Ele apagou o
candeeiro e acomodou-se na cama, fechou os olhos e preparou-se para adormecer.
Mas não o conseguiu fazer porque o candeeiro do outro lado da cama, onde dormia
a esposa, acendeu. Ele murmurou qualquer coisa, tentou ignorar a luz acesa, mas
não pôde; definitivamente não conseguia dormir com a luz acesa.
– Por favor,
querida, apaga-me essa luz.
Já não
aguentava mais essa situação de dormir com a luz acesa. Passava sucessivas
noites em branco, por causa da mania que a esposa tinha de ler à noite, e tinha
sempre de se levantar cedo para ir presidir o conselho. Ficava aí a cabecear o
sono, sem se poder concentrar no trabalho. Há tempo que vinha a tomar decisões
erradas e consequentemente a perder a popularidade. O povo já não o via mais
como justo e ponderado, mas como inepto e caprichoso. Tudo por causa do raio da
sua esposa. Maldita a hora em que fui beijá-la,
devia tê-la deixado a dormir. E os contos ainda têm a sem-vergonha de
dizer: E viveram felizes para sempre.
Só nos
primeiros anos é que viveram felizes, quando ainda sentia muito amor por ela,
quando ela ainda era uma novidade, quando ainda conseguia aguentar a falta de
sono dela. Desde que acordou a Bela Adormecida com um beijo, ela não voltou
mais a pregar olho e ele também não, pois andava mal dormido. Era compreensível
que ela tivesse essa bruta insónia, mas esperava que isso passasse com o correr
do tempo. Durante os primeiros anos, sacrificava o seu sono para falar com ela,
fazendo-lhe companhia. Mas já não aguentava mais. E ela ainda por cima tinha
esse maldito hábito de ler à noite.
Já tinham
falado sobre isso. Se ela não quisesse dormir, pronto, o problema era dela, mas
que deixasse aquele maldito candeeiro apagado. No entanto, não tinham chegado a
lado nenhum com essa conversa, porque ela começou a dizer que ele já não
gostava mais dela. Mas como queria ela que ele gostasse se já nem conseguia
manter-se acordado. Até parece que tinham trocado as funções, passara ele a
fazer de Belo Adormecido, enquanto ela andava a acordá-lo sempre com beijos.
Ela nunca dormia e a falta do sono não lhe causava nenhum problema, mas ele
precisava dormir. E ademais, ultimamente ela comportava-se de um modo estranho,
andava sempre amuada, sem disposição para aturar ninguém. Tudo isso porque ele
se esquecera do seu aniversário. Não era bem esquecido, só que ele não lhe fizera festa nenhuma, limitara-se
apenas a dar-lhe um beijo e a dizer:
Parabéns, querida. Estava desconfiada que ele tinha outra e que fora por
isso que não tivera tempo para lhe comprar um presente. Ele, entretanto, só se
comportara daquela forma porque no ano anterior, ao trazer um bolo de
aniversário enfeitado com cento e dezanove velas para a bela soprar e um
extintor para prevenir um incêndio (cento e dezanove velas não é brincadeira),
ela armara um escândalo dos diabos, chorando e perguntando se ele julgava que o
seu aniversário era uma missa satânica para ter tantas velas. Na realidade ela
sentira-se chamada velha, tinha apenas dezanove anos e não todas aquelas velas.
Mas ele contara com os cem anos que ela tinha andado a dormir.
Da última vez
que ele falou com ela sobre o facto de apagar a luz, ela ameaçou-o de que ia
mudar de quarto. Passariam a dormir em quartos separados. Mas ele nem queria
ouvir falar disso. Sabia que ultimamente não estavam a comportar-se como
casados e tinha medo que ela se fosse meter com criados ao mudar de quarto,
porque ele aí não sentiria barulho nenhum, porque depois de tanto tempo de
insónia ao lado dela, passaria a dormir como uma pedra. Negou a proposta nem
ela tinha acabado de abrir a boca. E desconfiava da insistência dela de levar
essa ideia avante. Ele nunca lhe tinha dito nada, mas às vezes sentia uma
pontada aguda no coração ao pensar no número de príncipes que tinham passado na
floresta durante aqueles cem anos e que não tinham conseguido acordá-la com um
beijo. Quem sabia se eles tinham tentado apenas beijos para acordá-la.
– Não vou
apagar coisíssima nenhuma. Não vês que estou a ler? O incomodado que se mude.
Se quiseres vai dormir no sofá.
É! Era sempre
assim. Já não fazia uma semana sem que brigassem por uma ninharia qualquer. Ela
estava malcriada, pior do que daquela vez que tinham ido ao baptismo da
sobrinha. Ela tinha vestido o seu melhor fato, a roupa de que mais gostava,
tinha-lhe sido dada pela sua fada-madrinha. Ele estava a esperá-la no salão, e
ao vê-la não pôde não dizer, mas da forma mais carinhosa possível: Querida, nós vamos é para um baptismo.
Carnaval foi na semana passada. Que falta de gosto e de senso crítico é que
ele tinha. O seu melhor fato é que ele estava a chamar de traje de Carnaval.
Não podia haver pior que isso, ele estava a dizer que ele não tinha bom gosto
para vestidos. Ele queria que ela fosse vestida de quê? Que se vestisse sem
senso de estética, como todas aquelas mulheres que andavam com as pernas, o
peito e as costas à mostra? Era isso que ele queria? Não, ela fora bem educada,
ensinada a conservar-se; não se iria expor a essa sem-vergonhice de vestir
pedaços de panos.
Mas isso não
significava que não gostava desses pedaços
de pano, tinha muitos deles que o marido lhe dera de presente e vestia-os
de vez em quando, no quarto, sozinha, mirando-se ao espelho, mas não estava
ainda à-vontade para vesti-los, e julgava que o marido poderia vir a tomá-la
por oferecida ao começar a usá-los,
pois alguns deles eram muito indiscretos e isso era contra a sua educação. Na
verdade, como podem ver, ela estava cem anos fora de moda.
– Ai não? –
retrucou ele.
– Ouviste bem,
julgo eu.
Essas
discussões já eram demasiado frequentes, tinham que ver uma forma de acabar com
elas. Talvez a saída estivesse mesmo em deixá-la ir para um quarto à parte.
Talvez só isso pudesse acabar com a discussão. Só que ele não conseguia aceitar
de bom grado essa mudança, temia que ela o começasse a trair, e pior ainda, com
os criados. Se ela o fosse trair com alguém a ele, talvez não se importasse,
mas não havia ninguém com esse estatuto. Ele era o príncipe e em cima dele não
havia ninguém. Não iria suportar se ele o traísse com um criado. Tinha de haver
uma solução.
Afinal sempre
se encontra uma solução. Como daquela vez que ele andava a fazer sujeira na
casa-de-banho quando ia evacuar. Ele tinha compreendido que ela não estava
acostumada a casas-de-banho modernas, visto há cem anos atrás as coisas não
serem como naquela altura. Andava com o quarto empestado de mau cheiro. Mas
chegaram a uma solução, não sem alguma dificuldade, pois tinha vergonha de lhe
dizer que fazia apenas porcaria. Mascava na cabeça uma forma de ir ter com ela,
mas ela reconheceu primeiro e veio pedir ajuda, pois já via que não conseguia
enviar nada pelo ralo no chão. Aí ele ajudou-a e ultrapassaram o problema da
melhor forma possível.
Mas, desta
vez, essa história insónica parecia
não ter uma saída fácil. Talvez a única solução seja o divórcio. Se os
contistas tinham escrito e viveram
felizes para sempre, que o mudem para e
viveram felizes por algum tempo e dois filhos e no fim ponham e depois divorciaram-se.
– Eu vou para
outro quarto, quer queira quer não – disse ela, arrumando os livros e apagando
a luz. – Se preferes ignorar-me para sonhar com a Camila, tu lá é que sabes.
Amanhã eu vou passar férias no Egipto.
– Diana, deixa
de ser malcriada que não irás para outro quarto nem para Egipto algum. E,
aviso-te, toma muito cuidado para não irritares a mamã, porque podes vir a ter
um acidente de automóvel. Pois eu só
quero o divórcio, pensou. ■