente contra, embora por respeito nunca tivesse chegado a mencioná-lo a Samael. Os nossos arquivos dizem que havia muito prazer nas relações sexuais, que se libertava uma enorme quantidade de dopamina para o cérebro, mas quando os nossos cientistas sintetizaram dopamina com maior intensidade e duração do efeito, que podia ser aplicado por outras vias sem a necessidade do vigor físico característico do sexo, o sexo foi pouco a pouco perdendo o interesse. E quando começamos a mesclar os géneros, ficando mais andróginos (oh! por Deus!, amo os gregos!), o sexo ficou ainda mais desnecessário. Por isso não posso dizer que tenha sido apenas a necessidade do prazer sexual que fez com que Samael se metamorfoseasse em Adão mais vezes para enganar a Eva. 
Sim, meus amigos, a primeira vez de Eva no Paraíso não tinha sido com Adão, fazia parte do nosso plano para que houvesse expulsão. Queríamos a expulsão para que houvesse equilíbrio de novo no Paraíso, pelo menos para os nossos irmãos, alguns que se juntaram a nós queriam-no por inveja ao sucesso de Eloim, outros por vingança à sua ineptidão diante dos abusos de Adão; eu, pelo menos, queria-o porque acreditava que Adão poderia vir a ser melhor do que nós. Eu desenhei os projectos todos, sabia da sua potencialidade, acreditava que podíamos criar um ser infinitamente superior a nós, porém Eloim não estava disposto a ir por aí, acagaçado, dizendo ser anti-ético, e que o Conselho Supremo podia tirar-lhe a licença. Eloim amava a sua criação, amava-o e ama-o mais do que tudo, mas amava a sua posição no Concelho e a promoção que tinha acabado de receber era um sinal de que podia vir ser melhor posicionado.



Eu estava a marimbar-me para a Ética, não via razão para que uma criação tão maravilhosa e com pernas para andar por si fosse limitada por fios que titereiros puxariam como se não fossem mais do que brinquedos, foi por isso que mexi na fruta. Para Eloim, as frutas da Árvore Morta eram simples objectos para testar a obediência de Adão, (pelo menos assim julgava eu) não chegou a saber que as tínhamos sabotado, inserindo nelas um composto que reagisse com o ADN de Adão, libertando capacidades adormecidas, despertando mais neurónios, e quebrando o bloqueio evolucionista que Ele tinha instalado. Só que eu não contava que Deus também tinha trapaceado e mudado o código de bloqueio, razão porque não consegui muita melhoria. Todavia, poucos dos que foram comigo para o inferno sabiam dessa parte do meu plano.
Entretanto, voltando para trás, Samael era contra a ideia de deixar morrer Eva, porque, embora não o confessasse, ele amava a Eva; todavia, fazia todo o sentido o que Azrael defendia, Lilith combinado com Adão podia levar a humanidade a patamares mais elevados do que Eva e o acaso (Lilith e Eva seriam a melhor combinação, mas infelizmente por serem do mesmo género não havia hipóteses de reprodução. Adão era muito inferior às duas, mas tinha ego de uma criança. muito grande, mas frágil, e como era muito querido por Eloim, tínhamos sempre de lhe dizer que era superior à Eva). Azrael também não sabia do meu plano de fazer da humanidade uma espécie superior à nossa, ele pensava que a sua evolução podia ser controlada, e desenhava bloqueios constantemente, porém eu adulterava esses seus bloqueios. Já bastava os bloqueios de Eloim, os quais não conseguíamos ainda quebrar, receava que a combinação desses com os do Azrael, pudesse vir a criar uma involução tornando os humanos mais estúpidos e selvagens, o que seria um perigo visto que lhes desbloqueámos a capacidade cerebral. Porém, eu era contra começarmos a matar a criação por mera eugenia, preferia deixar que eles se adaptasse e se tornassem mais complexos por si mesmos, assim, a eugenia far-se-ia naturalmente conseguindo sobreviver apenas os capazes e melhor adaptados. Para Samael isso também não tinha sentido, porque preferia capacitar todos os humanos, para evitar que tivessem que concorrer para a sobrevivência, pelo menos até descobrirmos a Pedra Filosofal. À Pedra Filosofal chamávamos o código para hackear o pior bloqueio de Eloim, a finitude da vida humana. Na verdade a fruta da Árvore Morta estava projectada para bloquear a renovação celular depois de algum tempo, mas Deus não me tinha informado disso, de modo que eu pensei que tinha ali apenas uma fruta normal. Já nem sabíamos o que tínhamos feito aos humanos jogando assim com eles.
Devíamos, no entanto, tomar uma decisão, deixar morrer Eva ou ajudá-la a dar à luz. E não havia muito tempo, porque para poupar a energia que precisávamos para o laboratório, desligáramos a suspensão do tempo, e ele decorria da mesma maneira para nós e para os humanos. Não podíamos dar-nos ao luxo de mantê-lo a funcionar como no Céu se faz, porque o Céu fora projectado tendo isso em conta, mas o Inferno foi uma alternativa que criamos quando decidimos abandonar o Céu, e não temos aqui tantos recursos assim. No entanto, não julguem que por o tempo passar mais lento no Céu, eles conseguem saber das coisas antes de nós. Não, isso não acontece, apesar de toda a rapidez com que vivemos aqui, eles sabem das coisas exactamente no momento em que acontece, não é como se viajassem no tempo. Entretanto, por não podermos ligar a suspensão temporal para reunir a Assembleia Infernal, e porque não nos restava muito tempo, tínhamos que decidir entre nós o que fazer e assumir as responsabilidades depois perante o conselho. Tínhamos de votar entre salvar ou deixar Eva morrer.
Não vou fingir suspense, porque certamente vocês já terão lido a Bíblia na altura em que vou libertar este diário, e sabem que Eva vive. Azrael foi escolhido para ajudar a Eva, embora não confiássemos nele, mas como Samael estava numa experiência que lhe obrigava a usar um dispositivo que lhe impedia de jauntar, ou seja, de teletransportar-se, e eu não podia ir, receando deixar os laboratórios sem supervisão, não restou outra alternativa. No entanto, esperávamos que ele tomasse a decisão certa e agisse em função do colectivo, e não fosse dar apenas numa de Anjo de Morte e substituir Eva por Lilith, visto serem as duas parecidas.   
         



Ali na Terra. As contracções de Eva aumentavam cada vez mais e os gritos dela aumentavam proporcionalmente. Quanto a Adão, bem ele estava alo, estirado no chão, junto à porta, desmaiado. O choque ultrapassara os seus nervos, mas Eva aguentava firmemente, quer dizer, tão firme quanto as suas pernas permitiam, estava em pânico, e não sabia se devia ficar sentada, de pé ou deitada, porém a certa altura, já não tinha dúvida, intrigava-lhe que aquela coisa fosse sair por um orifício tão pequeno, mas sabia que ia sair por ele, tudo indicava a isso. As suas pernas estavam bambas, o que a fez ficar de joelhos. Olhou para onde o covarde de Adão tinha caído, mas não o encontrou, ficou intrigada, mas não era a altura para dar atenção a Adão, ou melhor, não parecia ser, porque:
- Aaaaaddãooo!, seu filho da puta! Nunca mais vais meter essa coisa em mim!... Aaaadaaaãooo, grande corno…
Bem, considerando a pudicícia daqueles para quem escrevo estas memórias não vou reproduzir as falas de Eva que seriam capazes de fazer corar a uma profissional de um bordel.
De repente Adão entrou pela porta, muito determinado e aproximou-se de Eva, sussurrando: calma, querida!, calma querida!, foi segurar-lhe a mão e com técnicas precisas de respiração e relaxamento, ajudou-lhe a dar à luz à coisa. No mesmo instante em que Eva pôs os olhos sobre a coisa, algumas amaras do seu coração desmancharam-se, ela sentiu-se como uma borboleta a metamorfosear-se, sentiu que não era apenas a coisa que tinha nascido, mas ela também tinha. Aquele espaço no coração que parecia todo preenchido por Adão, de repente alargou-se de uma maneira extraordinária, e ela percebeu que ele era apenas um ponto nesse espaço, que a coisa quase o ocupava todo. Nunca julgou que tinha tanto lugar na sua alma para tanta gente. Adão lhe pôs a coisa no braço, ela resolveu que aquilo era seu filho, e que, realmente, agora eram mesmo deuses, porque conseguiram gerar uma criatura viva. Eva deitou o filho sobre o seu peito, enquanto Adão lhe sorria e lhe acariciava a cabeleireira.
- Não é lindo?, perguntou ela.
Adão não falou, apenas sorriu, concordando com a cabeça. Então, junto à cama, debaixo de uns lençóis tirou uma seringa, sob o olhar estranho da Eva, e picou Eva antes que ela pudesse reagir, pelo que tudo o que ela pôde fazer foi: O que é isso, querido?, para logo a seguir adormecer. 



24 de julho de 2011

QUERO SER (rondel)

Prenhe de sonhos e desejos, 
Mas hipotecando a vontade... 
Muita sede, que tal os brejos?
Ai, que nego a propriedade!

Reclamando autencidade
Co' águias, minhocas, em tejos,
Prenhe de sonhos e desejos,
Mas hipotecando a vontade. 

Mesmo efeito, vários manejos,
Só a luz ao longe do há-de...
Ai, diabos, vade retro, vade,
Serão nulos outros ensejos,
Prenhe de sonhos e desejos?

23 de julho de 2011

in JUSTIÇA (soneto)


«Ninguém julgue para não ser julgado»,
Um homem sábio assim recomendou,
Então o maior dos erros emendou.
Mostrou que o melhor é ser-se guiado

Pela inocência que nos foi entregado.
Um belo conselho nos ofertou:
«Quem ver que nunca na vida pecou
Que o outro seja por ele julgado,

Que se faça do primeiro a atirar
A pedra do pecado sobre alguém,
Que seja do primeiro a castigar

Quem por ele condenamento teve».
Mas se é livre do pecado ninguém
Quem no mundo julgar os outros deve?

22 de julho de 2011

PLANETA DOS MACACOS, O - Pierre Boulle (1963) - retrato da nossa sociedade


O Planeta dos Macacos chamou-me a atenção pelo título, pensava que era uma sátira à nossa sociedade e que os macacos seriam nós... e era mesmo uma sátira, mas não do tipo pastelão (?), e eu nem esperava que fosse ficção científica, ou seja, surpreendeu-me incrivelmente, porque em boa verdade a minha expectativa em relação a ele era muito baixa. 


Chorei quando fechei o livro, tamanho foi o choque, senti-me esmagado pelo desfecho, senti-me desorientado e perdido, tinha passado a noite acordado, não conseguindo largar o livro, e passei boa parte do dia seguinte vegetando, sentindo como se o mundo estivesse para acabar, não conseguindo desligar-me da história. Apenas mais dois livros, que eu me lembre agora, me impressionaram dessa maneira, embora não com tanto impacto: Judas, O Obscuro, de Thomas Hardy e 1984, de George Orwell (que vão ganhar a sua homenagem neste meu espaço); e uma menção honrosa para A Virgem Guerreira de Alberto Moravia. Li O Planeta dos Macacos praí umas quatro vezes na mesma semana, porque precisava de cortar os laços com ele.

Não conheço nenhum outro trabalho de Pierre Boulle, no entanto O Planeta dos Macacos é mais que o suficiente para fazer dele um dos meus maiores ídolos da literatura e posicioná-lo junto daqueles que li muitas obras e gostei de todas ou de quase todas.

O Planeta dos Macacos abre com um casal a fazer vela no espaço, aproveitando os ventos solares. Só essa parte já mostra que a sociedade evoluiu extraordinariamente em termos tecnológicos e serve então para situar a acção. Esse casal encontra uma garrafa a vagar no espaço e apanha-o, lá dentro encontrando um diário, escrito por um famoso jornalista do Séc. XX, Ulisses Mérou. Qualquer um que tenha lido Odisseia, sabe quem foi Ulisses e portanto entende a razão por que o nosso Ulisses aqui foi assim chamado.

Ulisses Merou participara numa viagem experimental intergaláctico e fora parar a uma planeta governado por macacos, preso e enjaulado como um animal, usa a matemática para estabelecer comunicação com uma veterinária macaca desse planeta (temos aqui um louvor à ciência), o resto, têm mesmo que ler.

O Planeta dos Macacos é um louvor à ciência, ao mesmo tempo uma admoestação contra um desenvolvimento científico desregulado do qual resulta pessoas cada vez mais estúpidas e mais preguiçosas, que confiam todo o trabalho à ciência, acomodados e procurando acomodar-se ainda mais. O livro foi escrito em 1963, porém é tão atemporal que parece ter sido escrito ainda na semana passada, porque as situações que ele apontou estão cada vez mais gritantemente irrisórias e são mais fáceis de apontar hoje. Bom, é claro que se ele tivesse escrito o livro hoje, em vez de falar do domínio dos animais, falaria do domínio das máquinas, mas o fundo da questão, de qualquer maneira continua o mesmo, porque não se trata de quem domina, mas do porquê de nos deixarmos dominar.

A sociedade dos macacos n’O Planeta dos Macacos está mais ou menos assim dividida: Os Orangotangos, que impõem e dispõem da sociedade conforme lhes dá na gana, conservadores e receosos da mudança, preferindo governar com dogmas e leis obtusas - aqui, na Terra, os religiosos e governos moralistas e conservadores; os Gorilas, que são a força bruta e mantedores da lei e ordem, poucos propensos a pensar, e são também a aristocracia do planeta, usados pelos primeiros como garantia da sua superioridade – acho que nem preciso estabelecer uma comparação com aqui; os chimpanzés, que são o avant-garde da sociedade, aqueles dispostos a pensar e que apostam na ciência como a melhor maneira de desenvolver a sociedade – aqui os cientistas, visionários (no bom sentido), artistas, etc, todos aqueles que lutam contra os dogmas, fazendo com que a sociedade se molde ao zeitgeist; e por último, o resto da macacada – a massa, amigos, a massaMuitos outros vícios e problemas sociais são referidos no livro.

O Planeta dos Macacos fecha soberbamente, com um muro no estômago, ao mostrar-nos que já nem havia notícia de que a espécie humana chegara alguma vez a ser inteligente, o que não vou explicar como para não spoilar tudo mais do que já fiz.

O Planeta dos Macacos é um livro que deve e merece ser lido por todos, não só por ser profético (não literalmente falando), como porque precisamos mesmo de analisar a nossa sociedade e o rumo que está a tomar, principalmente hoje que estamos tão preguiçosos que precisamos de uma calculadora para sabermos o quociente de 29 a dividir por 7, e nem conseguimos escrever uma carta à mão, porque não tem corrector automático. E na arquitectura estamos a construir casas domóticas para não termos de sair da cama ou diante da televisão. Não vou prolongar mais, porque, amigos, estamos já a viver o planeta dos macacos.

20 de julho de 2011

X-MEN, O INÍCIO, 2011 (X-Men - First Class)


A minha veia nérdica levou-me a ver os filmes mais nerds que andam pelo cinema, e de todos escolhi um para falar, e procedendo a um processo de selecção, comecei por afastar o Transformer 3, por não ser propriamente instrutivo, mas diversão pura, resumindo-o em: De qualquer maneira Michael Bay sabe dar um espectáculo e a sua estereoscopia é a melhor que já vi, em termos perspectográfico, no cinema. Depois o Lanterna Verde (da DC COMICS) e o Thor (da MARVEL) que, superficiais e imberbes, não aquecem nem arrefecem, preferindo antes os seus respectivos desenhos: Lanterna Verde – O Primeiro Voo e Thor – Contos de Asgard, que serviram para introduzir o pessoal menos nerd ao universo fantástico destas personagens.

Escolhi falar de X-Men ­– O Ínicio, pois levou-me a ver de novo a série toda. E adianto desde já que é a melhor e mais consistente série de super-heróis no cinema, e o filme em causa é o melhor da série.

Não é preciso conhecer o universo de X-Men para gostar do filme, visto que os personagens foram bem introduzidos e os que têm um impacto substancial no desenvolvimento da história foram suficientemente bem caracterizados, tirando os coadjuvantes que estiveram ali mais para mostrar o fantástico desse mundo e a sua diversidade. Nesse sentido, conhecer o universo X-Men da BD, ou mesmo dos filmes anteriores, considerando que o reboot criou desfasamentos, apesar de pegarem na abertura do primeiro filme de série com o magneto no campo de concentração quando puto, para abrir este, pretendendo dizer com isso que houve uma continuidade cronológica, tal foi falso. Aliás, a cronologia dos três X-Men, do Wolverine, e deste não batem, nem entre si, nem com o universo do BD, mais uma razão para separá-los. Essa é a parte que os fãs odeiam, por exemplo (spoiler! Spoiler!) vermos aqui Darwin, o mais poderoso herói Marvel, com cabelo e a morrer às mãos do Rei Negro, ele que sobreviveu na BD à própria Hela (a deusa da morte), é um tanto irritante, mas separando os contextos, aceita-se, pois não se pode seguir tudo à risca considerando que são universos diferentes, o cinema e o papel.

trailer

Agora vamos ao filme em si. X-Men em qualquer universo, BD, cinema ou televisão, tem tido uma constante: a questão da diferença. Não é possível ver X-Men sem estabelecer parâmetros com as várias minorias da nossa sociedade e com a maneira como elas são tratadas. E quando tratamos mal a alguém não será justificável o seu ódio quando voltado contra nós?

Foi o que X-Men - O Início tenta mostrar. O vilão dos outros filmes, Magneto, aqui é mostrado de um ângulo menos parcial, quando ainda tentou acreditar na esperança de um mundo único, quando ainda estava disposto a morrer pela humanidade. Tirando Shaw, o Rei Negro, os restantes personagens, pelo menos os principais, não podem ser considerados nem imorais, nem amorais, mas simplesmente lidaram com uma escolha: seguir o princípio darwiniano da sobrevivência do mais forte, como a lição do Professor Xavier no início diz sobre os neandertais, ou acreditar numa utopia que vai contra as evidências. Nem se pode culpar ao Mutante, nem aos governantes que o levaram ao ponto onde ele chegou, porque se queremos sobreviver ao mais forte temos de lhe anular as vantagens. Mas isso quando a questão é vista num contexto de guerra. Por isso, o sonho de Xavier parece o mais equilibrado, não é preciso uma guerra, uma eliminação forçada, mas sim uma convivência pacífica, deixando a natureza seguir o seu curso. 

Não falei tanto e nem fui ao fundo como gostaria, , mas X-Men - O Início é um filme que agradará a todos, seja se forem em busca de aventura, seja de um filme sério, porque foi bem doseado e é perpassado por várias outras questões, como o do potencial que não desenvolvemos gastando a nossa energia em tentar encaixar em contextos mais cómodos, etc, e etc, aspecto que foi muito bem desenvolvido por Mística e Hank, e pela relação fugaz entre os dois, e também que explica a dedicação da Mística ao Magneto na primeira trilogia. 

É um filme que recomendo e, para mim, é claro, o melhor filme de super-heróis, sendo muito mais sério que a trilogia X-Men, e muito mais divertido que a primeira metade do primeiro Homem-Aranha de Sam Raimi (a metade boa).


P.S.: Alertado por Fernando Borges, que escreve Reflexão Geral, venho assim retractar, X-Men é o segundo melhor filme de super-heróis, Watchmen é o primeiro. 

18 de julho de 2011

A BELA ACORDADA


Ele apagou o candeeiro e acomodou-se na cama, fechou os olhos e preparou-se para adormecer. Mas não o conseguiu fazer porque o candeeiro do outro lado da cama, onde dormia a esposa, acendeu. Ele murmurou qualquer coisa, tentou ignorar a luz acesa, mas não pôde; definitivamente não conseguia dormir com a luz acesa.

– Por favor, querida, apaga-me essa luz.
Já não aguentava mais essa situação de dormir com a luz acesa. Passava sucessivas noites em branco, por causa da mania que a esposa tinha de ler à noite, e tinha sempre de se levantar cedo para ir presidir o conselho. Ficava aí a cabecear o sono, sem se poder concentrar no trabalho. Há tempo que vinha a tomar decisões erradas e consequentemente a perder a popularidade. O povo já não o via mais como justo e ponderado, mas como inepto e caprichoso. Tudo por causa do raio da sua esposa. Maldita a hora em que fui beijá-la, devia tê-la deixado a dormir. E os contos ainda têm a sem-vergonha de dizer: E viveram felizes para sempre.
Só nos primeiros anos é que viveram felizes, quando ainda sentia muito amor por ela, quando ela ainda era uma novidade, quando ainda conseguia aguentar a falta de sono dela. Desde que acordou a Bela Adormecida com um beijo, ela não voltou mais a pregar olho e ele também não, pois andava mal dormido. Era compreensível que ela tivesse essa bruta insónia, mas esperava que isso passasse com o correr do tempo. Durante os primeiros anos, sacrificava o seu sono para falar com ela, fazendo-lhe companhia. Mas já não aguentava mais. E ela ainda por cima tinha esse maldito hábito de ler à noite.
Já tinham falado sobre isso. Se ela não quisesse dormir, pronto, o problema era dela, mas que deixasse aquele maldito candeeiro apagado. No entanto, não tinham chegado a lado nenhum com essa conversa, porque ela começou a dizer que ele já não gostava mais dela. Mas como queria ela que ele gostasse se já nem conseguia manter-se acordado. Até parece que tinham trocado as funções, passara ele a fazer de Belo Adormecido, enquanto ela andava a acordá-lo sempre com beijos. Ela nunca dormia e a falta do sono não lhe causava nenhum problema, mas ele precisava dormir. E ademais, ultimamente ela comportava-se de um modo estranho, andava sempre amuada, sem disposição para aturar ninguém. Tudo isso porque ele se esquecera do seu aniversário. Não era bem esquecido, só que ele não lhe fizera festa nenhuma, limitara-se apenas a dar-lhe um beijo e a dizer: Parabéns, querida. Estava desconfiada que ele tinha outra e que fora por isso que não tivera tempo para lhe comprar um presente. Ele, entretanto, só se comportara daquela forma porque no ano anterior, ao trazer um bolo de aniversário enfeitado com cento e dezanove velas para a bela soprar e um extintor para prevenir um incêndio (cento e dezanove velas não é brincadeira), ela armara um escândalo dos diabos, chorando e perguntando se ele julgava que o seu aniversário era uma missa satânica para ter tantas velas. Na realidade ela sentira-se chamada velha, tinha apenas dezanove anos e não todas aquelas velas. Mas ele contara com os cem anos que ela tinha andado a dormir.
Da última vez que ele falou com ela sobre o facto de apagar a luz, ela ameaçou-o de que ia mudar de quarto. Passariam a dormir em quartos separados. Mas ele nem queria ouvir falar disso. Sabia que ultimamente não estavam a comportar-se como casados e tinha medo que ela se fosse meter com criados ao mudar de quarto, porque ele aí não sentiria barulho nenhum, porque depois de tanto tempo de insónia ao lado dela, passaria a dormir como uma pedra. Negou a proposta nem ela tinha acabado de abrir a boca. E desconfiava da insistência dela de levar essa ideia avante. Ele nunca lhe tinha dito nada, mas às vezes sentia uma pontada aguda no coração ao pensar no número de príncipes que tinham passado na floresta durante aqueles cem anos e que não tinham conseguido acordá-la com um beijo. Quem sabia se eles tinham tentado apenas beijos para acordá-la.
– Não vou apagar coisíssima nenhuma. Não vês que estou a ler? O incomodado que se mude. Se quiseres vai dormir no sofá.
É! Era sempre assim. Já não fazia uma semana sem que brigassem por uma ninharia qualquer. Ela estava malcriada, pior do que daquela vez que tinham ido ao baptismo da sobrinha. Ela tinha vestido o seu melhor fato, a roupa de que mais gostava, tinha-lhe sido dada pela sua fada-madrinha. Ele estava a esperá-la no salão, e ao vê-la não pôde não dizer, mas da forma mais carinhosa possível: Querida, nós vamos é para um baptismo. Carnaval foi na semana passada. Que falta de gosto e de senso crítico é que ele tinha. O seu melhor fato é que ele estava a chamar de traje de Carnaval. Não podia haver pior que isso, ele estava a dizer que ele não tinha bom gosto para vestidos. Ele queria que ela fosse vestida de quê? Que se vestisse sem senso de estética, como todas aquelas mulheres que andavam com as pernas, o peito e as costas à mostra? Era isso que ele queria? Não, ela fora bem educada, ensinada a conservar-se; não se iria expor a essa sem-vergonhice de vestir pedaços de panos.
Mas isso não significava que não gostava desses pedaços de pano, tinha muitos deles que o marido lhe dera de presente e vestia-os de vez em quando, no quarto, sozinha, mirando-se ao espelho, mas não estava ainda à-vontade para vesti-los, e julgava que o marido poderia vir a tomá-la por oferecida ao começar a usá-los, pois alguns deles eram muito indiscretos e isso era contra a sua educação. Na verdade, como podem ver, ela estava cem anos fora de moda.
– Ai não? – retrucou ele.
– Ouviste bem, julgo eu.
Essas discussões já eram demasiado frequentes, tinham que ver uma forma de acabar com elas. Talvez a saída estivesse mesmo em deixá-la ir para um quarto à parte. Talvez só isso pudesse acabar com a discussão. Só que ele não conseguia aceitar de bom grado essa mudança, temia que ela o começasse a trair, e pior ainda, com os criados. Se ela o fosse trair com alguém a ele, talvez não se importasse, mas não havia ninguém com esse estatuto. Ele era o príncipe e em cima dele não havia ninguém. Não iria suportar se ele o traísse com um criado. Tinha de haver uma solução.
Afinal sempre se encontra uma solução. Como daquela vez que ele andava a fazer sujeira na casa-de-banho quando ia evacuar. Ele tinha compreendido que ela não estava acostumada a casas-de-banho modernas, visto há cem anos atrás as coisas não serem como naquela altura. Andava com o quarto empestado de mau cheiro. Mas chegaram a uma solução, não sem alguma dificuldade, pois tinha vergonha de lhe dizer que fazia apenas porcaria. Mascava na cabeça uma forma de ir ter com ela, mas ela reconheceu primeiro e veio pedir ajuda, pois já via que não conseguia enviar nada pelo ralo no chão. Aí ele ajudou-a e ultrapassaram o problema da melhor forma possível.
Mas, desta vez, essa história insónica parecia não ter uma saída fácil. Talvez a única solução seja o divórcio. Se os contistas tinham escrito e viveram felizes para sempre, que o mudem para e viveram felizes por algum tempo e dois filhos e no fim ponham e depois divorciaram-se.
– Eu vou para outro quarto, quer queira quer não – disse ela, arrumando os livros e apagando a luz. – Se preferes ignorar-me para sonhar com a Camila, tu lá é que sabes. Amanhã eu vou passar férias no Egipto.
– Diana, deixa de ser malcriada que não irás para outro quarto nem para Egipto algum. E, aviso-te, toma muito cuidado para não irritares a mamã, porque podes vir a ter um acidente de automóvel. Pois eu só quero o divórcio, pensou. ■


17 de julho de 2011

LÁGRIMAS (poema)


São lágrimas que descem pela face, rolando,
Sem então, sem vez, sem quando,
Fontes inesgotáveis de sofrimento,
Cristais líquidos de tormento.

Lágrimas que permanecem,
Quentes, esperança arrefecem,
Adornando a fronte inocente
De gente, pobre gente,
Gente que sente no âmago o fel da vida
Que subindo rola pela descida
Que come o pão embebido no suplício
Que tem na boca sorrisos fulgentes de sacrifício
Que tem no estômago apenas o vazio
E que nas suas veias corre o tenebroso frio
Obrado pelas quentes lágrimas.

São lágrimas de angústias,
lágrimas de sofrimento,
de da vida indústrias,
indústrias de tormento.
O homem já tem os olhos túmidos,
mas os sonhos húmidos
De esperanças de alegria,
e de sorrir perpétuo um dia.
Será que nunca mais esta fonte vai secar?
Será que este tormento nunca mais vai parar?


As lágrimas estão descendo de forma contínua
Compassadas por uma melodia longínqua,
melodia melancólica
De uma vida sem pesares e sem cólicas.


São lágrimas que descem, fontes de sofrimento,
Lágrimas tecidas e compiladas de descontentamento.
Será que este choro nunca mais vai calar?
Será que esta fonte de dor não vai secar?


16 de julho de 2011

POSSUI-ME, DISSE ELA (soneto)



Possui-me, sussurou ela pra mim,
Envolve-me toda num forte abraço,
Não serei amarga, ser-te-ei melaço,
Prometo dar-te euforia sem fim.

Possui-me, disse em tom de querubim,
Usa a língua e provoca-me um fogaço,
Penetra-me c'alma, ata-me um laço,
Mais florido que Éden dou-te um jardim.

Cara princesa, foi o que a ela falei,
Crê-me, pra ti não sou bom amante,
A outra o meu fogo a dar intentei,

Pois por ela e pra ela o planeta gira,
Mas tu pra todos és tão perturbante...
Perdoa, ó Verdade, se escolho a Mentira.

15 de julho de 2011

TARTARUGA E A LEBRE, A - A REVANCHE DO SÉCULO, 2008 (Unstable Fables: Tortoise vs Hare)


Era uma vez uma lebre e uma tartaruga que se desafiaram para uma corrida. A lebre, muito rápida, em três tempos já estava perto da meta, deixando a tartaruga a comer poeira, porém, gabarolas como era, achou que ainda podia tirar uma soneca antes de acabar a prova. O resultado: ficou a dormir, enquanto a tartaruga, nos seus passos lentos, a ultrapassou, cortando a meta. Sim, basicamente é isto. A fábula é bem antiga e quem não a conhece deve ser da geração Toy Story, ou seja, viu mais desenhos de que leu livros ou ouviu contos.

Quando vi o título fiquei curioso, A Tartaruga e A Lebre - A Revanche do Século fiquei curioso, uma história tão simples e tão básica, que truques poderão torná-la interessante? Bem, e não é que não a fizeram interessante.

Eis a sinopse: 15 anos depois da famosa corrida, acontecimento que teve um destaque televisivo, a Lebre, ou devo dizer, o Sr. Lebre que ainda não conseguiu recuperar-se da trágica decisão de ter dormido no momento da corrida, e o Sr. Tartaruga, que ainda puxa lustro à sua vitória, ainda mantêm uma rivalidade constante, metendo toda a família ao barulho. E eis que há uma outra corrida na cidade e os dois resolvem participar com os seus filhos, o Sr. Lebre para dar a revida, o Sr. Tartaruga, para mostrar que o seu lema devagar e constante, com o qual ganhou a vida, continua a ser o mais indicado e que vai ridicularizar o vizinho… sim, os dois são vizinhos.

Ri-me o filme todo, situações engraçadas não faltaram. Tem umas piadas adultas que, no entanto, são bastante inocentes, nada como a erecção de Lorde Farquuad ao ver a imagem de Fiona no filme de Shrek.

trailer

Ainda aproveita para ensinar que a dança é o remédio para o mal do mundo. Não é para ser tomado à letra, mas a verdade é que o mote é: faz amor e não a guerra, um tanto hippie, porém real. Os conflitos nascem da competição. Não sou contra a competição, no entanto, a maior parte é supérflua e alteia mais barreiras do que as derruba; por exemplo, a competição para ser o mais rico do mundo, resulta em empobrecer milhares para chegar a esse ponto. Os vizinhos competem, os países competem, irmãos competem entre si, quando se se unissem mais facilmente chegariam a um objectivo que pudesse satisfazer a ambos e manter o clima de dança. Houve um momento no filme que se ouve uma frase como esta: bomba neste país. A frase, casual e deslocada, mostra no entanto o descontentamento e o cepticismo em relação à melhoria deste planeta e a unidade e harmonia. Hum… o meu texto está muito animado e com uma, sei lá, ingenuidade utópica marcante, e devo isso ao filme, mérito dele.

Ainda temos referências ao mundo televisivo, aos cameramens que filmam desgraças sem ajudar, como se fossem documentaristas da National Geographic, dos paparazzos, e da incidência da média na vida privada que eleva à catastrófica um simples problema de uma figura pública. Algumas piadas ácidas e situações que remetem para o estado actual da coisas,  não entendíveis pelos mais desatentos, porém que fazem a boa graça do filme.

Quanto à parte técnica, A Tartaruga e A Lebre, tem uma animação é bem fluída, mas a modelação parece bem tosca, dando a entender que os produtores não tinham muito dinheiro (bem, também o filme foi direito para o vídeo), pois pareciam mais bonecos de plasticina do que modelos computorizados. Gostei bastante do filme e é bem divertido, faz rir e aguenta bem os seus setenta minutos. Um bom filme para ver com as crianças.

13 de julho de 2011

MEMÓRIAS DE LÚCIFER - CAIM E ABEL - A Guerra do Fogo - pt. 1


THEN, ADÃO E EVA - O Mundo Perdido:



NOW:

CAIM E ABEL - A GUERRA DO FOGO

O nascimento de Abel não foi muito complicado, quer dizer, em termos psicológicos. Adão já estava melhor preparado e não fora apanhado totalmente de surpresa, mas de qualquer maneira ainda não estava muito bem preparado, nem ele nem Eva, mas ela desenvincilhava-se melhor, porque tinha comprado o instinto de Adão quando ainda estavam no Paraíso e, por isso, percebia mais rapidamente as coisas.
Depois do susto que tiveram aquando do nascimento de Caim, ela insistiu que começassem a observar os animais à socapa, para perceber como eles faziam depois de darem à luz. Dar à luz? Termo engraçado, achava Adão, só porque ele estava na tua barriga, achas que ele estava na escuridão? Adão não via o sentido disso, a sua razão, a única coisa que Eva não quis comprar, era muito fria para compreender metáforas nascidas da emoção, mas compreendia bem a emoção do amor que Eva causava nele, por isso aceitava quase todas as sugestões dela. Também fazer o quê? Ou era aceitar logo ou ouvi-la o dia todo a martelar-lhe o cérebro com solilóquios, aliás, mesmo quando aceitava logo ainda tinha de ouvir duas horas de justificação do porquê. Quando Caim chegou… não era bem de Caim que o queria chamar, mas de Caí, porque ele veio de repente, só que Eva não gostou e queria chamá-lo de Caiu de Mim, mas ele achava ridículo, por quê de mim, se supostamente, ainda não tinha a certeza, ele também tinha parte na chegada do menino. Foi assim que decidiram suprimir algumas letras e ficou apenas Caim. [Ah!, minha amiga, esqueça os hebreus, não se falava hebraico no Paraíso, mas português]. Como estava a dizer, a chegada do Caim apanhara-os aos dois de surpresa. Vou fazer um flashback.

carlos ruas - um sábado qualquer


Uaaaaashhhh! Flashback:
– Porra, Eva, por que estás a mijar na cama?
– Não estou, querido ­– disse Eva, levantado o cobertor. – Ah! Porra, estou mesmo. Adão estou a mijar mas não estou a mijar. Isto é água. Adão, estou a deitar água. Por que estou a deitar água, Adão? Não é possível, nem sequer estou excitada. E esta quantidade é absurda. Estou doente, Adão? Por que não respondes, Adão?
– Porque…
– Adão, será que estou a morrer. Já me dói a barriga. Ai! Será que essa coisa na minha barriga vai arrebentar-me? Ela vai sair arrebentando a minha barriga, como naquele filme de Aliens, ai, meu deus.
Adão sempre esteve curioso sobre como aquele filho iria nascer. Sabia que a mãe não morria, por que já tinha observado algumas fêmeas de animais grávidas e depois visto as mesmas com uma cria, sem estarem mortas, porém nunca sentira curiosidade em observar o momento em que as crias vinham para fora. A única ligação que ele via para barriga de Eva era a boca, e não conseguia imaginar como é que uma coisa tão grande poderia sair pela boca. Por isso quando Eva falou em morrer, Adão entrou em Defcon -1. Não sabia o que fazer, ficou histérico, e tudo o que conseguia era amplificar os gritos e gemidos de Eva. Quando ela gritava de dor, Adão berrava a plenos pulmões. Foi a primeira vez que chamou por Deus desde que saiu do Paraíso.

Lá no Céu. [Esta parte fui eu mesmo que o contei a Lúcifer; apesar das diferenças ainda continuávamos (e continuamos) amigos, afinal estudámos na mesma escola desde crianças].
- Gabriel, o que é que se passa?
- Adão o chamou, Pai. – Depois da partida de Adão, Deus, talvez por saudades, decidiu que todos deveriam chamá-lo de Pai.
- Quem está a monitorá-lo agora?
- Miguel.
- E ele disse o que se passa?
- Parece que Eva vai ter um filho e Adão não sabe o que fazer.
Deus levantou-se de um salto, preocupado. Ele sempre fora um teórico, além do mais nunca tinha visto um nascimento; todas as criaturas que tinha posto na Criação surgiram no laboratório, em tubos de ensaio, e tirando a da Eva, não esteve presente na criação de mais nenhum. Mas precisava de tomar uma atitude, e dizer que não entendia de parto era mostrar-se impotente, por isso como qualquer bom chefe quando não sabe o que e como fazer, delegou:
– Olha, Gabriel, liga o satélite que está a vigiar Adão neste momento ao monitor, e diz ao Miguel que estou a dormir e não quero ser acordado. Manda chamar o Esculápio, pois ele já monitorou muitos nascimentos de animais para o Disco-a-Ver Channel e pode saber de alguma coisa, e manda-o ter com Adão.

Cá no Inferno. Estávamos eu e Samael a trabalhar no projecto LILITH (Legitimidade, Individualidade, Liberdade e Independência Total aos Humanos) – humanos, sim, chamamos humanos a Adão e Eva, para os diferenciar dos restantes animais, porque eles têm a fala, e estes não … como comecei a dizer, estávamos nisso quando Azrael entrou e disse que Eva estava em apuros. 
O parto natural era uma coisa muito perigosa, mesmo a minha espécie, antes da evolução, com toda a ciência que tinha desenvolvido, sofria muito no parto; quando começamos a conceber fora do corpo, e a mesclar os géneros, não precisamos mais de correr esse risco. Porém há muitos séculos que nenhum parto natural havia sido reportado e mesmo os nossos cientistas não estavam preparados para isso; não foi negligência não, numa linguagem compreensível para vocês: quem, com isqueiros disponíveis a qualquer altura, iria ensinar os seus a fazer fogo batendo sílex? No entanto, tínhamos arquivos, e em cinco minutos, um de nós três devia aprender a fazer um parto para ajudar a Eva. Mas aí é que começou o problema. Azrael achava que devíamos deixar morrer Eva para Lilith ser a nova parceira de Adão.