PEQUENA LONGA
VIAGEM DA LITERATURA GUINEENSE
ELISEU JOSÉ PEREIRA IÉ
Rio de Janeiro
Julho de 2019
Orientador:
Prof.ª Dr.ª Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva
Coorientadora:
Prof.ª Dr.ª Moema Parente Augel
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito
para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas na área de Literaturas
Portuguesa e Africanas.
Moema Parente
Augel, pesquisadora da Literatura guineense, em Kebur: Barkafon di poesia
na kriol,
RESUMO
A presente dissertação
investiga o processo de formação da literatura da Guiné-Bissau desde as
produções da tradição oral até a escrita, com o objetivo de dar visibilidade às
obras de escritores guineenses, assim como à história e à cultura do país.
Cumpre ressaltar o nascimento tardio da escrita literária na Guiné-Bissau. Interessa-nos
abordar as dificuldades de afirmação que os escritores guineenses enfrentam em
relação a outros escritores africanos que escrevem em língua portuguesa. Procuramos
entender as dificuldades da literatura guineense em relação à sua divulgação no
seio das comunidades de língua portuguesa. Isso acontece, por exemplo, no
Brasil, onde muitas vezes ela é considerada como manifestação literária, e não
como literatura propriamente dita. Além disso, os escritores da Guiné-Bissau
quase não são lembrados nas dissertações e teses de doutorados e muito poucos
são solicitados para conferências e congressos internacionais. Pode-se afirmar,
depois de anos de pesquisas sobre a literatura guineense de língua portuguesa,
que há dificuldades de encontrar materiais que despertem o interesse e auxiliem
pesquisadores que queiram trilhar esse caminho de investigação. Na tentativa de
contornar essas dificuldades, apresentamos como corpus literário as obras de
escritores que consideramos relevantes, e que merecem ser difundidas tanto no
Brasil quanto em outros lugares do mundo. A literatura guineense possibilita ao
leitor aprender muito sobre a história, a cultura, as adivinhas, os provérbios
e as superstições do país. A maneira fascinante como a maioria dos escritores
usa o crioulo nos textos literários, a preocupação em dar destaque para a
história e a cultura local ajudam a preservar a língua e torná-la cada vez mais
viva para gerações futuras. Espera-se que nossa pesquisa contribua para trazer
reflexões que quebrem as barreiras de preconceitos e estereótipos e auxiliem na
criação de novos olhares e posturas em relação à literatura guineense.
Desejamos que os estudantes brasileiros, pesquisadores de diversas áreas da
literatura, se interessem pela nossa história, a nossa cultura e outras formas
de conhecimentos que enriquecem a formação humana.
Palavra-chave: literatura
guineense; história; cultura, valorização.
RESUMÉ
Cette dissértation a comme objectif la recherce du processus de la
formation de la littérature de la Guinée Bissau dès les productions des
tradictions orales jusqu'à l' écrit dont le but c'est de donner la visibilité
aux Œuvres des écrivains guinéens ainsi comme à l' histoire et à la culture du
pays. Il faut souligner la naissance tardive de l'éctit littéraire en Guinée.
Il nous intêresse aussi d' aborder les difficultés d' affirmation que les
écrivains guinéens rencontrent em relation aux autres écrivains africains qui
ecrivent em langue portugaise. Ce que l' on cherche à comprendre ce sont des
difficultés littéraires guinéennes en relation à da divulgation au sein des
communeautés de langue portugaise. Et ça arrive par exemple au Brésil oú souvent elle est
considérée comme manifestation littéraire et pas comme littérature correctement
dite. En
plus on ne souvient pas des écrivains guinéens dans les thèses et memoires de
maîtrise et même peu d' entre eux sont au moment des conférences et des congrès
internationaux. Notre but c'est d' eveiller l' intérêt des étudiants brésiliens
et rechercheurs de plusieures branches de la littérature et qu'ils s'
intéressent aussi à notre culture, notre histoire et à d' autres formes de
connaissances qui enrechissent lá formation humaine. Tout ce que l' on peut
affirmer tout au long des anées de recherches sur lá littérature guinéenne c'
est qu'il y a des difficultés à trouver des sujets intérressants qui aident les
chercheurs qui veulent suivre ce chemin de la recherche. En essayant de
contourner ces difficultés nous présentons comme corpus littéraire les
œuvres des écrivains considérées pertinents et cela merite d' être repandu au
Brésil et ailleurs dans le monde. La littérature guinéenne permet au lecteur
d’en apprendre beaucoup sur l’histoire, la culture, les énigmes, les proverbes
et les superstitions du pays. Lá manière fascinante dont la plupart des
écrivains guinéens utilisent le créole dans les textes littéraires et leur
souci de mettre em valeur l' histoire et la culture locale aide à conserver la
langue et à la rendre de plus en plus vivante por des générations futures. Nous
esperons que notre recherce contribuera à susciter des réflexions qui brisent
les barièrres, des préjugés, des stéréotypes et aide à créer des nouveaux
regards et des nouvelles postures par rapport à la littérature guinéenne.
Mots-clés: Littérature guinéenne; l'histoire; culture,
valorisation.
SUMÁRIO
CONTEXTO HISTÓRICO, GEOGRÁFICO E
SOCIOPOLÍTICO
1.Enquadramento
histórico e social do país
1.1.Cultura
guineense: um tronco repartido em vários ramos
1.1.1.Língua:
acervo da memória coletiva
1.1.2.Literatura
guineense: silenciamento e ausência.
CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO CULTURAL
GUINEENSE
2.Adivinhas:
um espaço de reafirmação de comunhão entre os mais velhos e os mais novos.
2.1.Provérbios:
um jogo de palavras para pensar à sociedade.
2.2.Contos
orais guineenses – o nosso contar de cada dia.
2.4.Poesia:
a voz dos oprimidos
DA LIBERDADE DA PÁTRIA AO DESENCANTO DA
PÓS-INDEPENDÊNCIA
3.Amílcar
Cabral e a breve história do PAIGC
3.1.Poesia
de combate - nomes e destaques
3.2.Golpes de Estados: visões da
pós-independência
AFIRMAÇÃO DA LITERATURA GUINEENSE: FORÇA,
DENÚNCIA E FRUSTRAÇÃO
4.Filinto
de Barros: a ilusão da independência em kikia Matcho
4.1.Tony
Tcheka: a imaginação da pátria em Noites de insônia na terra adormecida.
4.2.Abdulai
Sila: uma visão da realidade social guineense em Mistida
3.4.Rui
Jorge Semedo: a voz do novo tempo em Stera
di tchur.
Entrevista com Moema Parente Augel
CRONOLOGIA CULTURAL: EDUCAÇÃO,
LITERATURAS, JORNAIS; EDITORAS, CINEMA, ARTE
LISTA DE ABREVIATURAS
AEGUI: Associação dos Escritores da Guiné-Bissau
APGB: Antologia Poética da Guiné-Bissau
CEI: Casa dos Estudantes de Império
EAGB: Empresa de Eletricidade e Águas da Guiné-Bissau
FLING: Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné-Bissau
HIV: Vírus da imunodeficiência humana
IIJB: Instituto Internacional de Jornalismo de Berlim
INEP: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau
MADEM-G15: Movimento de
Alternância Democratica
MPLA: Movimento Popular de Libertação de Angola
PAIGC: Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde
PALOP: Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
PEN:´Poetas, Ensaístas, Novelistas
PIDE: Polícia Internacional da Defesa do Estado Colonial Português
RENAJ: Rede Nacional das Associações Juvenis da Guiné-Bissau
SGA: Sociedade guineense de Autores
UM: União Para a Mudança
UE: União Europeia
UNAE: União Nacional de Artistas e Escritores da Guiné-Bissau
UNESCO: Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura
UNILAB: Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira
UNU: Organização das Nações Unidas
INTRODUÇÃO
Nasci e fui
criado na Guiné-Bissau, na atual capital Bissau. Aprendi a língua materna
(pepel ou papel) em casa com meus pais e avós. Na rua, aprendi o crioulo e, na
escola, aprendi a conjugar os verbos em
português e a respeitar os
tempos nas normas exigidas pelos “donos da língua”. A minha paixão pela literatura
começou desde a infância, lendo as obras literárias, principalmente as poucas
obras dos escritores guineenses às quais eu tinha acesso. Apaixonei-me pela
literatura dos pequenos livros que eu lia desses escritores pouco conhecidos
nas comunidades de língua portuguesa. As escritas deles pareciam dominar a
minha alma, tornando-me mais maduro e crítico na minha maneira de enxergar o
mundo.
Quando me
aproximei das poesias de Hélder Proença, autor já falecido, me encantei com
suas palavras poéticas – que demonstravam, na maioria dos versos, a coragem e
importância de sonhar e de ter certeza nos dias de amanhã. Li Agnello Augusto
Regalla, um homem culto, infelizmente mais lembrado como um político do que
como um poeta. Quando conheci seu poema, intitulado “Camarada Amílcar”, disse a
mim mesmo que um dia queria escrever algo parecido. Também abri várias páginas
do livro Garandesa di no Tchon, de Francisco Conduto de Pina. Apesar de
ser um caderninho de poemas, esse pequeno livreto foi considerado a primeira
obra individual de um escritor guineense; ali deparei-me com um grito de uma
memória coletiva. Tive também acesso, enquanto jovem, embora pouco, à obra de
Felix Sigá. Suas poesias me ficaram como marcas de tempos sufocados e antena da
vida cotidiana dos guineenses.
Outro poeta
que conseguiu me transmitir a dureza do viver guineense foi Tony Tcheka, autor
que sempre encantou e continua a me
encantar com os muitos e
variados aspectos sociais que as suas poesias apresentam do nosso país. Li
quase todos os textos de Odete Costa Semedo; senti o poder que oralidade exerce
nos seus escritos. Já adulto, passei por um novo amadurecimento quando conheci
as obras de Abdulai Sila e sua a trilogia romanesca, que mostra a
Guiné-Bissau de forma
surreal. Sila é considerado o primeiro romancista guineense, com os romances Eterna
Paixão, publicado em 1994; A última tragédia, de 1995, e Mistida,
de 1997. As obras de todos esses autores enriqueceram meu coração e minha alma,
me permitindo entender, de fato, o valor e a história do meu povo no passado, a
fim de que eu pudesse projetar novos caminhos para minha própria história.
Acreditamos
que é através das palavras que desenhamos o mundo. O caminho se faz por onde passamos.
O desejo de escrever sobre a literatura guineense veio de várias circunstâncias
e de várias leituras. Como tenho dito em muitas ocasiões, a situação da nossa
literatura no mundo lusófono, na própria Guiné e no Brasil sempre me preocupou.
Como demonstram as palavras de Hildo Honório Couto e Filomena Embalo:
Ouve-se falar muito mais em Angola,
Moçambique e Cabo Verde do que em Guiné-Bissau. Intelectuais e escritores como
José Craveirinha, Mia Couto, Luandino Vieira, José Eduardo Agualusa, Baltazar
Lopes e Germano Almeida são frequentemente lembrados no Brasil. No entanto, muito pouca gente já
ouviu falar em Tony Tcheka, Abdulai Sila, Pascoal D’Artagnan Aurigemma, Carlos
Lopes e Odete Semedo (COUTO; EMBALO, 2010, p. 15).
Reconhecemos a existência de poucos
autores guineenses que escrevem livros de literatura. Como afirma a crítica
literária guineense, Moema Parente Augel: “A divulgação de uma
literatura se faz tanto pelas obras quanto pelo discurso crítico sobre elas e
seus autores” (AUGEL, 2007, p. 44). Também reconhecemos que há dificuldade para encontrarmos as obras desses escritores. Há mais de dez anos no Brasil
e na universidade Federal de Rio de Janeiro, tenho reparado que, apesar dos
esforços de alguns pesquisadores, há ainda pouca visibilidade da literatura
guineense no Brasil.[1]Sempre que tive oportunidade para falar
das literaturas africanas de língua portuguesa, nunca deixei de questionar a
ausência dos escritores guineenses e são-tomenses, tanto em congressos, quanto
em palestras ou lançamentos de livros. Ou seja, procurei sempre debruçar-me
sobre as trajetórias literárias desses escritores, acreditando que é urgente
estimular os estudos de literaturas guineense e são-tomense dentro das
instituições acadêmicas brasileiras.
A minha maior inspiração na entrada do
curso de mestrado, sem dúvida, foi o interesse de divulgação da literatura
guineense no Brasil. Quando apresentei meu pré-projeto aos colegas da área, ele
foi recebido com agrado. No entanto, a ideia de fazer um estudo historiográfico da literatura guineeense não partiu de mim, mas, sim, da
professora Cinda Gonda, que, também, sentiu a importância de se dar mais
projeção a uma literatura, cujas obras e autores são pouco discutidos no espaço
acadêmico brasileiro.
Quando decidi elaborar essa Pequena
longa viagem da literatura guineense sabia que o caminho a percorrer
não seria fácil. Sabia que teria um caminho árduo pela frente, pois há grandes
dificuldades de acesso às obras literárias de autores guineenses no Brasil. Há
também grandes dificuldades de publicação das obras guineenses tanto na
Guiné-Bissau quanto fora dela. Quando as obras conseguem ser publicadas, por
exemplo, muitas vezes as tiragens não ultrapassam 500 exemplares. Além disso, com
intuito de rápida publicação, os textos de boa parte dos escritores, algumas
vezes, não apresentam consistência e amadurecimento literário e, com alguma
frequência, encontramos problemas de redação nas obras publicadas em tais
condições de urgência. Tudo isso observamos com grande atenção durante a
pesquisa. Mas a coragem e o desejo de trilhar essas veredas, mesmo ciente das
ciladas que elas possam apresentar, levaram-me a continuar a caminhada.
Um dos maiores objetivos da nossa
investigação é quebrar as barreiras de preconceitos e estereótipos, aos quais a
literatura guineense está subjugada. Desejamos, com nosso trabalho, contribuir
para que os pesquisadores e interessados pela literatura guineense possam
perceber, mais claramente, a sua importância e riqueza. Procuramos refletir, e
entender através do espaço e tempo as razões de desenvolvimento tardio dessa
literatura, assim como a ascensão dos seus autores nos cenários de língua
portuguesa. Na tentativa de demonstrar a importância do estudo da literatura
guineense, em comparação com outras literaturas de países de língua portuguesa,
destacamos, mais adiante, alguns dos seus autores mais conhecidos, cujas obras,
apesar de já terem recebido o aval da crítica literária e da comunidade
acadêmica, permanecem pouco conhecidas. Ouso, mesmo, dizer que tais obras e
autores guineenses permanecem quase invisíveis, se os compararmos com o que
acontece com a produção literária dos demais dos países de língua portuguesa,
como Angola, Moçambique e Cabo Verde.
Não há dúvida de que toda literatura
possui um estreito relacionamento com as culturas locais. Por isso, não podemos
isolar a literatura da cultura. Isso é básico, principalmente, no que se refere
à Guiné-Bissau, onde a cultura respira com mais intensidade do que a literatura.
É, pois, importante conhecer a
cultura guineense, pois ela
se apresenta como
elemento de grande força, o que a torna uma espécie de arma de
resistência do povo. Não duvidamos, também, que a literatura guineense tem o
poder de nos levar a entender o imaginário cultural guineense. Isto é, por meio
da literatura, conseguimos nos aproximar das diversas culturas de diferentes
ramos étnicos no país.
Dentro dos contextos
guineenses, levando em conta as suas ricas tradições locais, não podemos deixar
de enfatizar a cultura como um caminho vivo para inspirar e motivar a literatura guineense. E, quase
sempre, pela literatura, chegamos a um grande entendimento das culturas locais.
Por isso, abordaremos, com muita atenção e cuidado, as diversas formas e
manifestações de diferentes culturas étnicas do país. Como afirma Moema Augel,
“o
sentimento de pertença é, pois, sedimentado por variados componentes, entre os
quais a cultura é da maior relevância. Convencida de que o conceito de
identidade cultural assume uma posição central na análise da literatura
guineense, procuro recompor a malha dos símbolos identitários reveladores da guineidade
(...)” (AUGEL, 2007, p. 41). Todas essas ideias em
relação ao diálogo da literatura com a cultura guineense são essenciais para a
estruturação do corpus da presente obra. Elas serão sustentadas nas
obras dos autores que serão aqui elencados, tanto nas criações poéticas, como
nas criações ficcionais guineenses.
O título que demos ao presente trabalho, Pequena
longa viagem da literatura guineense, pretende sugerir várias
leituras. Primeiro, como referimos anteriormente, aponta claramente para a
situação em que se encontra a literatura guineense, pouco conhecida
e lida nas comunidades dos países de língua portuguesa, principalmente no Brasil.
Reconhecemos, também, que, além de ser pouco lida, a literatura guineense é pouco estudada e divulgada, o que se
justifica, apenas em parte, pela sua história literária bem recente. Nosso título
nos leva a imaginar um
pastorzinho que, tendo nas mãos apenas uma pequena vara, pretende fazer longas
viagens. Tal imagem me vem à cabeça, pois ela não só remete a uma vivência da
cultura guineense, mas nos leva a pensar na força que pode existir no que
parece pequeno e fraco. Longa viagem, por fim, porque entendemos que, apesar de
pequena, a literatura guineense tem muito a oferecer, especialmente no que se
refere a uma longa história de resistência.
Para essa
viagem contínua, optamos por dividir o trabalho em quatro capítulos e subcapítulos.
No primeiro capítulo, trataremos do contexto histórico, geográfico e
sociopolítico, seguindo as lições de Antônio Candido (CANDIDO, 1986),
pretendemos mostrar como a história, a cultura e a sociedade nos ajudam a
entender a formação da literatura guineense. Para reforçar a nossa ideia,
convidamos, também, Hildo Honório Couto e Filomena Embalo que nos ensinam que:
“Uma boa maneira de preparar o terreno para a discussão sobre a cultura, as
línguas e as literaturas da Guiné-Bissau é apresentando um esboço histórico do
país” (COUTO; EMBALO, 2010, p. 15).
Por isso,
trazemos reflexões históricas de diferentes momentos da colonização portuguesa:
como a criação do partido PAIGC, (1956), o massacre de Pindjiguiti, (03/08/1959),
a luta de libertação nacional (início 1963), a independência do país (1973) e
os sucessivos golpes de Estados após a independência do país – razões de
grandes problemas internos na Guiné-Bissau, caracterizados no desenvolvimento
lento em termos sociais, econômicos e políticos. Nesse
mesmo capítulo, com o objetivo de acompanharmos amplamente a riqueza cultural
da Guiné-Bissau, apresentaremos um panorama histórico da literatura produzida
durante a colonização. Ainda que nem todos os autores tenham influenciado
diretamente os precursores da literatura guineense, muitos nomes, como Fausto
Duarte, foram fundamentais para as bases da literatura do país. Abordaremos,
ainda, de uma maneira geral, as mestiçagens linguísticas nos textos de
escritores guineenses, assim como a convivência de diversas línguas étnicas em
um espaço comum, tendo como a língua de comunicação a
língua crioula.
No segundo capítulo, intitulado “Construção
do imaginário cultural guineense”, debruçamo-nos sobre as manifestações da
literatura oral. Também observamos a sua contribuição na manutenção das
tradições locais e na preservação da memória coletiva. Nesse capítulo,
destacamos as importâncias das advinhas, dos provérbios, das estórias e das poesias
como marcas da identidade da nação guineense.
No
terceiro capítulo, denominado “Da liberdade da pátria ao desencanto da
pós-indepêndencia”, destacamos Amílcar Cabral, como herói e mentor da
independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde, e mostramos também o peso da sua
personalidade no cenário mundial e na história político social guineense.
Observa-se, ainda, que a criação do partido PAIGC ajudou na unificação em todo
esse processo de luta armada. Os poetas (Vasco Cabral, António Baticã Ferreira
e Amílcar Cabral) são escritores destacados durante a luta de libertação
nacional e ganharão também espaço no nosso corpus. Debateremos, ainda,
os diversos golpes de Estados no país desde 1980 até 2012, pois eles
constituíram fatores de grandes instabilidades política, econômica e social na
Guiné-Bissau, com sérias consequências até os dias de hoje.
No último capítulo, intitulado “Afirmação da literatura guineense: força,
denúncia e frustração”,
trazemos reflexões críticas dos autores mais destacados no processo literário
guineense. Suas obras retratam profundamente os grandes problemas sociais do
país. Apesar de abordarem tais questões de maneiras diferentes, todos os
escritores citados nesse capítulo dão relevância às profundas turbulências
sociais e políticas da Guiné-Bissau.
CAPÍTULO
I
CONTEXTO
HISTÓRICO, GEOGRÁFICO E SOCIOPOLÍTICO
1.
Enquadramento histórico e
social do país
A Guiné-Bissau é um país que tem uma parte
continental e vários arquipélagos. Em seu litoral desembocam seus rios, entre
os quais: Cacheu, Mansoa, Geba, Corubal, os maiores e mais caudalosos. A Guiné-Bissau
tem uma extensão territorial bastante reduzida e apresenta uma complexidade
étnica, linguística e cultural muito grande. A Guiné foi refúgio de numerosos
povos que sofreram invasões durante muitos séculos. Esse fato teve como grande
resultado a variedade linguística no seu território. É um país situado na costa
ocidental da África, faz fronteiras ao norte com Senegal e ao sul com
Guiné-Conacri, ambos os países ex-colônias franceses.
O topônimo Guiné teve sua origem no nome da
cidade de Djeneé situada no atual Mali (COSTA e RESENDE, 1994). E o nome
Bissau está ligado à história dos Beafadas, etnia que vivia na regiäo de
Bissau, povo descendente de Mecau e de sua irmã Pungenhum. A Pungenhum,
irmã de Mecau, foi-lhe garantida à sucessão matrilinear, que gerou o clã
Intchassu, no plural Bissassu, que vem a dar nome Bissau. A
família Intchassu é djagra [2]NANKE; por isso, é o único
sobrenome comum entre Beafadas do interior e os chamados Papéis de
Bissau (TEIXEIRA DA MOTA, 1989; SEMEDO, 2010). Guiné Bissau foi uma alternativa
na pronúncia de DJENNÉ BISSASSU.
Segundo alguns historiadores, o país integra
ainda cerca de 40 ilhas, denominadas “Ilhas dos Bijagós”; porém, a maioria
delas é desabitada (SEMEDO, 2010, p. 52-53). Em relação à administração
territorial, o país é dividido em três províncias: norte, leste e sul, e um
setor autônomo de Bissau, atual capital do país. A província norte conta com
três regiões, entre elas: Biombo, Cacheu e Oio. A província leste possui duas
regiões: Bafatá e Gabú. A província sul, por sua vez, conta com três regiões:
Bolama, Tombali e Quinará. Além dessas divisões em províncias e suas
respectivas regiões, a Guiné-Bissau possui ainda mais de trinta e seis setores
e secções, desde o período da colonização. Cortada por vários rios, dos 36,125
km² de superfície, somente 28,00 km² são habitáveis, estão em terra firme.
(AUGEL, 2007).
O país livrou-se da colonização portuguesa,
porém, não se livrou de analfabetismo. Logo que se tornou independente, em
1973, quase cem por cento da população era analfabeta (AUGEL, 2007). Segundo o
censo de 2015, a taxa de analfabetismo é quase sessenta por cento[3]. O lugar da literatura se
torna difícil nessas condições. Difícil, também, é o fato de termos poucas
bibliotecas e não haver uma política de incentivo à leitura nas escolas
públicas por parte do Estado. Ou seja, não há projetos de ensino aceitáveis
para desenvolvimento da literatura no país. Esses são apenas alguns dos fatores
que contribuem para a desvalorização da literatura propriamente dita. Como
afirma Moema Augel, “O que existe, sobretudo, é o discurso autoritário,
demagógico, pautado na glória nacional das lutas libertárias” (AUGEL, 2007, p.
27). Comparando a Guiné-Bissau com outros países da costa africana, vemos que
ela possui uma extensão territorial muito pequena, com apenas 36.125km², e uma
população de quase dois milhões de habitantes.
Falar da Guiné-Bissau, sem dúvida, é falar da
história de um povo que foi martirizado e escravizado por colonos portugueses,
ao longo dos séculos, e até hoje sofre as consequências do passado amargo que
se reflete em um presente de muitas dores. Por isso, a Guiné-Bissau ficou muito
tempo nas listas dos países mais pobres do mundo. A história nos conta que o país
foi descoberto por navegadores portugueses em 1446, mais precisamente por Nuno
Tristão, que, posteriormente, foi assassinado por ‘nativos hostis’, como
referiu a estudiosa Moema Parente Augel, no seu livro: O desafio do escombro, assim como outros historiadores...
Nessa sua quarta viagem à “terra dos
pretos”, encontrou a morte, tendo sido assassinado “por nativos hostis” com uma
vintena de companheiros. O massacre teria sido na embocadura de um rio em algum
ponto da costa ocidental, não claramente identificado. Entre as diversas
hipóteses, ter sido na foz de um rio da Guiné, rio Geba ou rio Grande (AUGEL,
2007, p.52 apud SILVA, 2002, p.152).
Desde lá, o país viveu duros momentos sob
opressão dos colonizadores portugueses. A história não morre, ela ainda
registra que a Guiné-Bissau serviu para os colonos portugueses como mercado de
escravos, ponto bem estratégico para melhor comercialização destes, vindos de
diferentes partes da África ocidental. Faz sentido trazer as palavras da Odete
Semedo para entender melhor esse período:
Convém ressaltar que para Portugal a Guiné
não passava de um entreposto de comércio de escravos, um centro comercial e não
uma colônia de assentamento. Parecia não haver intenção de se estabelecerem e
desenvolverem práticas de uma vida sedentária naquele território. Mas, para
fazer face às influências estrangeiras naquela zona e proteger o comércio de
escravos, sobretudo para o Brasil, cria a ‘Companhia de Cacheu, Rios e Comércio
da Guiné’, em 1676, por alvará de 19 de Maio, por António Bezerra e Manuel
Preto Baldez. Essa companhia vai substituir, de certa forma, a desaparecida
‘Companhia do Porto de Palmida’ (LOPES, 1993, p. 257, apud, SEMEDO, 2010, p.56).
Em 1963, iniciou-se a luta armada pela
independência do país, que durou onze anos, e veio terminar em 1973, com a
vitória orgulhosa dos combatentes da pátria guineense. A partir dessa data,
deu-se em todo território nacional a independência do jugo colonial. Mas é
importante frisar que a independência só foi reconhecida em 1974, por parte do
governo português. Depois da luta armada e após a independência do país, a
Guiné-Bissau confrontou-se com muitos problemas internos. Houve então
desavenças entre filhos de mesmo sangue, filhos da mesma terra, que outrora
haviam pegado em armas e lutado por um objetivo comum: a libertação do
colonialismo português. Tais divergências resultaram em muitas crises internas,
uma das mais recentes foi a guerra civil de 1998 a 1999, entre o governo no
poder e os rebeldes da época. A rebeldia foi liderada por Ansumane Mané, um dos
amigos íntimos do ex-presidente João Bernardo Vieira (Nino Vieira). Recorro,
ainda, à pesquisadora Moema Augel para obtermos mais detalhes:
Ansumane Mané, amigo íntimo e companheiro
de armas do presidente Nino Vieira desde as lutas pela independência, tendo
estado ao seu lado na tomada do poder em 1980, conhecedor profundo dos segredos
militares do país (e das irregularidades da elite política e militar), não
podia aceitar sem contestar tais acusações [...] (AUGEL, 2007, p. 67).
A Guerra de 7 de junho de 1998 não trouxe
desenvolvimento à Guiné-Bissau, a não ser a desmoralizacäo, o desmonte
político, e mesmo moral, desse país pequeno do Ocidente. A guerra sempre tem
consequências. Todos os analistas políticos guineenses estão em concordância ao
apontarem a guerra de 7 de junho como a causa principal de todas as
divergências políticas posteriores. Divergências que muitas vezes culminaram
com derramamento de sangue e sucessivos golpes de Estado. Vale ressaltar aqui
que, desde a entrada do país na democracia em 1990, nenhum governo legitimo
findou seu mandato. A Guiné-Bissau tem vivido desde sempre vários momentos de
transição política e turbulência social.
Sabe-se que a democracia foi estabelecida, na
Guiné-Bissau, a partir dos anos 90. E, dos anos 90 em diante, surgiram novos
partidos políticos no país, alguns fundados nas décadas de 50, como, por
exemplo, a FLING. Mas, com exceção da FLING, a maioria desses partidos foram
criados na abertura da democracia, entre 1990 e 1993, como já referimos. É de
salientar que muitos dos partidos fundados nessa década tiveram suas lideranças
vindas do partido PAIGC, sobre o qual falaremos, brevemente, mais adiante, com a
história de luta e de libertação.
É crucial o momento em que se encontra a economia
guineense na atualidade, influenciada por motivos políticos desde a sua
independência até a presente data. Não podemos negar que os grandes problemas
econômicos da sociedade guineense foram reflexos da sua crise política,
instituída por dirigentes dos mais altos níveis do país – crises constatadas
nas péssimas governanças, conduzidas sempre por grupos de pessoas que
fundamentam seus discursos tribais para dividir a população, promovendo o
espírito de nepotismo pautado nos interesses pessoais, enquanto o povo sofre
com uma corrupção generalizada e a exploração dos bens patrimoniais do Estado.
Desde as primeiras eleições legislativas,
decorridas em 1994, e após o conflito militar, em 1998, cresce
proporcionalmente a instabilidade política guineense, e a economia da
Guiné-Bissau encontra-se em um estado de degradação, surgindo, assim, situações
difíceis para o desenvolvimento do país. Essa destruição da economia se observa
na má administração dos recursos naturais da Guiné-Bissau, recursos vistos como
grande potencialidade econômica que o país possui para enfrentar quaisquer
crises na economia. Citamos, por exemplo, a produção de castanha de caju, a
madeira e a pesca. As péssimas administrações dos recursos nacionais, por parte
do Estado guineense, e falta de pessoas qualificadas na administração do país,
sem dúvida, colaboram para um crescente aumento do desemprego, do
analfabetismo, do fracasso na Educação e do descaso na Saúde. O país
encontra-se em situação tão difícil, hoje em dia, que a maioria dos jovens é
obrigada a optar pela imigração, alguns deles, arriscando suas vidas nas
travessias do Oceano Atlântico com destino a Europa.
Nota-se que a Guiné-Bissau, para arcar com a
maioria dos projetos traçados pelo seu governo, depende exclusivamente da UE. A
maioria dos hospitais se encontra em situações desumanas, com estruturas e
equipamentos laboratoriais que não acompanham minimamente a modernização. O
resultado de tudo isso, como aponta Moema Augel, é que:
Os indicadores para a área de saúde também
se encontram em níveis muito baixos. As taxas de mortalidade materno-infantil
são as mais elevadas da sub-região oeste africana. Os dados disponíveis, da
organização Mundial de Saúde, apresentam um índice de 15, 48 óbitos para cada mil habitantes (1998),
enquanto o índice de natalidade registrava naquele mesmo ano 38, 67 nascimentos
por mil habitantes (AUGEL, 2007, p.74).
Continua Moema Augel:
O país conta com pouquíssimos hospitais, todos em desoladoras
condições. Os postos de saúde no interior, quase sempre atendidos somente por
enfermeiros que não possuem formação adequada, muitas vezes não contam nem
mesmo com ataduras ou desinfetante de ferimentos, enquanto o reduzido números
de médicos tenta fazer o impossível para cuidar da população (AUGEL, 2007, p.
74).
Desde o ano de 2002, em que foi realizada a pesquisa da Organização
Mundial de Saúde, indicando diversos problemas, até a data presente percebe-se
que continua a vigorar o mesmo descaso na Saúde pública guineense o que
demosntra que houve poucas mudanças nessa área. A Guiné-Bissau ainda figura nas
listas de países africanos com maiores taxas de mortalidade materno-infantil,
mais altas até do que nas regiões vizinhas, que já vivem também inúmeras
dificuldades, como Senegal e Guiné Conakry. Assim, podemos dizer, com pesar,
que não houve um avanço esperado na melhoria de vida da população guineense.
A Saúde pública continua sendo a grande preocupação da população
guineense. Um pequeno exemplo da falta de condições pode ser visto no fenômeno
crescente, no país, nos últimos anos: mulheres guineenses, com possibilidades
financeiras, buscam o Senegal, o Brasil ou até Portugal para terem seus bebês,
pois nos hospitais da Guiné-Bissau há grandes riscos de perda de vida, tanto do
bebê recém-nascido quanto da mãe.
Observa-se, ainda, um grande despreparo dos
profissionais nativos na área de Saúde. O país conta, em muitas situações, com
médicos estrangeiros, financiados por ONGS e projetos privados. Esse despreparo
e falta de remédios e materiais de trabalhos, sem dúvida, resultam em falta de
confiança e de credibilidades nos profissionais guineenses – o que leva muitas
famílias a angariar fundos para passagem aérea, em direção aos países
estrangeiros, buscando um tratamento digno sem riscos de vida.
A Educação, por sua vez, revela-nos, também, seus
grandes problemas. Até hoje, o país conta apenas com uma escola de formação de
professores para o ensino básico, a “17 de fevereiro” (Escola de Formação de
Professores de Ensino Básico), funcionando em Bissau e na Região de Bolama, sul
da Guiné-Bissau. Vale dizer que a Guiné-Bissau só teve a sua primeira
universidade em 2004 – a Universidade Amílcar Cabral –, instituição que
pertence ao governo. No mesmo ano, criou-se a segunda universidade, a Colinas
de Boé. Hoje em dia, há no país outras universidades fundadas com iniciativas
privadas. Contudo, encontramos, ainda, um ensino bastante precário, e faltam
condições básicas para um funcionamento de qualidade – que acompanhem as
demandas e tecnologias do século presente, como livrarias, bibliotecas de
estudos e laboratórios de pesquisas.
As universidades existentes no país, como
referimos, não apresentam qualidade necessária para formação adequada. As
dificuldades com que a grande maioria dos jovens guineenses se confrontam faz
com que muitos deles optem em procurar uma bolsa de Estudos para países como
Marrocos, Rússia, Argélia, Senegal, Portugal ou o Brasil. Esse último
constitui-se o grande palco dos jovens de classe média e baixa da sociedade
guineense. Com a criação da UNILAB em 2010, com finalidade de estender laços de
cooperação entre o Brasil e os demais países de África de língua portuguesa, o
interesse dos jovens guineenses aumentou. De 2010 ao ano presente foram
inscritos seiscento e setenta e um alunos guineenses nesse Programa.[4]
Hoje em dia, há um grande número de jovens
guineenses formados em níveis de graduação, mestrado e doutorado no
estrangeiro, principalmente no Brasil e no Marrocos. Porém, a instabilidade
política e a falta de um avanço nos projetos culturais e sociais do país fazem
com que muitos desses estudantes não planejem voltar a sua origem. Esses jovens
preferem fazer trabalhos fora da área em que adquiriram a formação, a fim de
sobreviverem, ao invés de voltarem ao país sem nenhuma esperança.
A Guiné-Bissau ainda figura entre os países mais
pobres do mundo e é lamentável dizer que o povo, muitas vezes, parece
contentar-se apenas com o simples acesso à água potável e à energia elétrica. O
acesso à água potável e à energia elétrica, bases de desenvolvimento mínimo de
qualquer país, assim como o pagamento de salários em dia ou a construção de
estradas, são vistos pelos cidadãos guineenses como o máximo que podem exigir
de seu governo. Ainda que num terreno bem distinto do que temos comentado,
outro exemplo que ilustra a estagnação da Guiné-Bissau é que o país possui,
desde a sua independência até os dias atuais, apenas uma única emissora de Televisão,
a EAGB, assim como um único aeroporto para voos internacionais, o Osvaldo
Vieira.
As infraestruturas continuam igualmente muito precárias. No conjunto do
país, apenas cerca de 25% da população têm acesso à água potável. Dessa
percentagem, apenas 21% usam água canalizada ou de fontenários públicos. Os
restantes recorrem à água das fontes protegidas com todas as consequências que
isso acarreta à saúde das populações (AUGEL. 2007, p. 75).
Ao tentarmos
distinguir um caminho do futuro para a Guiné, diante do quadro de estagnação,
temos a impressão que existirão sempre os mesmos discursos dos políticos para
enganar o povo, principalmente durante as campanhas eleitorais. São discursos
que prometem materializar os interesses e as necessidades básicas sonhadas pela
população guineense. Infelizmente, até o presente momento, tais discursos de
preocupação com povo somente valeram durante à campanha eleitoral. A oposição,
por sua vez, ao invés de vigiar o governo e participar ativamente com projetos
que possam contribuir para desenvolvimento do país, preocupa-se mais em
assinaturas de acordos governamentais em benefício dela própria.
1.1. Cultura
guineense: um tronco repartido em vários ramos
[...] As nossas sociedades são compostas não
de um, mas de muitos povos. Suas origens não são únicas, mas diversas [...] (HALL,
2003, p. 30).
A Guiné-Bissau, como outros países africanos, foi
vítima do tráfico de escravos colonial por quatro séculos. Não se pode falar da
cultura guineense sem refletirmos sobre o passado histórico do país. Quando os
portugueses chegaram à Guiné-Bissau (1446), já encontraram no território
guineense vários grupos étnicos pertencentes ao mesmo espaço, mas apresentando
culturas e costumes totalmente diferentes. Nas palavras de alguns linguistas, a
Guiné-Bissau constitui um mosaico cultural, pois cada grupo étnico possui a sua
língua, assim como seus costumes e rituais próprios.
Nenhum historiador africano discorda que a
partilha propriamente dita da África colonial se inicia a partir da famosa Conferência
de Berlim, uma vez que os limites territoriais e o controle por parte dos
europeus tornaram-se, de fato, cada vez mais eficazes. (PÉLISSIER, 2004, p. 10)
A Guiné-Bissau foi um dos países africanos onde houve mais resistência à
dominação colonialista. O fato se deve inclusive a sua grande pluralidade
linguística. Houve uma grande resistência à submissão dos portugueses por parte
de mais de 27 grupos étnicos do país, principalmente as resistências dos papéis
(que se consideravam donos do chão guineense) e dos Bijagós – que recusavam
categoricamente a pagamento de impostos. Segundo afirma AUGEL (2007) e COUTO;
EMBALO (2010), só a partir de 1936 é que os colonos portugueses conseguiram ter
posse, de forma integral, do território guineense. Foi a partir desse ano que a
maioria das etnias passou a contribuir com impostos de palhotas – Um imposto
estabelecido pelos colonizadores de acordo com números de palhotas que cada
casa possuía.
A força cultural do povo guineense está afirmada
na pluralidade linguística do país. Afirma-se que de norte, leste e sul, a
Guiné-Bissau conta com mais 27 línguas étnicas. Cada etnia tem a forma
peculiar, por exemplo, de realizar ritos de casamentos, fanados[5] e funerais segundo seus
usos, costumes e na própria língua. Os portugueses, ao chegarem ao território
guineense, a todo custo, tentaram estabelecer as suas culturas, impondo seus
costumes aos nativos, e, por meio de catequese, levando-os a praticarem o
catolicismo. Mediante tais estratégias, na época colonial, os diversos grupos
étnicos guineenses foram divididos em indígenas – que não abandonavam os
costumes locais – e não-indígenas, pessoas civilizadas, cujas
visões do mundo se baseavam na submissão à cultura portuguesa.
Por outro lado, também eram considerados civilizados
os que possuíam uma renda considerada acessível para a sobrevivência e uma
profissão digna aos olhos da sociedade colonial. O domínio da língua
demonstrado na escrita e na fala era uma das condições para aquisição do cartão
de identidade portuguesa, ou seja, “cartão do civilizado”. Se não houvesse
cumprimento dos requisitos mencionados, os não-indígenas podiam voltar a
serem indígenas considerados traidores da pátria (COUTO; EMBALO, 2010).
A presença europeia no continente africano, sem
dúvida, nos provou que os europeus não queriam somente penetrar na África para
um passeio de aventura, ou explorar as matérias primas que ali existiam, mas,
sim, queriam mudar a cabeça do homem negro, transformar as maneiras de pensar
dos africanos, esmagando e silenciando as diversidades culturais dos povos
africanos. Grande parte das etnias africanas, no entanto, demonstrou uma grande
resistência física e espiritual. Apesar de muitos séculos de dominação
europeia, muitas práticas e manifestações culturais mantiveram-se vivas, assim
como muitas línguas permaneceram como instrumentos da sua afirmação cultural.
Por outro lado, não podemos negar que a presença europeia afetou as culturas
africanas, principalmente a Guiné-Bissau. Apesar de tudo isso, os europeus não
lograram roubar a força das culturas africanas, afirmada nos valores dos seus
ancestrais e transmitida oralmente de geração a geração.
Apesar do pequeno tamanho do nosso país, tanto em superfície quanto
em termos de população quase dois milhões de habitantes, três vezes inferior à
população do estado do Rio de Janeiro. São mais de 27 línguas étnicas distintas
e com suas diversidades culturais complexas. Algumas delas se aproximam pela
sonoridade vocal, mas, ainda que os sons das palavras se aproximem, os sentidos
dos vocábulos, na maioria das vezes, são totalmente diferentes.
Quando referimos “etnia”, pretendemos destacar um grupo de pessoas
que falam a mesma língua, sejam elas familiares ou não. O que conta na maioria
das vezes é o sangue. O sangue é o que identifica a linhagem ou grupo familiar
nesse contexto. Por exemplo, muitas pessoas podem pertencer à etnia papel,
porém, não apresentarem laços de parentesco. Uma vez que falam a mesma língua,
não significa que são do mesmo “sangue”, ou seja, de um grupo familiar. O fato
acontece com todas as línguas locais. Numa mesma casa, por exemplo, podem morar
um grupo familiar de até três línguas diferentes. A língua que os une é a
língua crioula, o crioulo guineense, falada por mais de noventa por cento da
população.
A Guiné-Bissau é um espaço constituído por diferentes grupos
étnicos, vindos de várias partes do continente africano, principalmente as de
África Ocidental. Apesar de terem existido vários ramos linguísticos e
diversidades culturais desses grupos étnicos no país, antes da chegada dos
colonizadores, há uma forte interação das mais variadas etnias guineenses, e o
crioulo é a língua de unificação, de confraternização e de comunhão entre elas.
É percebido, atualmente, entre os guineenses, que a língua crioula, além de
servir como a língua de unidade nacional, é vista no meio do povo muitas vezes
como a língua de prestígio social, a língua urbana e de predominância na
capital. Como ressalta Augel:
O grupo crioulo é, sem dúvida, o mais
influente, o mais “moderno” e ocidentalizado, o mais assimilado aos hábitos
introduzidos pelo poder colonial, e é entre eles que se vai encontrar a magra
percentagem dos falantes do português. A sociedade crioula vive na capital ou
nos centros urbanos, seus membros são geralmente cristãos, mais escolarizados,
e sempre foram, política economicamente, os mais ligados ao setor estatal
(AUGEL, 2007, p. 81).
Embora, antes da independência, o crioulo tenha sido proibido pelos
colonizadores, era a lingua urbana, falada por pessoas pertencentes às classes
altas da sociedade. E era vista como a língua de civilização, falado por
pessoas que mantinham padrão da cultura europeia, conhecedoras da língua
portuguesa. Nas regiões do interior do país, há naturalmente o predomínio do
uso das línguas étnicas. Bissau, a capital, continua a ser a cidade de cultura
e padrão ligados à cultura europeia, embora não haja mais necessidade dos
estatutos de assimilação.
Apesar de não haver espaço para grandes rivalidades que pudessem
interferir em conflitos étnicos, como aconteceu no passado entre papéis
e mancanhas pela posse da região de Bolama, os preconceitos linguísticos
continuam a valer em diversas situações entre os grupos étnicos guineenses.
Basta observar o resultado eleitoral no país. Nas regiões leste, onde predomina
a etnia fula, é mais provável que o candidato fula ou muçulmano vença as
eleições nessas áreas. Ainda que esse candidato não tenha condições para
governar o país, a sua origem étnica, a cultura, a religião e o poder econômico
lhe dará boas possibilidades de sair como vencedor nessa província.
Apesar de o crioulo guineense ser a língua que une as várias etnias
existentes no país, os fulas e os Bijagós, estes últimos vivendo no arquipélago
do mesmo nome, sofrem às vezes discriminações em relação aos seus modos de vida
e da maneira como falam a língua crioula. Os fulas, na Guiné-Bissau, são
conhecidos como pessoas que cultivam muito bem o comércio, especialistas em
gerenciar o dinheiro. Os fulas apresentam características peculiares nas formas
de pronunciar algumas palavras da língua crioula. Por exemplo, quando
pronunciam a palavra ‘chefe’, o som que se ouve é o ‘sefi’, e trocam os
dígrafos (Che) por (se). Como podemos verificar no conto ‘A árvore do umbigo’,
de Julie Agossa Djomatin, publicado em setembro de 2004, no décimo aniversário
da Editora Ku Si Mon:
- Menos ainda a sua admiração infantil e as
suas manifestações de simpatia intempestivas. Lá subiu para cabina, donde
dominava a estrada à altura de um homem – Sefi! – chamou o homem.
– Quando te começam a chamar chefe, é para te pedirem boleia. Transporte
grátis até a próxima tabanca [aldeia] (DJOMATIN, 2004, p. 12, grifos meus).
A xenofobia também alcança a etnia dos Bijagós, moradores de
ilhas. Existe um número muito pequeno dos Bijagós residentes na cidade de
Bissau. Os Bijagós apresentam diferenças nas formas de pronunciar certas
palavras em crioulo. Demonstram distinções nos seus falares do crioulo
guineense: trocam F por B; por exemplo, quando pronunciam o nome Francisco,
ouve-se o som de Badancisco. Também trocam a sílaba “Se” por sílaba
“tche”. Por exemplo, a palavra “seta” é pronunciada ‘tcheta’ (aceitar) pelos
Bijagós. Essas são apenas algumas palavras do vocabulário do crioulo guineense
que são alteradas por eles.
Os Bijagós possuem e preservam ricas tradições de agricultura e
pesca. Por isso, são mais conhecidos entre os guineenses como agricultores,
pescadores, além de serem grandes extratores de vinho de palma; são, por
natureza, preservadores dos espaços coletivos e das tradições dos ancestrais.
No entanto, são discriminados em piadas guineenses que buscam diminuí-los.
O conjunto de grupos étnicos que me parece ser mais privilegiados no
território guineense é chamado de Brames (mancanha, manjaco e papel ou pepel).
Essa última etnia, desde a época colonial, rejeitava pagar os impostos,
alegando serem os donos da terra de Bissau. Os Brames são radicados na cidade
de Bissau e praticantes das religiões cristãs. Os grupos étnicos referidos, até
os dias de hoje, demonstram serem mais ocidentalizados. Contudo, nenhuma dessas
etnias abandonou as suas tradições e costumes herdados de geração a geração.
Por exemplo, as cerimônias de casamento, os funerais e o [6]fanado.
A cidade de Bissau, desde 1940 quando se tornou capital, continua
sendo um espaço de convivência de diversos grupos étnicos[7]. Cada uma dessas etnias,
como já referimos, possui a sua forma peculiar de adoração aos seus deuses,
seus ritos iniciais, funerais, entre outras manifestações culturais. Apesar
dessas diferenças culturais, há atos de solidariedade e intercâmbio cultural,
como o durante o período de Carnaval. Nessa época podem-se ver os fulas vestidos de papeis, papeis
vestidos de manjacos, balantas
vestidos de mandingas, assim sucessivamente
– cada um exaltando a cultura de outro.
Vale salientar cada um dos grupos étnicos
existentes no país possui a sua forma peculiar de gastronomia e de realizações
de cerimoniais rituais, considerados tradicionais, como, por exemplo,
cerimônias de iniciação à vida adulta. Os fulas
e mandingas, por exemplo, possuem
algumas características culturais comuns, talvez por pertencerem à mesma
religião (muçulmana). Observa-se no país que muitas pessoas de outras etnias,
como os balantas, papéis e mancanhas, se convertem à religião muçulmana; por conseguinte,
acabam por praticar a cultura e crenças das etnias muçulmanas. Há grande
diversidade de manifestações culturais no país. Apesar de tudo isso, cada
etnia, ou seja, cada grupo étnico sabe respeitar os princípios culturais dos
outros grupos. E a convivência no dia a dia não os limita a praticar os
costumes transmitidos pelos seus antepassados.
1.1.1.
Língua: acervo da memória coletiva
Apesar de a língua portuguesa ser a língua
oficial de cinco países africanos, seu uso
ainda é bastante restrito no território guineense. Os portugueses não
tiveram êxito em impor a sua língua na cultura da Guiné-Bissau. Diferentemente
de Angola, Moçambique e Cabo Verde, onde a língua portuguesa é falada por uma
boa parte da população, na Guiné-Bissau é uma minoria dos nativos que têm o domínio
dessa língua.
Um dos motivos é que, na Guiné-Bissau, o acesso ao
ensino secundário e superior ainda é bastante limitada. Como salienta Moema Augel,
“o português, embora seja língua oficial do país, não é língua corrente entre
os guineenses, uma vez que estima menos de dez por cento o número dos falantes
desse idioma na Guiné-Bissau (AUGEL, 2007, 79). Como sabemos que na Guiné houve
o encontro de numerosos povos vindos de África ocidental, compreendemos
facilmente a grande variedade de grupos étnicos dentro desse pequeno
território. Aproximam-se de quase 27 as línguas étnicas faladas na
Guiné-Bissau, apresentando manifestações culturais bem distintas.
Sendo assim, o uso da língua crioula na
Guiné-Bissau é de grande força, pois é nela que o guineense consegue imaginar o
mundo, exprimir com detalhes o que sente, fazer contendas, contar histórias e
até resolver mistidas (negócios, problemas, assuntos pessoais) se for
necessário. A língua crioula também serve para os guineenses construírem uma
ponte entre a identidade e a cultura local. Apesar de ela ser uma língua falada
por grande parte da população guineense, infelizmente, não possui uma
ortografia fixada nem escrita normalizada. Moema Augel no seu livro A nova
literatura da Guiné-Bissau, num dos capítulos sobre crioulo da
Guiné-Bissau, discute atentamente sobre a divulgação e união da grafia e
escrita dessa língua: “O crioulo não conhece, até o presente, nem uma
ortografia fixada nem uma escrita normalizada. “As vacilações a respeito da
codificação não podem nem devem ser empecilho nem para o seu uso nem para a sua
divulgação “(AUGEL, 1998, p. 36).
A língua portuguesa, por sua vez, é falada por
uma pequena parcela da população, tendo em conta o grande número de
analfabetismo no país. Em função da pouca valorizacäo do crioulo, na escrita,
muitos escritores guineenses decidiram usar muitas vezes essa língua, em
paralelo com a língua portuguesa nos seus textos, com a finalidade de valorizar
esse idioma de unificação.
Não temos dúvida de que a melhor forma para
afirmação cultural de um povo é através da divulgação da sua própria cultura,
através da oralidade e da escrita, ou seja, através das propositais misturas linguísticas,
vistas nos textos de grande parte dos escritores africanos de língua
portuguesa. Por exemplo, na Guiné-Bissau, os que realizam, com muita
propriedade, essa proposta são os autores mais divulgados na diáspora. Adiante
apresentaremos seus trabalhos nessa nossa pequena e longa viagem da literatura
guineense. São eles Abdulai Silá, Tony Tcheka, Odete Costa Semedo, Filinto de
Barros e Rui Jorge Semedo. Em todos os livros publicados até o momento pelos
autores referidos, observamos que procuram sempre fazer essas interferências
linguísticas, contribuindo, assim, para a divulgação da cultura de seu
país, ao mesmo tempo em que aproximam o leitor da riqueza da língua crioula.
A maioria das línguas étnicas serve somente como
meio de comunicação entre os grupos da mesma árvore linguística. Elas não são
sistematizadas ainda para o Ensino. No ano de 1987, alguns profissionais do
Ministério de Educação, Cultura e Desporto fizeram uma proposta em unificar a
ortografia e a escrita da língua crioula, pois até o presente, constatamos
formas diferentes para cada falante (AUGEL, 1998, p.36). Esses profissionais da
Educação tentam tornar a língua crioula como língua de ensino, capaz de
substituir, assim, a língua portuguesa, falada apenas por uma minoria da
população guineense. Na verdade, essa questão tem suas complexidades, pois há
muitas discussões sobre a efetivação da língua crioula no ensino guineense. Há
grupos de pedagogos que defendem a importância de implementar o crioulo como
língua de ensino, e há os que alegam a falta de estruturas gramaticais
suficientes para torná-la a língua do ensino.
De fato, de todas essas discussões feitas entre
os profissionais da área educacional, achamos necessária a implementação do
crioulo para os primeiros anos de escolarização. Apesar de muitas lutas e
esforços dos profissionais que pretendiam que a língua crioula fosse instituída
na escola nos primeiros anos, “A alfabetização em português foi imposta,
continua sendo, apesar de tantos argumentos em favor do crioulo como língua
para os primeiros anos de escolarização e o desastre pedagógico acarretado por
tal decisão se faz dolorosamente sentir no momento atual” (AUGEL, 1998, p.39).
Ainda vigoram as possibilidades para realização desse propósito nas
instituições primárias guineenses. A língua crioula, como vimos antes, é uma
língua de unidade nacional, falada e entendida por mais de 90% da população
guineense. A sua inserção, com certeza, facilitará os professores, sem esforço
máximo, na transmissão dos conteúdos e facilitando o ensino-aprendizagem. Nas
palavras de Hildo Honório Couto, a língua crioula é a ideal para o cenário
linguístico guineense: “Por não ser a língua de nenhuma etnia, o crioulo é a
única língua de todos os guineenses, portanto, o bom senso nos diz que deveria
ser a língua do ensino” (COUTO; EMBALO, 2010. p. 43). Não nos esqueçamos,
porém, que isso não significa nunca desprezar as línguas étnicas, baluarte das
culturais regionais.
A falta de domínio da língua portuguesa, por
parte de grande maioria de professores de ensino primário e secundário, e a
incompreensão da mesma, por parte dos alunos, figura como grande fracasso do
sistema educacional guineense. Mas temos que levar, também, em conta que esse aumento
do número de professores com dificuldade de se expressarem em língua portuguesa
se assenta na falta de valorização dos profissionais da Educação no país. Não
podemos mudar a nossa história nem as características da Guiné-Bissau se o
Estado não pensar nas realidades sociais e econômicas do país. Se não considerarmos
que a Educação é o melhor caminho para desenvolvimento de qualquer país, como
demonstra Paulo Freire no seu discurso, sem dúvida nenhuma, não poderemos mudar
esse cenário. “Se educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco
a sociedade muda”. A insistência de proibir o uso do crioulo no ensino guineense,
sem dúvida, gera grandes probabilidades de colhermos resultados catastróficos
no sistema educacional guineense. Como afirmam (COUTO; EMBALO, 2010):
Temos que reconhecer, porém, que não é
apenas o uso de uma língua estrangeira (o português) que causa todo o desastre
que é o ensino na Guiné-Bissau. Em primeiro plano vêm as causas econômicas,
estruturais e conjunturais. Há um baixo nível de formação dos docentes e falta
de meios para reciclagens periódicas, um salário que mal dá para comprar um
saco de arroz (base de alimentação dos guineenses) de cerca de 60 quilos e pago
com grande atraso. A consequência é a fuga de quadros que vão para outros
países ou então trabalhar para as empresas privadas ou organizações
internacionais. Uma utilização indevida da ajuda externa quer por desvios dos
recursos para outros fins, quer por má gestão não contribui para a uma
melhoria do sistema que se vem reproduzindo ao longo do tempo (COUTO; EMBALO,
2010, p. 43).
Após o conflito militar de 7 de junho de 1998[8], quando foram registradas
novas entradas de muitos missionários tanto protestantes quanto católicos no
país, surgiram
projetos para traduzir os filmes com conteúdo da Bíblia sagrada, em algumas
dessas línguas étnicas, com finalidade dos grupos evangélicos de catequizar a
maioria da população. O conflito acima referido interrompeu vários projetos educacionais
em relação à divulgação das línguas étnicas do país, principalmente o crioulo –
que vinha ganhando o espaço, em termos da divulgação, tanto na fala como na escrita.
A língua crioula é uma língua de base portuguesa,
considerando que grande parte de seus morfemas se originam da língua
portuguesa. Porém, não muito raro, com certeza, é possível ainda encontrar
pessoas que não falam a língua crioula no país. Entre elas, os mais velhos
radicados no interior do país e até jovens que nunca tiveram a oportunidade de
conhecer a cidade de Bissau, onde a língua crioula é falada frequentemente.
Como demonstramos, em uma de minhas últimas publicações, muitos desconhecem o idioma
de união nacional: (BANORI, 2017):
Ele nunca tinha ido à Praça de Bissau, mas,
apesar do medo, tinha grande vontade de conhecê-la pelo tanto que ouviu falar
dos que lá foram. A vontade de ir à praça sempre foi o seu desejo, mas os
amigos diziam-lhe que na Praça de Bissau tem mais malandros do que honestos. O
aviso causava-lhe mais medo ainda, pois ele trabalhava com comércio seria mais
fácil ainda sofrer um golpe daqueles meninos de praça que não tem nada para
fazer, senão viver nas custas dos outros. Além de tudo, ele não sabia falar
crioulo, a não ser a língua fula que falava desde que tinha nascido. Isso era
problema maior. Viver na Praça de Bissau sem falar crioulo seria como viver em
um mar sem salva vidas. Tinha-o dito um amigo que já fazia negócios lá, há
muito tempo, vendendo: cola[9] (BANORI,
2017, p.99).
Demba, ou Tio Dembaro como é referido pelo
narrador do conto em questão, é um homem já de idade avançada, que nasceu em
Gabú. A única língua que aprendera com os pais foi a língua fula. Com medo da
brutalidade dos jovens de Bissau, nunca tinha pisado na cidade. Já velho, não
podia deixar de matar a curiosidade de visitar a capital, que cada morador de
Gabú gostava de mostrar que conhecia bem. Demba, cansado de tantas opiniões,
até de crianças, sobre a cidade de Bissau, decidiu, por si só, conhecer a
cidade; mas só tinha aprendido duas palavras em língua crioula:
A única frase que enchia a sua cabeça era:
fera di bandé[10], Djuldé.
Essa frase não tinha sentido nenhum, mas um bom falante de língua crioula podia
entender que ele queria chegar em fera di bandé e queria encontrar Djuldé,
pronto, mas em que lugar de fera di bandé ele queria ir e com que Djuldé
ele queria encontrar, isso seria um mistério, pois só em fera di bandé
tinha mais de dez pessoas com nome de Djuldé. (BANORI, 2017, p.103).
O final do conto nos mostra Demba perdido no
mercado de bandim, e além de tudo roubado. Depois de muito tempo importunando as
pessoas no mercado de Bandim, finalmente, encontrou uma pessoa que lhe podia ouvir.
Voltando a Gabú, tio Demba, nunca mais pisou à praça de Bissau:
Logo botou a mão no bolso de trás para
pegar carteira, não tinha visto nada. Aqueles meninos de fera di bandé já tinha
levado tudo... Tio Dembaro não quis acreditar, respirou profundamente e disse
na língua fula subhanallah[11]. E
começou a agarrar as pessoas uma por uma em fera di bandé, gritando em língua
fula: Horo were kalessiam o woni? Que significa, na língua fula:
Cadê o meu dinheiro? Ficou lá por muito tempo, até que alguém conhecido o
descobriu e levou-o de volta à região de Gabú... Tio Dembaro nunca mais voltou
à cidade de Bissau (BANORI, 2017, p.105).
O conto ora apresentado nos mostra o quanto a
questão linguística torna-se uma problemática num país pequeno como a Guiné-Bisssau.
A língua crioula, desde muito cedo, isto é, a partir do século XIX e um
pouco mais do início do século XX, sofreu grandes transformações em nível
social e cultural. Os que têm domínio da língua crioula guineense podem
perceber que há várias formas nas produções literárias dessa língua, entre elas
o kriol lebi[12] e crioulo fundo. Por isso,
hoje em dia, é fácil diagnosticar claramente as variações tanto na fala quanto
na escrita. Percebe-se que os mais velhos ainda preservam as formas antigas do
seu uso, formas que advém de uso proposital dos provérbios, hoje, esse tipo de crioulo
é conhecido como kriol fundo[13] ou tradicional.
Couto e Embalo discutem a respeito de variações
linguísticas de crioulo no contexto guineense, “Em Bissau, a forma com o /b/
intervocálico é opcional. É, portanto, uma forma viva no crioulo mais
conservador, sobretudo na Casamansa. No entanto, ela ocorre também em outras
regiões da Guiné em pessoas mais velhas ou nos falantes do kriol fundu.”
(COUTO, EMBALO, 2010, p. 32). Vejamos, por exemplo, a seguir, uma frase,
retirado numa lista de provérbios do site de Didinho: Anduriña kuma i na pupu riba di kabesa di ñor deus, i ba kai riba di si
kabesa (a andorinha disse que caga na cabeça do senhor deus, mas caiu sobre
sua própria cabeça).[14] Os mais novos vão adotar nas
suas falas os vocábulos, na sua maioria, aportuguesados, considerados variantes
mais próximas da língua portuguesa. Por outro lado, os mais novos não usam a
palavra ‘ñor’, senhor, mas, sim, “senhor deus”.
Se afirmamos que falamos a língua portuguesa na
Guiné-Bissau, estamos a mentir para nós mesmos. Apesar de ela ser a língua
oficial, como vimos anteriormente, o seu acesso é ainda bem complexo para
guineenses, que nasceram na Guiné-Bissau e não possuíram uma formação acadêmica
superior. Apesar de o país ter sido, no passado, colonizado por Portugal, o
fato não impediu os guineenses de se expressarem em língua crioula, reafirmando
a identidade local como símbolo de resistência ao colonizador.
Não podemos, também, dizer que a língua
portuguesa é uma língua de trabalho ou da escola na Guiné-Bissau. O que mais se
fala no dia a dia na escola e nas Instituições urbanas é o crioulo. Se
quisermos um exemplo, é só observarmos o encontro de dois guineenses, tanto na
Guiné-Bissau quanto em qualquer parte do mundo. É na língua crioula que os dois
se cumprimentam, conversam, discutem e trocam ideias sobre o mundo que os
rodeia, e não no português. Parece-me uma postura doentia que nós, guineenses, pensemos
que a língua portuguesa é a língua de trabalho e de fins acadêmicos.
Nas cidades, a língua que se ouve nas ruas
é quase sempre o crioulo. Em casa também só se fala crioulo, com poucas
exceções. Assim, nos bairros populares, onde se concentram falantes de uma
mesma etnia, via de regra se fala a respectiva língua. Mas, havendo um vizinho
de outra etnia, volta-se ao crioulo naturalmente. No pátio das escolas, no
mercado, nos nightclubs, nos estádios de futebol (como o Estádio
Nacional‘ 24 de setembro’ou o ‘Lino
Correia’, ambos de Bissau) só se fala crioulo. Pelo fato de o português só
ser aprendido na escola, ele é a língua da escrita e para se falar com
estrangeiros. Assim, quando um guineense vê alguém de pele clara na rua, tem
tendência a dirigir-se a ele em português (COUTO; EMBALO, 2010, p. 50, grifos
nossos).
Cada vez mais nos aproximamos da língua
portuguesa, tanto na escrita quanto na fala. Sendo assim, não podemos negar que
a maioria dos guineenses urbanos, ainda que não falem e escrevam bem a língua
portuguesa, a compreendem muito bem. Apesar de muitos não falarem nem
escreverem, existe a compreensão de palavras da língua portuguesa aos ouvidos
guineenses. É que, naturalmente, há muitos empréstimos das palavras portuguesas
no crioulo guineense. Se voltarmos para nossa história, evidentemente, podemos lembrar
várias circunstâncias. Primeiro, sabemos que a Guiné-Bissau, por muito tempo,
serviu como fonte de escravos e de grandes mercadorias que saíam de diversas
partes da colônia, isto é, até o século XIX. Outro motivo a apontar é que havia
demora em relação à exploração efetiva dos europeus no país. Um dos fatores de
a língua portuguesa não ter se enraizado na Guiné-Bissau talvez se deva ao fato
de que a Guiné-Bissau, mais intensamente do que Angola, Moçambique e São Tomé e
Príncipe, seja um país de grande pluralidade linguística.
Se o português fica restrito ao ensino nas
escolas, visto que a maior parte da comunicação oral é produzida em crioulo e
línguas étnicas, podemos perceber que as línguas étnicas enfrentam grandes
dificuldades para chegarem à escrita; apenas são utilizadas oralmente. Como
salienta a pesquisadora Moema Augel: “São muitas as dificuldades e os
obstáculos com que as línguas étnicas se defrontam, não tendo até o momento
conseguido chegar a constituir um veículo consolidado para expressão escrita
[...] (AUGEL, 2007, p. 85). Vale dizermos, portanto, que na Guiné-Bissau
convivemos com três línguas, a saber: a língua de casa, a língua de rua e a de
escola. A língua de casa é a língua materna, falada entre as famílias e
parentes; a língua de rua é o crioulo e a língua de escola e das situações
formais é o português, falado por uma minoria da população guineense.
A Guiné-Bissau é um dos países da África com mais
elevada taxa de analfabetismo. É compreensível seu desenvolvimento tardio na
literatura escrita. No entanto, sempre houve cantos, contos, histórias
tradicionais, e outras manifestacöes da oralidade, como expressa a professora
Carmen Tindó Secco:
As letras guineenses, em razão dos fatores
históricos e sociais já mencionados, apresentaram um desenvolvimento lento e
tardio. Em uma colônia, onde as campanhas de alfabetização apenas começaram
entre 1948-1958, a literatura, portanto, somente podia existir enquanto voz,
constituindo-se de lendas, adivinhas, provérbios passados oralmente pelos mais velhos.
A recolha dessas tradições que circulavam em crioulo foi feita (SECCO, 1999, p.212).
Apesar de, na Guiné-Bissau, o português ser a
língua que prevalece na poesia guineense, o crioulo também serviu como uma
bússola que orienta os poetas, apresentando-se, assim, como uma forma de
preservar a identidade. Pabia kil ki di nos tem balur[15]. O recurso ao crioulo é cada
vez mais frequente, quer pela fala em crioulo propriamente dito, quer pela
utilização de termos e expressões dessa língua em textos em português. Esse uso
é frequentemente visto nos textos de Maria Odete Soares Costa Semedo, Tony
Tcheca e Abdulai Sila, Filinto de Barros e Rui Jorge Semedo, autores
consagrados tanto no país como também no exterior.
A identidade é o que aproxima e difere dos demais:
é no limiar; no interior desse saber; do conhecimento do que somos e do que não
somos, com nossas línguas, memórias, costumes e mitos que constituímos nossa
identidade. E é no limiar no interior desse saber que se faz possível encontrar
uma origem, um chão, uma terra, um fundamento, um espaço. Assim sendo, as misturas
linguísticas utilizadas por Abdulai Sila e os demais autores guineenses são
também uma forma de preservar a língua. Vejamos as palavras de Abdulai Sila
numa entrevista[16] concedida a mim:
[...] Assim, não sendo a língua materna da
esmagadora maioria dos guineenses, verifica-se, ao longo do processo de
apropriação da língua portuguesa, uma relação dialética entre todas essas
línguas, dela resultando termos, expressões e significados específicos da
Guiné-Bissau. Acho esse um processo natural, diria até inevitável, sendo que só
dessa forma a língua portuguesa pode afirmar-se e consolidar-se como parte da
identidade cultural do guineense [...].
É através dessas misturas linguísticas que Abdulai
Sila e muitos dos escritores guineenses afirmam sua identidade. Mestiçagens que
jamais poderiam dar-se de uma maneira apenas individual; mestiçagens que, antes
de qualquer coisa, necessitam que outros viabilizassem tal diálogo, que
tornassem possível a criação destas marcas identitárias híbridas e plurais,
fundamentadas nesta origem que é, a um tempo, original e originadora. Essas
mestiçagens têm um chão, uma terra de origem: a Guiné-Bissau, onde todos os
escritores guineenses vivem.
Acreditamos que um dos grandes valores da herança
ancestral que ainda continuou viva – que é orgulho de grande parte dos
guineenses seja a língua crioula guineense. Os portugueses não conseguiram
tirar de nós esse acervo. Não é por acaso que ainda seja a língua crioula
aquela que faz a discussão dos projetos do país e dos nossos deputados no
parlamento guineense. As línguas étnicas de diferentes grupos étnicos da
Guiné-Bissau, sem dúvida, constituem uma pluralidade linguística guineense,
sendo que algumas dessas línguas étnicas são consideradas por linguistas como
dialetos de uma mesma língua. No caso de papéis, manjacos e mancanhas.
1.1.2. Literatura guineense: silenciamento
e ausência.
Não se deve esquecer que o grande avanço na
divulgação da literatura guineense tanto no país quanto no exterior tem sido a
partir do grande esforço da pesquisadora Moema Parente Augel. Essa pesquisadora,
que residiu durante seis anos na Guiné Bissau, tornou-se uma importante
estudiosa das literaturas africanas de língua portuguesa e grande embaixadora
cultural da Guiné-Bissau. Seu trabalho de pesquisa é merecedor do maior
reconhecimento, pois logrou dar maior visibilidade à literatura guineense,
retirando-a do chamado “espaço vazio”, outrora apontado por historiadores das
literaturas da África de língua portuguesa. Não é raro assistirmos a cenas de
guineenses emocionados, que, ao encontrarem a pesquisadora, fazem questão de
demonstrar o seu carinho e gratidão.
Hoje em dia, ao falarmos do silenciamento da
literatura guineense, é claro que não podemos esquecer de referenciar os
incontornáveis trabalhos feitos por Moema Augel. Desconheço, até o momento,
pesquisadoras mais interessadas do que ela em debruçar-se profundamente sobre a
literatura guineense e difundi-la, assim como os seus escritores. Até sair da
Guiné, às vésperas de conflito militar de 7 de junho de 1998, a pesquisadora
contribuiu imensamente para a projeção da literatura guineense, organizando antologias,
assim como facilitando publicações individuais dos escritores, até então,
engavetados – que aguardavam ansiosamente a oportunidade de uma edição e que já
escreviam desde muito jovens. Sendo assim, insistimos no seu papel de projetar
a literatura guineense, contrariando, assim, a ideia do “espaço vazio”.
Além disso, a contribuição da Moema Parente Augel
nos projetos do INEP, organizando e editando livros de poemas e antologias de
escritores guineenses, assim como livros de sua autoria sobre a literatura e
cultura guineense, sem dúvida, acelerou o processo de desenvolvimento da nossa
jovem literatura. As atividades e o empenho da pesquisadora estimularam
bastante o prazer da escrita e de leitura nesse país. Como ela mesma esclarece
na nota de abertura da Série Literária, Coleção Kebur no 1:
Acreditamos além disso também que, com a
publicação de obras em Kriol, estaremos contribuindo para um maior gosto pela
leitura, um mais amplo acesso da juventude aos livros, que se sentirá,
esperamos, mais motivada a entregar-se à essa empolgante atividade desde que
lhe sejam postos à disposição livros escritos numa linguagem que lhes é mais
familiar (AUGEL, 1996, p.14).
O acesso às obras literárias guineenses nas
últimas décadas, assim como dos seus escritores no Brasil (embora com pouco
interesse ainda em pesquisas), a meu ver, se deve, em sua maior parte, aos
trabalhos feitos pela referida pesquisadora, que, com certeza, merece ser
coberta com um pano de pinte.[17]
São de sua autoria três significativos livros: A
Nova Literatura da Guiné-Bissau, (1998), Ora di Kanta Tchiga ( 1998), que
fazem parte da Série Literária, Coleção Kebur[18] n 7 e 8 respetivamente e o Desafio
de Escombro: Nação, Identidade e Pós-colonialismo na Literatura Guineense
(2007). Além dessas três obras, a autora tem artigos publicados que, de certa
forma, refletem profundamente sobre a cultura, a política e a vida social na
Guiné-Bissau. É a ela que damos a palavra:
Minha leitura levou-me a debruçar-me e a
refletir sobre textos ainda molhados de tinta, a partir não só do meu prazer de
ler como no afã de divulgá-los, em primeiro lugar aqui na própria Guiné-Bissau,
mas também de levar para fora do país os seus autores, de tornar evidente que
finalmente a Guiné-Bissau podia – e devia – ser incluída na comunidade
literária dos países de língua portuguesa e não só (AUGEL, 1998, p. 13).
Não sabemos até que ponto podemos falar da
literatura na Guiné-Bissau. Falar da literatura num país como Guiné, um país
recém independente, acima de tudo com uma história de colonização muito
complexa, comparada aos países vizinhos e aos países da sua comunidade
linguística, é um exercício difícil. Acreditamos que, para falar da literatura
de um país, é muito importante fazer uma reflexão profunda sobre sua história
política e cultural, como já assinalamos anteriormente.
Não pretendemos ignorar as possíveis leituras e
interpretações de estudiosos e pesquisadores que nunca tenham pisado o chão
guineense. Porém, aspectos culturais, políticos e sociais, a nosso ver, são
grandes marcas da literatura guineense – que precisam ser vivenciados para
melhor compreensão dos textos literários. Até final de década de noventa, o
livro era ainda artigo de luxo – que podia pertencer somente à elite e a
oralidade cada vez mais constituía uma grande resistência por parte dos
guineenses. Isso para não referir à elevada taxa de analfabetismo no país
(AUGEL, 1998, p. 20-21). A Guiné-Bissau, por muito tempo, serviu de entreposto
de comércio de produtos e de escravos para Europa, como vimos antes. Vários
fatores, tanto de ordem social quanto de ordem política, por exemplo, a luta
armada para independência do país, as escravizações intensas feitas por colonos
portugueses por muitos anos e a falta de investimentos da infraestrutura
educacionais, indubitavelmente, fizeram desse país um lugar de espoliação, cuja
história vem sendo contada apenas recentemente.
A literatura guineense é praticamente esquecida
nos trabalhos apresentados por alunos de diversas Instituições académicas
brasileiras, tanto nas escolas quanto nas universidades públicas e privadas do
país. Nas coletâneas, tanto de prosa quanto de poesia, realizados por Manuel
Ferreira e Mario Pinto de Andrade, considerados grandes pesquisadores de
literatura africana de língua portuguesa, a presença da Guiné-Bissau é quase
invisível. Sempre surgem muitas razões para justificar a ausência de uma
literatura propriamente dita nesse país. Ao longo do trabalho em curso,
procuraremos trazer reflexões para esclarecer obstáculos e dificuldades para a
visibilidade da literatura guineense tanto no país, assim como nas diásporas.
Segundo a proposta de Hildo Honório Couto e
Filomena Embalo e outros pesquisadores[19], a nossa história literária
é marcada por três períodos: antes
da colonização, durante a
colonização e depois da
colonização. Essa proposta não fundamenta toda história literária do
país; porém, do nosso ponto de vista essa divisão traz alguns elementos que
auxiliam a compreender a trajetória literária no país.
Segundo o registro dos historiadores, o português
Nuno Tristão, em 1446, foi o primeiro a desembarcar no litoral guineense. Mais
de 100 anos após a sua chegada na Costa da Guiné, ainda não havia quase nenhum
registro de textos literários. Um ano após o descobrimento da região, havia um
texto escrito de Gomes Eanes de Zurara, Crônicas dos feitos da Guiné (1455).
Também foi registrado que, em 1594, surgiram os primeiros textos do livro Tratado
breve dos rios da Guiné e Cabo Verde, de André Álvares da Almada, o texto
que faz um esboço sobre os navegadores naquela região africana (COUTO
e EMBALO, 2010, p. 20).
De fato, durante todo esse período colonial, só
se pode contar a dedo os textos escritos por autores guineenses (AUGEL, 2007). Antes da
independência da Guiné-Bissau, não se pode falar da literatura, a não ser de
alguns textos de informações de missionários estrangeiros. Em 1879, já com a
capital no sul do país, em Bolama, o país conheceu a sua primeira imprensa, ou
tipografia em outras palavras do uso (AUGEL, 1996, p. 9).
A partir do início do século XX, vão surgir
vários Boletins e jornais, que registrarão as produções poéticas locais;
especialmente destacamos, em 1900, a recolha de narrativas orais (adivinhas,
provérbios e cantigas), intitulada Literaturas dos Negros, de autoria de
Marcelino Marques de Barros. Nomeamos aqui alguns dos boletins, jornais e
publicações com seus respectivos autores: o Boletim (1880-1974), Fraternidade,
folheto publicado em 1883, Boletins Sanitários (1918), o Boletim das Alfândegas
da Província da Guiné (1919), Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (1946-1973),
O Bolamense[20], (1956- vários anos). O
Folheto de poesia Poilão[21](1973), do Grupo Desportivo e
Cultural do Banco Ultramarino, é a primeira coletânea poética antes da
Independência. Dos Jornais, destacamos os seguintes: Ecos da Guiné (1920), A voz
da Guiné (1922), Pró-Guiné (1924), O comércio da Guiné (1931). Em 1975, a
fundação do jornal Nô Pintcha[22], jornal publicado até hoje, O Militante (1983 a 1985), revista
destinada a publicação das mensagens do partido PAIGC (COUTO e EMBALO, 2010).
Ainda nesse período literário, marcado também
pelas grandes publicações dos autores estrangeiros tanto no campo da prosa
quanto na poesia, destacamos Maria Archer, com o romance Desejo Mórbido
(1918), posteriormente Maria Fernanda de Castro, com quatro romances
intitulados: As aventuras de Mariazinha (1925), O Veneno do sol (1928), Mariazinha em África (1947) e novas
aventuras de Mariazinha (1959), respectivamente. Também temos as obras de
Julião Quintinha, com seguintes títulos: África misteriosa (1928),
Oiro africano (1929), Terra do sol e da febre (1932), Novela africana
(1933). Ainda merece destaque as obras de Afonso Correia Bacomé Sambú
(romance de 1931).
O cabo-verdiano Fausto Duarte não pode ser
esquecido nas produções dessa época, com a obra Aua (novela 1934), cujo título
significa força na língua fula. Parece-me que essa obra é escrita pelo autor
não só com a finalidade de encorajar os combatentes para uma luta de libertação
nacional, mas também para justificar as razões e a necessidade dos colonizados
terem direito a escola (SEMEDO, 2011, p. 29).
Em seguida, o autor aparece com três romances, respectivamente,
Negro sem alma (1935), Rumo ao Degredo (1939) e a Revolta
(1942). João Augusto da Silva, de origem cabo-verdiana, publica África:
da vida e do amor na selva (1963); Artur Augusto da Silva, irmão de João
Augusto da Silva, publica, durante esse período, O cativeiro dos bichos (1969).
Antes de fechar as publicações estrangeiras que marcaram esse período, não
podemos de forma alguma deixar de registrar a obra de Georgette Emília, Na
Guiné com o P.A.I.G.C (1975) e de João Ferreira, Uaná: uma narrativa
africana (1986) (AUGEL, 1998, p. 59-60).
Dentro desse período rico em obras publicadas por
estrangeiros residentes na Guiné-Bissau, podemos encontrar poucas de autores
nascidos na Guiné. Destaca-se apenas o conto Amor e Trabalho (1952), de James
Pinto Bull, irmão de consagrado linguista Benjamim Pinto Bull, considerado o
primeiro conto de um nativo da Guiné-Bissau.
A poesia não deixa de integrar esse período,
embora tenhamos uma lista pequena de poetas. Nessa lista constam os
seguintes nomes e títulos dos seus respectivos poemas: Hugo Rocha, com poema
Fula de Bafatá; Augusto Cruzeiro de Cértima, com o poema Entrando na
Guiné; Augusto Casimiro, com o poema Guiné em seu Portugal Atlântico (1955).
Maria Fernanda de Castro, autora já citada, é destaque também desse mesmo
período, com o poema " África Raiz" datado de 1966. Por último,
fechamos com Armor Pires Mota, com Baga-baga, datado de 1967 (COUTO;
EMBALO, 2010).
Assim como a prosa, a poesia também toma conta da
alma guineense no período da colonização; apresentamos alguns autores
publicados nesse período. Carlos Semedo foi considerado o primeiro autor a
publicar um livro de poemas. Semedo publicou, em 1963, um volume de poesia no
jornal o Bolamense, intitulado Poemas. Ao seu lado destaca-se seu
conterrâneo, Armando P. Pereira. Mas há várias versões que nomeiam esse segundo
citado como o pioneiro de publicação poética guineense. Como assevera Odete
Costa Semedo: “Porém, em 1963, ainda no período colonial, Carlos Semedo publica
o seu primeiro livro de poemas, registado como o primeiro livro individual de
um guineense” (SEMEDO, 2011, p.26).
A literatura guineense anda lado a lado com a
história do seu próprio país. Não há como falar da literatura sem pisar no
"tapete" da história da luta pela independência do país. Mesmo antes
do início de guerra de libertação nacional (1963), já havia obras de cunho
identitário e de denúncia ao colonialismo. Por exemplo, Amílcar Lopes Cabral,
um dos poetas fundamentais do período da luta pela independência, já havia
escrito, quando ainda era jovem, com apenas 21 anos, em 1945, em Cabo
Verde, ‘Poema’, considerada a poesia mais conhecida desse líder político.
O sujeito poético já reivindicava seus direitos:
Meu grito de revolta fez vibrar os peitos
de todos os Homens,
Confraternizou com todos os Homens
E transformou a Vida...
Também expressa seu desejo de ser livre, livre ao lado do seu povo.
como se vê nos últimos versos do mesmo poema:
Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá
longe,
Muito longe,
Na minha garganta!
Na garganta de todos os Homens[23]
[...].
De fato, há um certo número de poetas guineenses
que transformaram seus versos em armas de combate. Destacamos os seguintes
autores desse período. Tais destaques norteiam-se pela força que os seus
escritos carregam e pelo papel político exercido durante a luta armada pela
independência. O primeiro é Amílcar Cabral, autor já mencionado, fundador do
PAIGC, um dos grandes intelectuais da África. Amílcar Cabral não somente é
autor de muitos poemas de revolução, mas também é dele a autoria do hino
nacional da Guiné-Bissau (AUGEL, 2007). O desejo de um país livre da dominação
portuguesa era visto com frequência nas suas obras. Lembramos aqui o poema ‘Ilha’,
os primeiros versos já registram a falta, a nudez e a sede:
Tu vives – mãe adormecida
Nua e esquecida,
Seca
Fustigada pelos ventos,
Ao som das músicas sem músicas
Das águas que nos prendem[24] [...].
O segundo poeta dessa lista é Vasco Cabral, um
dos pioneiros da poesia guineense. Quando falamos de Cabral, vem logo à memória
a sua obra bem conhecida: A luta é minha Primavera (1981). De fato, o
título tem todo sentido, do ponto de vista literário, para despertar a nossa
memória do que foi o jugo colonial. Era preciso lutar para se livrar da forte
opressão portuguesa. Era preciso que os guineenses entendessem que a liberdade
estava em primeiro lugar, ainda que custasse sangue: Esta é a terra dos nossos
avós!/ fruto das nossas mãos/da flor do nosso sangue. Como dizia Fanon, no
livro Condenados da Terra (2006),
violência é entendida como a mediação real, ou seja, o homem colonizado
liberta-se em e pela violência.
Não há como negar que a nossa literatura começou
a florescer a partir do ano 1973, isto é, depois da independência do país. A
partir desse ano, surgiram vários poetas, presentes tanto nas antologias
poéticas quanto nas publicações individuais. Em 1973, foi publicado ‘Poilão’,
obra denominada por muitos pesquisadores como Caderno de poemas, com
mais ou menos 30 páginas de autorias guineenses, cabo-verdianas e portuguesas.
António Baticã Ferreira foi um dos guineenses destacado dessa antologia
poética. Depois de quatro anos, em 1977, surge a publicação que marcou para
sempre a história da nossa literatura, a famosa Mantenhas para quem luta,
organizada por Manuel Ferreira. O prefácio não registra autoria, mas muitos
especialistas da área entendem que o autor do referido prefácio foi o próprio
Manuel Ferreira.
A palavra mantenha, que em crioulo
significa cumprimento, para quem lutou, sem dúvida, fazia todo sentido quando
se falava de um país que saíra recentemente da guerra colonial. Os combatentes
mereciam ser cumprimentados e celebrados com palavras de esperança e votos de
uma Guiné melhor. Foi um cumprimento para cada combatente que deu a vida em
prol da liberdade do nosso chão. A referida obra conta com participação de 14
autores guineenses, e com 51 poemas dedicados aos combatentes da liberdade da
pátria. Observamos, contudo, que não consta nenhuma figura feminina nessa
coletânea.
Quando falamos que é a partir de década de
setenta que a literatura guineense começou a florescer, é porque estamos a
referir os gostos de palavras expressadas com sentimentos profundos de dor de
cada poeta ali presente. Ali já havia um estilo próprio e comum dos poetas,
fugindo, assim, de uma literatura avulsa[25], na qual os autores
publicassem seus sentimentos individuais, sem uma articulação que sustentasse
as vozes comuns. Nos versos dessa antologia existe fel, mas, ao mesmo tempo,
notamos um sentimento de cantos alegres como os passarinhos que encontram seus
ninhos.
Notamos que, depois dessa publicação, houve um
grande interesse dos poetas no exercício literário do país. Já no ano seguinte,
em 1978, Francisco Conduto de Pina publicou uma coletânea de poemas, intitulada
Garandesa di no Tchon – A grandeza do nosso chão / As belezas da nossa
terra. Essa obra foi considerada a
primeira obra literária individual, após a independência do país, como vimos
anteriormente. No mesmo ano, foi publicado Momentos primeiros da construção,
uma antologia poética que contou com 35 poemas e registrou 12 autores
participantes.
Vale a pena dizer que nessa coletânea temos a voz
poética de Mariana Marques Ribeiro, hoje, pouco conhecida no mundo literário
lusófono e pouco lembrada quando se fala de escritoras guineenses. Ela é única
voz feminina desse projeto literário que resplandeceu, na nossa literatura, nos
anos 70. Depois dessas duas obras importantes acima referidas, houve uma sucessão
de obras antológicas, como Os continuadores da revolução e a recordação do
passado recente, antologia publicada em 1979; Antologia poética da
Guiné-Bissau, de 1991; O Eco do pranto: a criança na moderna poesia
guineense, de 1992, organizada pelo António Soares Lopes Júnior,
conhecido no mundo literário como Tony Tcheka. Essa coletânea reuniu grandes
vozes poéticas da época até aos dias de hoje, entre eles: Agnello Regalla,
Conduto de Pina, Hélder Proença, Vasco Cabral, Mariana Marques Ribeiro, Jorge Cabral
e Pascoal D' Artagnan Aurigemma.
A década setenta, de certo modo, foi vista, nas
reflexões de muitos pesquisadores das literaturas africanas de língua
portuguesa, como a década de ascensão da literatura guineense. Segundo Hildo
Honório Couto e Filomena Embalo, é a fase do terceiro período que representa
muito bem a identidade da literatura guineense. De acordo com esses autores, a
literatura guineense desse período era marcada pela afirmação da nacionalidade
e da pátria, como fase de ‘construção da nação’ (COUTO e EMBALO, 2010).
A poesia foi muito presente desde cedo para
afirmação da literatura guineense. Já a prosa, por sua vez, só começou a
afirmar-se a partir dos anos 90, ganhando um espaço maior nas publicações de
autoria guineense. Dois autores se aventuraram no mundo da ficção nesse
período. Em 1993, foi publicada uma coletânea de contos, A escola, de
Domingas Barbosa Mendes Samy; posteriormente, veio à publicação do romance Eterna
Paixão, de autoria de Abdulai Sila, escrito na década 80, porém publicado
apenas dez anos depois, em 1994. Mesmo assim, Eterna Paixão foi considerado o primeiro romance escrito por
um guineense. A segunda obra de Sila, A Última Tragédia, foi publicada
em 1995 e, em seguida, o autor publicou Mistida, em 1997.
Depois desses dois autores na área de ficção,
surgiram várias publicações individuais, tanto no gênero de poesia quanto no
gênero de prosa, entre elas: Entre o Ser e o Amar (1996), de Odete Costa
Semedo; Noites de Insônia na terra
adormecida (1996), de Tony Tcheka; Kikia Matcho (1998), de Filinto
de Barros, que analisaremos nos capítulos posteriores; Contos de N'Nori
(2000), de Carlos Edmilson; Sonéá:
histórias e passadas que ouvi contar I e Djêni: histórias e passadas que ouvi
contar II, dois volumes de contos publicados em 2000, de autoria de Odete
Costa Semedo; Testemunhos di Mbera,
um livro de contos, de Sepa Ié Có, publicado em 2002; Os Contos da cor do tempo(2004), livro de contos, publicado pela
editora Ku si Mon, no seu décimo aniversário.
Concordamos com Cuti, pseudônimo de Luiz Silva,
escritor brasileiro, uma das vozes contemporâneas mais respeitadas da
literatura negra brasileira, quando afirma que “a literatura é uma forma de se
dizer presente, de reagir contra todas as formas de apagamento existentes na
sociedade”[26]... A literatura guineense,
de certo modo, procurou "dizer presente", através das pequenas estórias,
provérbios e adivinhas, repositórios da tradição oral do país.
Todas essas manifestações da oralidade africana
são diversas formas de se "dizer presente", de marcar presença, de
reagir contra todas as tentativas de apagamento existentes na sociedade. Registra-se
que, só em 1879, foi fundada a primeira tipografia do país, conhecida como
Imprensa de Bolama. Em 1924, foi fundado o primeiro jornal do país, denominado Pró
Guiné. E, só em 1958, a Guiné possuiu um estabelecimento de ensino
secundário. Comparada com Cabo Verde, a educação na Guiné conta o atraso de um
século. Tratando-se das publicações literárias, só em 1963, a Guiné-Bissau teve
a primeira publicação literária no país, o livro Poemas, de Carlos
Semedo, citado anteriormente. Todo atraso é decorrente, como tentamos mostrar,
dos grandes problemas socioculturais que a Guiné viveu durante todo o período
de colonização.
Vários são os fatores a apontar para a explicação
desse desenvolvimento tardio. Além das dificuldades já nomeadas, outro fator a
apontar, é o fato de a literatura guineense ser pouco divulgada, a despeito de
esforços de pesquisadores como Moema Augel, que vem produzindo material sobre a
literatura guineense desde a década de 1990. Observamos também que essa falta
de interesse sobre a literatura guineense parece relacionar-s aos crescentes
conflitos internos, marcados por golpes de Estados e guerra civil.
Apesar de todas as dificuldades do surgimento da
sua escrita, acreditamos que a literatura guineense possui uma marca de
identidade própria, que, entre outros fatores, assenta nas diversidades
culturais de seu povo, com traços próprios e raízes alargadas. A literatura
guineense é um instrumento vivo para manifestações das nossas emoções, por mais
que elas tenham sido caladas e ameaçadas. A literatura guineense tem sido uma
forma de expressarmos as nossas dores. Ouso dizer ainda que ela é a melhor arma
do nosso povo, por meio da qual tem sido possível afirmar nossa cultura, nossas
crenças e resistir à opressão.
Acreditamos também que, por meio da palavra é
possível resgatar ou desenterrar o enterrado, pois a força da literatura
alcança as almas mortas. Porém, não duvidamos também que, se uma literatura não
for divulgada, ela poderá morrer como uma planta por escassez da água. A
literatura, com seu poder transformador, como outras manifestações da arte,
precisa ser regada, ou seja, expandida e discutida pelos leitores,
historiadores e críticos. Por isso, nossa maior preocupação, hoje, sem
questionamentos a priori, é tornar cada vez mais visível a literatura
guineense.
O angolano, Mario Pinto de Andrade, conhecido
como um dos pioneiros na divulgação da literatura africana de língua portuguesa
publicou Antologia da poesia negra de expressão portuguesa (1953), e,
mais tarde, Cultura negro-africana e assimilação (1958). Observamos,
contudo, que nessas coletâneas, Pinto Andrade só publicou um poema – ‘Meia
noite’ – do cabo-verdiano Terêncio Casimiro Anahory Silva. O poeta, de
nacionalidade cabo-verdiana, foi considerado guineense por ter ido ainda
adolescente para Guiné-Bissau (AUGEL, 1998, p.120).
Em outras coletâneas, no entanto, Anahory é
apresentado como natural de Cabo Verde. Quando o mesmo Mario de Andrade publicou
Antologia de temática de poesia africana (1976), apesar de ser
considerado na época, até nos dias de hoje, como amante e admirador da
Guiné-Bissau, apenas citou na antologia dois poemas de autores guineenses:
Agnello Regalla e José Carlos Schwarz. Já Manuel Ferreira, autor de grande
referência literária de literatura de expressão portuguesa, não muito diferente
de Mario Andrade, também não fez questão de elevar a literatura guineense. Na Antologia
panorâmica da poesia de expressão portuguesa, a qual deu título no Reino
de Caliban (1975) e na qual constam cento e trinta e oito poetas, Ferreira
apenas incluiu um único poeta guineense, no primeiro volume, António Baticã
Ferreira. Talvez para comprovar o argumento de “um espaço vazio” na literatura
da Guiné-Bissau. No entanto, já naquela época, como sabemos, havia outros
autores guineenses importantes, como, por exemplo, Amílcar Cabral, Vasco Cabral
e Hélder Proensa (AUGEL, 1998, p. 121).
Difícil entender o lugar ocupado pela literatura guineense,
em relação às demais literaturas africanas, sem refletirmos sobre o papel das
obras desses pesquisadores de renome. Por isso, considero grandiosas as duas
obras de Moema Parente Augel: A Nova Literatura da Guiné-Bissau (1998) e o Desafio de Escombro:
Nação, Identidade e Pós-colonialismo na Literatura Guineense (2007). Nas
duas obras, a autora fez profundas reflexões sobre o processo da formação da
literatura guineense e a evolução dos seus autores. Por isso, andamos de mãos
dadas com essas referências até final do nosso trabalho. Assim, poderemos dar
continuidade aos estudos literários guineenses, pois poucos são os
pesquisadores que fixam seus olhares na historiografia e discussão da
literatura guineense.
A partir do livro de Augel, percebemos a força
dos seus argumentos e as referências bem fundamentadas, para provar o quanto
que a literatura guineense tem sido silenciada:
Constata-se frequentemente que estudiosos
das literaturas africanas de expressão portuguesa nem ao menos se referem a
Guiné-Bissau nos seus escritos, como Alfredo Margarido ( 1980), que apresenta
um panorama geral das literaturas de todos os países africanos lusógrafos e
silencia quanto à Guiné-Bissau. Da mesma forma, a revista portuguesa Discursos
publicou um número inteiramente dedicado à literatura dos PALOP (FEV.1995),
não tendo, entretanto, incluído a Guiné-Bissau. Tampouco Salvato Trigo detém-se
nesse país em seus trabalhos, dos quais destacam-se os Ensaios de literatura
comparada afro-luso-brasileira (AUGEL, 2007, p. 107).
Todos os pontos demarcados até aqui, sem sombra
de dúvidas, nos revelam caminhos de uma literatura invisibilizada. Para que a
literatura guineense seja apreciada e conhecida como as demais da sua
comunidade, é preciso muitas mãos para regá-la. Afinal, como alguém pode ser
conhecido sem ser apresentado? Lembramo-nos aqui das palavras do grande crítico
brasileiro, Antônio Candido, no seu importante livro, Formação da literatura
brasileira, "comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca.
Mas é ela, não outra, que nos exprime” (CANDIDO, 1918).
O que nos toca, mais profundamente, nessa frase
de Candido, são essas três palavras: pobre, fraca e exprime. Estamos
conscientes de que a literatura guineense teve uma aparição tardia, comparada
às literaturas de Angola e Moçambique, porém, ela está a florescer junto com
seus autores. Nesse sentido, ela é rica, ela é forte, ela é expressiva. Nas
palavras de Moema Augel: “diante das lacunas a que a literatura guineense é
exposta é preciso comprovar a urgência de um maior intercâmbio entre os
diferentes países de língua oficial portuguesa e a necessidade de um trabalho
de divulgação que precisa começar, sobretudo dentro da própria Guiné-Bissau”
(AUGEL, 2007, p. 107).
A utilização do crioulo nos textos de Abdulai Sila,
Odete Semedo, Tony Tcheka, Filinto de Barros e tantos outros são formas de
preservar a tradição oral e valorizar a nossa própria identidade. Podemos
também levar em consideração que essa fusão da língua crioula e da língua
portuguesa nos textos de Abdulai Sila, Odete Semedo, Tony Tcheka e Rui Jorge
Semedo enriquece a nossa literatura, tornando-a mais viva e expressiva. Todos
esses autores demonstram que a língua crioula traz em si sentimentos profundos,
cuja tradução, muitas vezes, é difícil, tornando inviável a expressão das
emoções originais. As palavras podem ser traduzidas, mas surgem sempre vazios
ao traduzirmos os sentimentos poéticos. Esse é um dos motivos expressos no
poema de Maria Odete Costa Semedo, quando o sujeito poético afirma não saber
“em que língua escrever para contar histórias das mulheres e dos homens do seu
chão”. Observemos o poema:
Em
que língua escrever.
Contando
os feitos das mulheres
E
dos homens do meu chão?
Como
falar dos velhos
Das
passadas e cantigas
Falarei
em crioulo?
Falarei
em crioulo?
Mas
que sinais deixar
Aos
netos deste século?
Ou
terei que falar
Nesta
língua lusa
E eu
sem arte e nem musa
Mas
assim terei palavras para deixar
Aos
herdeiros do nosso chão
Em
crioulo gritarei[27] [...].
De acordo com o texto acima, questiona-se a
língua que deve ser utilizada no poema. Se escolher o português, o sujeito
poético certamente não chegará à mensagem aos herdeiros do seu chão. Se
escrever em crioulo, acredita que a mensagem será guardada para gerações
vindouras. Optou por escrever, então, em duas línguas para deixar seus textos
vivos.
É desse ponto que desejamos partir, ou seja, é a
partir dessas ideias que gostaríamos de desenvolver nosso trabalho, mostrando
como a língua crioula tem sido vital para a nossa sociedade e para a formação
de nossa identidade nacional. Ao longo do trabalho, procuraremos argumentar que
a língua portuguesa, mesmo sendo a língua oficial, não é a língua de uso no
cotidiano guineense. De tudo que procuramos mostrar, resta dizer que a Guiné
sempre careceu de uma política séria no âmbito educacional: sem incentivos e
sem liberdade para produções literárias. A independência, sem dúvida, trouxe a
liberdade da opressão colonial; por outro lado, desde então, a maior parte das
autoridades de estado não permitiram a liberdade de expressão nem deram apoio à
divulgação da cultura guineense. O país ainda conta com poucas bibliotecas e
centros culturais. Até o INEP, importante órgão cultural, foi destruído durante
a guerra civil de 1998. É diante de tal panorama adverso que acreditamos, sem
nenhuma dúvida, que a literatura guineense é feita de resistência e luta.
CAPÍTULO II
CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO CULTURAL
GUINEENSE
2.
Adivinhas: um espaço de reafirmação de
comunhão entre os mais velhos e os mais novos.
Onde
quer que haja humanos, há história, com ou sem escrita (KI-ZERBO. Joseph).
A Guiné-Bissau é um país,
como outros países africanos, que ainda preserva muito as tradições orais, embora
as práticas dessas tradições estejam perdendo espaço e dando lugar às novas mídias
culturais. Porém, no interior do país, ainda se vê, nas noites escuras de luar,
os mais novos à volta de uma fogueira, em torno de um homem ‘mais velho’, como
chamamos os anciãos na maioria dos países africanos.
O papel das práticas
tradicionais como advinhas, estórias e provérbios é a transmissão dos valores
de uma comunidade, é a educação e a expressão da cultura transmitida de geração
em geração. Essas tradições, também, enriquecem a memória dos mais novos,
transmitindo saberes e regras de comportamento social. Por isso, enfatizamos,
aqui, a ideia de Hampâté-Bâ, quando diz: “quando morre um velho é uma
biblioteca que se perde” (Bull, 1989, 168, apud COUTO, 2009, p. 51). O autor,
através dessa afirmação, nos mostra a grande importância dos mais velhos nas
sociedades africanas. A oratura é também divertimento, e não só gosto pelo
saber. Segundo Moema Augel: [...] “a literatura oral ou oratura é um acervo
transmitido pela voz e pela memória, constituído pelas histórias tradicionais,
provérbios, adivinhas, cantigas, manancial do saber e de criatividade populares”
(AUGEL, 2007, p. 50).
Apesar do advento da
modernidade em algumas cidades como Bissau, Gabú e Bafatá, as tradições orais
ainda se fazem presente no país. Os mais velhos, conhecidos, também, no meio
social guineense, como “Os garandis”, guardam ainda na memória as riquezas
dessas tradições para passar aos filhos, netos, bisnetos e vizinhos, na África,
é considerado como pertencentes à família. Como já referimos anteriormente, o
país possui mais de vinte e sete grupos étnicos. Cada um desses grupos possui
suas características culturais próprias e muito diferentes umas das outras. Por
isso, as manifestações orais guineenses são de diversas formas, de acordo com a
etnia e a região de cada grupo. Cada adivinha, cada estória e cada provérbio,
ainda que contado de maneira diferente, vai transmitir as mesmas mensagens de
vida nos grupos étnicos.
Ou seja, os anciãos de
diferentes etnias não se expressam da mesma forma ao contar estórias,
apresentar adivinhas ou empregar provérbios; usam enunciados de acordo com
contexto linguístico de cada etnia; porém, como dissemos anteriormente, o sentido
ou fundo moral é o mesmo. Contudo, atribuiu-se um provérbio ou uma estória a determinado
grupo étnico, tendo em conta o peso das palavras e da atenção que o contador transmite
com tais narrativas orais.
As tradições orais têm grande
importância na Guiné-Bissau, assim como no contexto africano, de modo geral. Elas
são importantes, também, na medida em que atuam na formação do indivíduo na
sociedade africana.
Se procurarmos explicar
o significado da adivinha dentro do contexto africano podemoremos dizer que as
adivinhas são jogos plenos de exercício da memória. Ao mesmo tempo, elas servem
para compartilhar os conhecimentos e preservar a memória coletiva de um povo de
geração em geração.
O jogo ou divertimento
com as adivinhas acontece à noite, depois dos duros trabalhos do dia. Nesse
encontro à volta da fogueira, também, não é surpresa ouvir dos mais velhos os
provérbios e a narração dos contos tradicionais. Nessas noites, como
beneficiários das tradições orais passadas, são as crianças que acendem a
fogueira e, a volta dela, sentam-se. Ali há sempre a presença de um ancião ou
anciã experiente, conhecedor das realidades sociais e culturais da aldeia e do
país. A noite é sempre de muita alegria, pois as palavras enaltecem o sentido
da vida nesse mundo.
Vale salientar que, no
contexto africano, as adivinhas são, nada mais, nada menos, que brincadeiras para a diversão, e consistem na
prática cultural em que se trocam os conhecimentos entre um grupo de pessoas de
mesmo laço de parentesco, ou de pessoas da mesma aldeia, lembrando que na
tradição africana, os vizinhos convivem como se fossem da mesma família. Hoje
em dia, nos centros urbanos, quase não se veem mais praticantes dessa belíssima
manifestação cultural africana, tendo em conta o advento e o avanço das mídias
culturais. Nos centros urbanos onde a modernidade se faz presente junto com a
valorização das práticas culturais importadas percebe-se que as novelas
brasileiras e os filmes indianos, por exemplo, ganham espaço na diversão por
parte das meninas, enquanto que os rapazes se voltam para a discussão de
futebol da liga espanhola, portuguesa, italiana e inglesa – não se preocupando
muito com a valorização cultural do país.
A cidade de Bissau, por
ser a capital do país desde 1942, é um dos lugares onde as manifestações
culturais tradicionais vão morrendo a cada dia, devido à concentração de
diferentes grupos étnicos, vindos de diversas partes do país e dos empresários
estrangeiros que não levam apenas suas mercadorias, mas, também, suas culturas,
acelerando a aculturação do povo de Bissau e dos seus diversos grupos étnicos. Lamentavelmente,
a tradição da cultura da adivinha, assim como outras manifestações culturais
guineenses, extingue-se dia a dia.
Contudo, em outras regiões,
como, por exemplo, Bolama, Cacheu, Mansoa, entre outras, prevalece, ainda, o
interesse em expandir a cultura guineense por meio da oralidade. Há ainda grupos
que se reúnem à noite para contar e ouvir estórias e praticar o jogo das
adivinhas.
A nossa grande
preocupação neste capítulo é apresentar as adivinhas tradicionais guineenses,
mostrar a sua importância na comunhão entre os mais velhos e mais novos na
africana, principalmente na Guiné-Bissau, onde a oralidade ainda apesar de tudo
é uma grande marca. Hoje, apesar de as adivinhas terem perdido muito seu espaço
de pertença, comparando com outros tempos, ainda exercem, com eficácia, seu
papel no processo de comunhão e de harmonia entre os povos guineenses.
As adivinhas constituem
uma grande riqueza cultural dos povos africanos. Elas manifestam-se de forma
clara e preserva a memória coletiva. Dos nove até os meus treze anos de idade
vivia na zona sul do país, em Djiu de
Colbert, uma das localidades pertencente a região de Tombali. Desde então,
até a data presente, preservo ainda na minha memória as noites inesquecíveis,
em que ficávamos em volta de uma fogueira, com olhos cheios de água, ouvindo o
meu avô Arnaldo, já falecido, a contar estórias e a nos fazer decifrar
adivinhas. Esses momentos, sem dúvida, influenciaram bastante a minha paixão
pela literatura. Mais adiante, apresentaremos uma lista de adivinhas que me
trazem gratas recordações dessas noites.
Cada uma das adivinhas
guineenses possui diversas formas de narração, dependendo da habilidade e do talento
de cada contador. Apesar de apresentarem variações, elas possuem um sentido
único, ou seja, não há contradições nas possíveis respostas levantadas entre os
ouvintes e aquele que lança, que apresenta adivinha. Neste sentido, percebemos
que há uma grande dinâmica entre quem conta e quem encontra a adivinha
proposta. Essa dinâmica, essa interação, de certa forma, enriquece a harmonia e
o espaço de comunhão para o bem-estar de todos os povos africanos. Por outro
lado, esse compartilhar, também, aumenta a capacidade de pensar e de enxergar o
mundo que nos rodeia. Vejamos, por exemplo, as variações da adivinha a seguir:
a) Dus rapas se na kuri, e kata panha ñutru, ma se firma, e ta perto ñutru.
(Dois rapazes quando correm juntos, nenhum deles consegue ultrapassar o outro;
mas, se estão parados, ficam perto um do outro. Resposta: Os dois pés.
b) Dus fidjus djemia, se na kuri, e kata panha ñutru, ma se firma, e ta perto ñutru. (Duas
gêmeas quando correm juntas, nenhuma consegue ultrapassar a outra; mas, se
estão paradas, ficam perto uma da outra. Resposta: Os dois pés.
c) Dus bedjoti se na kuri, e kata panha ñutru, ma se firma, e ta perto ñutru.
(Dois velhos, quando correm juntos, nenhum consegue ultrapassar o outro; mas,
se estão parados, ficam perto um do outro. Resposta: Os dois pés.
Observemos que são três
adivinhas apresentadas de maneiras diferentes, mas percebe-se que todas elas
possuem a mesma resposta e um único sentido perante a situação e argumentos do
apresentador. As diferenças nessas adivinhas consistem nas seguintes palavras: Rapas, rapaz, djemia, gêmea, e bedjoti,
velho. Muitas vezes, essas mudanças de nomes para uma mesma adivinha podem
confundir os ouvintes nas respostas. Não é tão estranho ouvir contar na mesma
noite uma adivinha que tenha a mesma resposta e o mesmo sentido, porém dita de maneira
diferente. Como asseveram Teresa Montenegro e Carlos Morais, “uma adivinha é
sempre um jogo que se pode caracterizar por uma regra única: a finalidade é a
descoberta” (MONTENEGRO; MORAIS, 1979a, p. 58 apud AUGEL, 1998, p. 44).
Esse exercício de
descoberta possibilita mais interesse dos participantes memorizarem a adivinha
já contada, ainda que a forma da enunciação seja diferente. É grande verdade
que, quando uma pessoa corre, os pés não ficam numa mesma posição. Mas se essa
pessoa ficar parada, com certeza, os dois pés vão ficar próximos. Os argumentos
das respostas de adivinhas são grandes marcas dessa manifestação cultural. A
resposta de uma adivinha deve possuir uma lógica, de acordo com a vivência e os
costumes locais. Nunca se pode apresentar uma adivinha que foge a coerência das
realidades locais. Muitas das vezes, a resposta de uma adivinha é discutida,
por muito tempo, até se chegar a uma conclusão entre o contador e os ouvintes,
sem fugir do contexto da localidade.
A noite de adivinhas é
sempre marcada pela presença de um mais velho – conhecedor da cultura local e
guardião dos ensinamentos tradicionais dos ancestrais – saberes que ele bem
domina. Geralmente, todas as adivinhas contadas nas noites de fogueiras são
baseadas na realidade sociocultural do povo guineense. Os contadores das
adivinhas não devem fugir a essa regra. As adivinhas começam sempre com um
habitual termo conhecido por qualquer guineense que teve tanto a sua infância
no interior quanto na cidade, Bissau, a capital.
A frase com que começa
uma adivinha é: dibinha, dibinha[28] os ouvintes, muito animados,
respondem em coro: dibinha, sertu[29], adivinhando,
procurando a resposta com entusiasmos. Caso os ouvintes da roda de fogueira não
responderem divinha sertu, o contador
não procede com a estória. Só com as
respostas da plateia que o/a contador/a terá o prazer de dar continuidade ao
jogo. Se a adivinha for conhecida por integrantes dessa roda, a resposta é
disputada entre todos que buscarão ser os primeiros a acertarem a respota. E o
apresentador fica sem graça, dando oportunidade a outro participante. Esse
integrante toma o lugar da fala para a sua adivinha, é assim sucessivamente.
É bom ressaltar que
essa interação ou diversão entre os mais velhos e os mais novos, denominada dibinha, dibinha, geralmente acontece nas noites, muitas vezes, nas noites
de luar, como já referimos anteriormente, também, durante o dia. Mas, antes de
tudo, a pessoa que deseja ouvir ou apresentar uma adivinha, deve fazer um
ritual que consiste em matar uma formiga. Se esse ritual não acontecer, não há
possibilidade de prosseguir com o jogo da decifração. Segundo os mais velhos, se
dibinha, dibinha acontecer durante o dia, sem que os indivíduos que participam
dela não realizem o ritual de matar uma formiga, há riscos de se perder um
membro da família.
Por mais que o espaço das
adivinhas pertença, sobretudo às crianças, ali há muitas obscenidades sobre o
contexto social guineense. Por exemplo, as três adivinhas abaixo conotam respostas
de obscenidades, mas isso não é considerado importante no contexto guineense.
Tudo é tratado num ato de brincadeira e diversão entre os amigos e membros da
família: a) Fonti tene badja[30], b) Ntene batata na quintal, nunca nkumel, son djintis
di fora kuta kumel[31], c) Tris omis bas di tchuba, son um son delis ku
modja[32].
Para Teresa Montenegro
e Carlos Morais a “adivinha veicula normalmente, numa forma leve e sugestiva, conhecimentos
que correspondem às necessidades da vida no meio do mundo que nos circulam” (MONTENEGRO;
MORAIS, 1979b apud COUTO; FILOMENA,
2010, p 185).
As crianças,
geralmente, hesitam e demonstram sempre nos rostos grande alegria e curiosidade
para contar, apresentar suas adivinhas – que, muitas vezes, foram escutadas nos
dias anteriores da boca de um contador. Elas ficam prontas para ouvir estórias
dos animais, dos homens, nas noites de fogueira; e o que não faltam são as
adivinhas. O vencedor de uma noite de adivinha sempre é premiado, como forma de
fazer com que as outras crianças participantes do jogo se esforcem em encontrar
as respostas das adivinhas ora apresentadas para os próximos encontros. A
resposta de uma adivinha pode ser encontrada na convivência do dia a dia dos
moradores da aldeia. Quando uma criança é uma boa observadora desse espaço de
interação passa, também, a preservar a memória coletiva de sua comunidade
social.
O espaço em que ocorre a
manifestação cultural é chamado na expressão guineense de Jumbai[33]. As adivinhas
constituem um grande esforço de exercício da memória. Como dissemos
anteriormente, todas as perguntas para adivinhação são feitas com base na
vivência local, ou seja, nenhuma advinha foge da realidade social e cultural da
aldeia.
A noite, no contexto
guineense, é sagrada. Percebe-se que, além de jogos de adivinhas, essa tradição
de Jumbai serve como um espaço de
interação social. Os contadores de adivinhas desempenham um papel muito importante
no processo educativo e na valorização da cultura guineense. As adivinhas,
assim as estórias, contadas dentro do contexto africano têm o poder de nos
levar a refletir sobre o nosso papel no mundo. No dizer de Moema Parente Augel:
“através dessas estórias, afloram de modo plástico e convincente as
experiências e vivências das diferentes comunidades culturais que constituem a
textura da sociedade guineense” (AUGEL, 1998, p.44).
Observamos ainda que o apresentador das adivinhas procura sempre contar também estórias de
modo a advertir as crianças ou qualquer membro da família sobre as
consequências dos maus atos praticados, trazendo, às vezes animais como
personagens das estórias, apresentando um final em que esses animais pagam pela
consequência dos seus feitos. O narrador, de certa forma, procura apresentar
suas histórias aos ouvintes, fazendo uma reflexão sobre as consequências dos
nossos atos e escolhas. Estórias dessa categoria conduzem os ouvintes a pensar
no valor de levarem uma vida de honestidade.
A importância das adivinhas liga-se
também ao fato de ser uma forma de premiar a moralidade na sociedade. Mais
adiante, vamos apresentar algumas advinhas e seus proveitos para reflexão da
sociedade. Veremos que, muitas vezes, trazem conselhos e advertências por parte
dos anciãos. Além de tudo isso, no contexto social africano, as advinhas nos
ensinam a melhor maneira de viver na sociedade. Todas elas exercem, de fato, o
papel de educar, advertir, sobretudo, mostrar as consequências dos atos
praticados, e por fim, proporcionar uma lição de moral aos ouvintes.
Seguem algumas das adivinhas
que fizeram a alegria da minha infância e juventude:
ADIVINHAS
Bakas na lala mbes de tcheme reia, é na tcheme padja. |
Vacas no campo estão comendo areia, em vez de comerem
erva. Resposta: Piolho. |
Bentu si fila ku nha fidju
i ta dispil. |
O Vento despe o meu filho se lhe bate no
rosto Resposta: livro. |
Tchuba pudi tchubi, ma i kata modjal. |
Por mais que chova, ela não fica molhada. Resposta: Sombra. |
Dus pes na serka kuatru pe, pabia di um pe. |
Dois pés correm atrás de um pé, por causa
de um pé. Resposta: homem corre atrás de um porco,
por causa de pé de uma mandioca. |
Ntene tris badjudas, si um son falta
tarbadju, kil utrus kata pudi tarbadja. |
Tenho três meninas, quando uma falta ao
trabalho, as outras não conseguem trabalhar. Resposta: Três pedras de cozinha. |
Ke ku sta na meta di di mar. |
O que está no meio do mar. Resposta: a Letra A. |
Ntene un rapas si mandal i kata riba. |
Tenho um rapaz, quando lhe mandar, ele
não volta. Resposta: Anzol. |
N´sta li n´stala. |
Estou aqui, mas estou lá. Resposta: sentido. |
Dus badjuda mora na um
kasa, ma é kata odja ñutru. |
Duas meninas moram na mesma casa, porém, não se veem. Resposta: os olhos. |
Ntene un banda, n distindil na lala, un
dia nbin kema ki lala, ma banda ka kema. |
Tenho uma banda de tecido, estendi-a na
lala, um dia queimei aquela lala e a banda não queimou. Resposta: caminho. |
Ita leba, ma i kata
kume. |
Leva, mas não come. Resposta: colher. |
Nte um kriadu i ta djudan son si mara panu. |
Tenho um criado só me ajuda quando amarra
o pano. Resposta: vassoura. |
Ntene um badjuda i braba, ma i ta kunha sabi. |
Tenho uma menina é brava, mas cozinha
muito bem. Resposta: abelha. |
Ntene um baka si maral, kifri ta sai
fora. |
Tenho uma vaca e quando lhe amarro, o
chifre fica por fora. Resposta: fumo. |
Ntene um bulanha, si korta arus, i ta tchibi
son na un mon. |
Tenho um lugar alagado onde cultivo o meu
arroz, porém, quando o cultivo nele, apenas cabe na palma de uma mão. Resposta: cabelo. |
Ntene um kusinheru i kata ngabadu. |
Tenho um cozinheiro que cozinha muito
bem, porém, ele não aceita elogios. Resposta: sal. |
Ntene um baka si maral korda, ora ki na kume padja, si korda tan kurta. |
Tenho uma vaca e quando a amarro no
quintal para comer ervas, por mais que coma a erva, a corda fica mais curta. Resposta: agulha e linha de tecido. |
Nha kriadu si mandal bas di tchuba i kata modja. |
O meu criado eu o mando debaixo da chuva,
mas ele não fica molhado. Resposta: fala. |
Ntene um kanua, si na bai i ta leba pasajerus,
ma si na riba son remadur kuta riba. |
Tenho uma canoa, na ida ela leva vários
passageiros, mas quando regressa só volta o remador. Resposta: Uma colher. |
2.1.
Provérbios:
um jogo de palavras para pensar à sociedade.
Quando eu era ainda criança
gostava muito de ficar próximo dos mais velhos. Um dia, a minha mãe, muito
preocupada, me disse que eu ia envelhecer antes do tempo. Eu não queria
envelhecer antes do tempo, mas o meu desejo era conhecer mais e mais sobre as
tradições orais com eles. O que me mais me estimulava a me aproximar dos mais
velhos era, sem dúvida, a forma como eles falavam por meio dos provérbios. O
meu avô Arnaldo, por exemplo, era muito admirado nos conhecimentos orais que
aprendeu com seus pais; e fazia questão de preservá-los e compartilhá-los com as
pessoas ao seu redor. Ele era chamado de “Sabe tudo” em Djiu de Colbert.
O meu avô Arnaldo não passava
um dia sequer sem usar um provérbio que fizesse alusão às realidades
tipicamente guineenses. Ele tinha a palavra na ponta da língua – os ditos para
melhor refletir sobre os assuntos importantes de cada momento. Um dia, à tarde,
surpreendeu-me a reclamar de que não estava satisfeito do almoço... Olhou-me de
baixo para cima e lançou mais um dito para aquela tarde: Galiña ku kargadu ka sibi si kamiñu lunju (galinha carregada não
sabe se o caminho é longo). Fiquei o resto daquela tarde pensando nas palavras:
Galinha, carregada e caminho...
O provérbio usado por meu avô
para aquela situação queria dizer que a pessoa que não trabalha e é sustentada
não conhece sacrifícios da vida. Ela é levada: o caminho nunca será longo. Não
conseguia compreender imediatamente muitas coisas dos ditos populares
guineenses usados por vovô Arnaldo. Assim, eu ficava, às vezes, o dia todo, a
pensar naquelas palavras onde existiam segredos da vida. Mas ele, em algumas
noites de fogueira, além de contar estórias, procurava, de certo modo, explicar
cada dito, de acordo com os contextos em que foram usados. Eu mergulhava nas
estórias e nunca faltava uma noite de fogueira. Passado algum tempo, o próprio
tempo começou a me ensinar a desvendar certos segredos da existência humana,
que existiam dentro da cultura da oralidade guineense. Vivia precocemente um
mundo que ainda não me pertencia, em função da idade que tinha. A minha mãe
tinha razão – terminei envelhecendo antes do tempo... Aprendi a contar as
estórias muito cedo e passei, de certo modo, a me aproximar muito da forma como
os velhos falavam.
Cada estória, cada
superstição, cada provérbio falado era para mim uma maneira de entender a minha
sociedade e aceitar as realidades da minha própria cultura. Demorava a
compreender os sentidos de alguns provérbios, mas valia a pena ouvi-los, pois
tinha certeza de que, um dia, um dos velhos ia me interpretar os sentidos
daqueles ditos. A partir daí passei a adotar uma nova maneira de levar a vida;
enfim, compreendi o quanto de sabedoria existia no mundo dos provérbios.
O uso de provérbios no
contexto africano não é apenas para ensinar, mas para educar sem limites, pois
sua sabedoria se estende a todos os contextos da existência. Por isso, o
universo dos provérbios abraça a vida nos seus galhos. Os velhos, representantes
da sabedoria local, usam os provérbios, ciosos de que seus valores e
conhecimentos adquiridos ganharão asas para voar no espaço e no tempo, pois as
ideias transmitidas pelos provérbios sobrevivem na tradição viva, apontando
para o caráter imortal a oralidade.
Os provérbios, neste contexto, possuem uma grande dimensão cultural,
na medida em que permitem aos mais velhos exporem suas ideias em poucas
palavras. Dou aqui dois exemplos que ouvi da voz de um ancião guineense para
uma criança: kin ku ka tene mame i ta
mama dona (Quem não tem mãe, mama leite da avó), ou sufridur na padi fidalgu (O sofrimento nos faz nobre). O primeiro
provérbio quer exaltar o sentido da vida, do ponto de vista africano, mostrando
que a solidariedade e a preocupação com o próximo são, ainda, os melhores
aspectos culturais preservados na convivência do dia a dia dos africanos. O
segundo provérbio nos mostra outro lado da força dos africanos em lidar com as
situações dolorosas da vida, por mais que elas sejam cruéis. A nobreza e a
força de viver a vida, mesmo diante das dificuldades estão sempre na alma dos
povos africanos. Nesse sentido, os provérbios podem ser vistos como uma
doutrina filosófica, que enriquece a sabedoria humana. Os seus usos apontam,
portanto, para a crição de novos mundos.
Outro aspecto que merece ser destacado no uso dos provérbios são os
sentidos e circunstâncias em que eles são usados. Por exemplo, em uma situação
de conversa, um velho aperta a mão de um jovem em dificuldades e lhe diz: i ka tem kinti ku kata fria (Não há nada
quente que não possa esfriar).Observa-se que o velho não fez um discurso
prolongado – que podia durar horas e horas para consolar o rapaz. O velho falou
em poucas palavras, atendendo à necessidade do momento, e o rapaz conhecedor
das realidades locais absorveu o discurso.
Os países africanos, principalmente a Guiné-Bissau, como vimos,
passam por vários problemas sociais e políticos, sobretudo, em função dos
péssimos governantes que se sucederam desde independência. Essa situação de
desencanto da pós-independência se traduziu, naturalmente, na literatura, que
buscou, algumas vezes, nos provérbios, um instrumento de resistência capaz de confortar
o povo nas suas dores. Um dos exemplos pode ser visto no conto “Aconteceu em
Gã-biafada”, quando o casal de protagonistas ouve de uma mais velha um provérbio
fundamental para continuarem a lutar pela sua felicidade: kabulu ku na kuri pa gustu kata lestu di kansa. (cavalo que por um
gosto não se canas...) (SEMEDO, 2000, p.32). Como vemos, a persistência é a
mensagem principal que esse dito deseja transmitir, confortando o casal e
levando-o a continuar buscando a saída para seus problemas.
A orfandade é uma das duras realidades na sociedade guineense, devido
às guerras e aos conflitos armados internos, que aconteceram na maioria dos
países africanos. Outro aspecto que destacamos é a péssima condição financeira
de muitas famílias, para arcar com despesas na criação dos seus filhos, tanto
nas zonas urbanas quanto nas regiões rurais. Os provérbios Baka ku ka tem rabu, Deus ku ta banal, (à vaca que não tem rabo,
abana-a Deus.) ou ainda, kin ku ka tene
mame i ta mama dona (quem não tem mãe, mama leite da avó)[34] remetem à solidariedade
fundamental das pessoas da mesma aldeia com as crianças em situações de
orfandade.
Durante a luta armada o uso
dos provérbios ganhou uma grande amplitude na Guiné-Bissau, especialmente no
campo da música. É o que podemos observar, em algumas canções que Jose Carlos
Hans Schwarz compunha para repudiar a presença colonial no país. Destacamos a
música: po kata bida lagartu (pau não
vira crocodilo). Vejamos o uso dos provérbios na segunda estrofe da
canção: kuma po tudu tarda ki
tarda na mar i kata bida lagartu (pau, por mais que na água, nunca vira
crocodilo). Citamos ainda dois músicos: Binham Quimor, artista de nova geração,
numa das músicas intitulada bolseirus (estudantes),
traz um dos provérbios populares: si kabesa pirdi punta bariga (se perdesse a cabeça, pergunte a barriga). Já o
cantor Zito, conhecido como “Príncipe do mundo”, um dos cantores da nova geração,
usa frequentemente os ditos populares nas suas canções. Na música Chery: silvizason i ka limpu boka, (a
civilização não é saber falar).
Se, no passado, os escritores
guineenses usavam esse recurso da oralidade para embelezar e dar sentidos aos
seus textos, hoje, ainda, é percebido nos textos de vários escritores
contemporâneos tanto na poesia quanto na prosa os usos dos provérbios. Encontramos a sua utilização nos textos de
contos de alguns contistas com seus respectivos significados dentro dos
contextos em que foram empregados. Por exemplo, no conto ‘Desaparecido’, de
Julie Agossa Djomatin, publicado na coletânea Contos da Cor do tempo:
Ponto final. A partir
daí, faria um sermão ao seu irmão. Dir-lhe-ia que a tinha envergonhado ao estar
a espiar o Liberiano, que ao ouvir a sua voz e os seus passos no quarto
vizinho, ela colarase à parede para não ser vista nua pelo seu próprio irmão;
que se tivesse trepado mais alto e tivesse olhado mais de perto, tê-la-ia visto
à frente dele; que os homens -grandes tinham razão em dizerem que quem olha demasiado para a casa do vizinho
não vê o que se passa no seu próprio quintal (DJOMATIN, 2004, p.41, grifos nossos).
Na África, o conhecimento é ainda algo compartilhado por mais velhos
de geração em geração. Dizemos, frequentemente, que nós, os africanos, não
gostamos de prender os conhecimentos. Contudo, percebe-se que a cultura oral poucas
vezes é mencionada ou valorizada nas escolas. Não há uma política educativa que
conscientize sobre a importância da manutenção dos ensinamentos tradicionais e
da literatura do próprio país. O PEN tem como objetivo, nos próximos anos,
incluir no currículo escolar guineense o ensino da literatura guineense. As
crianças, adolescentes e jovens poderiam aprender muito com os velhos no dia a
dia. Hoje, muitos ensinamentos que aprendi da cultura local, entre os quais da
minha própria etnia, devo ao meu avô Arnaldo. Esses ensinamentos que adquiri
ainda criança - em casa, na rua, maioria das vezes, nas noites de fogueiras –
fazem parte da minha formação social como indivíduo na construção de um novo
mundo. Como observa Odete Costa Semedo:
Rememorações à parte
deve-se realçar que, na Guiné-Bissau, a oralidade ocupa um lugar muito
importante; o cantar é onipresente, pois acompanha o contar – a narrativa –, o
riso e o pranto, a alegria e a dor. O nascimento, a iniciação, o casamento, a
morte, os mortos e os ancestrais proporcionam momentos de exaltação coletiva e
são motivos para se entoarem as mais diversas canções. Por isso, diante de
reduzida fonte escrita sobre as tradições guineenses, julga-se que, mais do que
lamentar essa falta, é preciso tomar iniciativas que possam inverter a
situação, abrindo caminhos para estudos e pesquisas sobre esse volumoso e rico
patrimônio cultural (SEMDO, 2010, p. 26).
Para melhor estudo e apreciação desse patrimônio cultural guineense,
optamos em dividir alguns provérbios guineenses usados frequentementes em seis
temas com suas traduções em língua portuguesa. Partimos da listagem fornecida
por Hildo Honório Couto no blog de didinho, e também baseamo-nos em minha
própria experiência, ao longo de toda uma infância e juventude, convivendo com
os provérbios guineenses. Cada grupo temático conta com seis provérbios. Essa
divisão foi feita na base dos temas mais usados por mais velhos no contexto
guineense: Tendo em conta que, no crioulo guineense, existem várias maneiras de
grafar os vocábulos, preferimos usar os fonemas ( k,s, g) e dígrafos (dj, nh
e tch), devido a sua frequência comum
na fala e escrita da atualidade. Os temas são os seguintes: poder,
solidariedade, consequências, sabedoria, esperança e ingratidão:
PODER
Abo i rasa polon: si bu kai, bu kata kai abo
son. Dus galus kata kanta na um kapuera. |
Você é como poilão: se cair não cai
sozinho. Dois galos não cantam na mesma capoeira. |
Forsa di pis i na iagu. |
A força do peixe é na água. |
Kin ku mas bo lenha i mas bo fugu. |
Quem tem mais lenha tem mais fogo. |
Po tudu tarda ki tarda na mar, i kata bida
lagartu. |
Por mais tempo que fique na água, o pau não vira crocodilo. |
Onsa tudu brabu ki brabu,
i kata sibi pe di kabacera |
Por mais brava que seja a onça, não sobe
no imbondeiro. |
SOLIDARIEDADE
Bianda ora ki kusidu, i
katen dunu. |
A Comida cozida na panela não tem dona. |
Kin ku ka tene mame i ta mama dona. |
Quem não tem mãe, mama na avó. |
Lifanti ka ta pirgisa
ku si dintis. |
O elefante não cansa com seu dente. |
Si bu odja lifanti na djubi tapada, i ka entra,
i pabia i ka tene parenti dentru di quintal. |
Se o elefante vê uma cerca e não entra, é
porque não tem ninguém seu lá dentro. |
Garandis kuma un mon ka
ta toka palmu. |
Dizem os velhos que uma mão sozinha não
bate palmas. |
Tartaruga misti badja, mas koitadi el rabada ka ten. |
A tartaruga quer dançar, mas não tem
ancas. |
CONSEQUÊNCIAS
Bu kata sibi si bu mama
di bunda gros, son ora ki tene mandita. |
Você não sabe se a sua bunda é grande, a
não ser quando ela tem furúnculo. |
Bonitasku di iagu salgadu i bonitu, mas i
kansadu bibi. |
A beleza da água salgada é bonita, mas
ela é desagradável para beber. |
Bu sai na pilon, bu kai na balei. |
Você saiu do pilão, caiu no balaio. |
Ate pa pó sinti, kabaku prumeru kuta sinti. |
Para tronco sentir, primeiro a casca tem
que sentir. |
Fidju di si nsibiba
mora lundju. |
Filho de se eu soubesse mora longe. |
Fidju ta padidu tras di si pape, ma i ka tras di si mame. |
O filho pode nascer longe do pai, mas não
longe da mãe. |
SABEDORIA
Dunu di um udju kata brinka ku reia. |
Quem tem um olho não brinca com areia. |
Boka fitchadu kata entra
moska. |
A boca fechada não entra a mosca. |
Dunu di boka ka ta
pirdi ku kaminhu. |
Quem tem boca não perde o caminho. |
Garandis kuma kanua sem remu kata kamba mar. |
Os anciões dizem que canoa sem remo não
atravessa o mar. |
Djudé ka bai fanadu, ma i kunsi udju. |
O abutre não foi à circuncisão, mas é
educado. |
Kama ku bu ka dita nel, bu ka sibi si tene dabi. |
Você não pode saber que a cama em que não
deitou tem percevejo. |
ESPERANÇA
Baka ku ka tene rabu, Deus kuta banal. |
A vaca que não tem rabo abana-a Deus. |
Sufridur ta padi fidalgu. |
O sofrimento nos faz nobre. |
I ka tem kinti kuta fria. |
Não há nada que é quente, que não pode
esfriar. |
Garandis kuma amanha lundju, mas sta
pertu. |
Os anciões dizem que amanhã é longe, mas
está perto. |
Garandis kuma kin ku sumia di parmanha, i
ta kebra di tardi. |
Os anciões dizem que quem plantou de
manhã, escolhe os frutos mais tarde. |
Um dedu um dedu kuta intchi
puti di mel. |
Dedada em dedada enche o pote de mel. |
INGRATIDÃO
Bu sinta riba di baga-baga, bu na rui Tchon. |
Você está sentado sobre termiteiras, e
fala mal do chão. |
Kasamenti ta kaba, ma kunhudadia kata kaba. |
O casamento acaba, mas os laços familiares
não. |
Mursegu kuma i na missa Deus, riba di si
kabesa ki misa. |
O Morcego mija para cima, a urina cai em
sua cabeça. |
Panela na fala kaleron ka bu tisinan. |
A panela diz a caldeira: não me chamusque. |
Pekadur magru ta dana moransa. |
Alguém de maus costumes estraga toda a
comunidade. |
Puti furadu kata intchi iagu. |
Pote furado não enche de água. |
2.2. Contos orais
guineenses – o nosso contar de cada dia.
A oralidade não é apenas um meio de expressão
estética de uma sociedade ágrafa. É muito mais: é sobretudo a expressão de uma
comunidade, na qual a vida grupal desempenha um papel sumamente importante,
onde a vida comunitária ainda é dinâmica e continuadamente e preservada pelos
mais diversos instrumentos, pelo convívio e pela intercomunicação através da
palavra (AUGEL, in: SEMEDO, 2000, p. 8).
Os contos africanos, também
chamados de (estórias), são narrativas orais que, assim como as adivinhas, tem
o papel de facilitar e ajudar a preservação da memória coletiva dos povos
africanos. As nossas estórias têm asas. Elas andam de boca em boca, e cada um
conta do seu jeito, ganhando sempre asas para irem mais longe, isto é, dando
uma nova versão a cada novo contador. Os contos orais têm grande importância no
cotidiano guineense. Além de preservar a memória coletiva, eles também servem como
meios de ensinamentos básicos aos mais novos. Os africanos aprendem em cada
estória lições importantes para vida na sociedade. Dizem que os africanos
nascem com dom de contar estórias, herdado, assim, dos seus ancestrais. Mas
esse pensamento traduz apenas a relevância da contação de estórias na terra de Amílcar Cabral, e não um talento
inato do povo africano.
Na história da tradição oral,
o primeiro guineense a se aventurar na divulgação das estórias tipicamente
guineenses, por meio de recolha, é o Cônego Marcelino Marques de Barros. 1900
foi o ano em que o Barros transcreveu em duas versões (em língua crioula
guineense, língua mandinga e a língua portuguesa) as estórias que se passavam
no território guineense. Como assegura Moema parente Augel:
Foi o cônego guineense
Marcelino Marques de Barros, que havia divulgado, já em 1882, alguns poemas e
canções em crioulo, quem publicou, em 1900, sua Litteratura dos negros, onde
transcreveu no idioma original, além de no crioulo, canções e pequenas
histórias da tradição oral de diversas etnias de qualidade literária inconteste
(AUGEL, 2007, p. 85).
Marcelino de Barros é o
grande nome como referência da literatura oral guineense. Além de ter publicado
Litteratura dos Negros, o livro, no
qual ele procura dar visibilidade à língua crioula e às demais línguas étnicas
do país, Barros chama atenção, nessa publicação, pelo cuidado em preservar a
memória coletiva de algumas importantes etnias guineenses. Com intuito de ir
mais longe na divulgação da tradição oral guineense de diversas etnias locais,
Barros também publicou um ensaio, que intitulou: Guiné-Portuguesa ou breve notícia sobre os usos, costumes e línguas da
Guiné, publicado em 1882 (AUGEL, 2007, p. 100-101). Na referida obra,
Barros tentou mostrar a importância das línguas étnicas guineenses no processo
da afirmação e da identidade. Com esse livro, ele deu grande contribuição para
valorização e preservação da tradição oral guineense. Do seu caminho, seguiram
outros contistas guineenses, ou contadores de estórias, se assim queremos
nomear. Entre eles, Benjamim Pinto Bull, irmão de grande contista guineense James
Pinto Bull, que, em 1989, fez um belíssimo trabalho com a mesma finalidade do cônego,
que significou a divulgação e preservação da memória coletiva de povos da
Guiné-Bissau. Segundo ele, a intenção do referido livro foi dar visibilidade às
línguas locais e suas respectivas manifestações orais (COUTO; EMBALO, 2010,
p.32).
Apesar de um longo período de desvalorização
das culturas locais, a presença europeia não estagnou a história e a cultura
dos povos africanos. Na Guiné-Bissau, por exemplo, a cultura da oralidade é uma
das manifestações vistas como marca da identidade do povo guineense. A sua valorização
constitui um elo entre o passado e o presente, e através dela pode-se
estabelecer uma ponte entre os valores culturais e as realidades tradicionais,
fazendo-se compreender a força da ancestralidade na memória coletiva desse
povo.
As estórias orais guineenses,
sem pretender estender o seu conceito, apresentam, geralmente, os animais como
personagens e protagonistas, com o objetivo de proporcionar uma lição moral a
propósito da vivência e dos comportamentos humanos. Nelas, também, podemos
encontrar como personagens os elementos e fenômenos naturais, destacando a
importância da natureza e também das mitologias africanas, valorizadas e
cultivadas de geração a geração.
Essas estórias, no contexto
guineense, denominadas de fábulas, sustentam-se no enriquecimento e valorização
cultural que a própria tradição oral nos proporciona. Marcelino Marques de
Barros, como vimos antes, publicou, em 1900, Literaturas dos negros, em que procurou dar visibilidade e
continuidade à tradiçao cultural de diferentes grupos etnicos e às histórias em
que os animais são personagens. Couto e Embalo forneceram algumas informações a
respeito da referida obra:
Em Literatura dos negros
(1900) ele publicou a mais as storias “A noiva da serpente”,“História de
Sanhá”, “Storia de Djambatutu, rei di pastrus” (O rei Djambatutu), “Storia di lubu
ku karnel” e “Falkon ku jugudi”, todas na versão crioula e em português, exceto
as duas primeiras, que são “contos mandingas”. Elas estão apresentadas só em
português, embora na segunda haja muitos trechos em crioulo bem como versos
cantados em mandinga [...] (COUTO; EMBALO, 2010, 117).
Seguindo a proposta do cônego
Marcelino de Barros, em 1979, Teresa Montenegro e Carlos Moraes publicaram Jumbai- tornando claras as suas
preocupações e posicionamento literário no sentido de aprofundar, cada vez
mais, os estudos das narrativas orais guineenses (COUTO; EMBALO, 2010, p. 117).
Essas preocupações, é claro, constituem preocupações de muitos pesquisadores e
escritores guineenses contemporâneos, como caso de Odete Semedo, que há muito
tempo tem se engajado na pesquisa das cantigas de mandjuandade[35], que deram fruto a uma tese
de doutoramento, defendida na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
em 2010, orientada pela professora Maria Nazareth Soares Fonseca. Concordo com
a pesquisadora Moema Auguel quando salienta que:
Como o griot ou djidiu
da cultura mandinga, o escritor está revestido de obrigação de preservar a memória
cultural de seu povo. Recontando a história, ressuscitando as lembranças,
recuperando, pela palavra ou pelo canto, as tradições incrustadas nos mitos e
na memória popular, ele torna-se o porta-voz das pulsões de sua sociedade (AUGUEL,
2007, p. 363).
No meu ver, no entanto, não
há como não recorrermos às fontes das tradições orais para ligar o presente à
nossa história, tornando-a, assim, um caminho para melhor compreender a nossa
existência. Podemos dizer que a nossa identidade cultural manifestou-se muito
cedo nas narrativas orais, permitindo-nos, assim, uma identificação de um mundo
que nos pertencia. Não resgatar essas estórias contadas de boca em boca
representa, a meu ver, um abandono de parte significativa da nossa realidade e do
modo de pensar e estar na sociedade.
Em várias narrativas orais guineenses, em que os personagens
são animais domésticos ou selvagens, ou ainda, elementos da natureza, apresenta-se
a riqueza da cultura oral, que busca mostrar, por meio das sabedorias dos mais
velhos, que a força física nem sempre é sinônimo de superioridade. Durante a
minha infância, muito aprendi com estórias como as do "lobo e a
lebre". Quando menos esperava, a lebre saía sempre ganhando do lobo, usando
a sua inteligência para se livrar de um perigo, ou para matar a sua fome. O
lobo, visto como mais forte, acabava invarialvelmente perdendo, caindo, assim,
nas armadilhas e astúcias da lebre.
Além dessas narrativas servirem como elementos de
preservação da memória coletiva, as estórias contadas nas noites de fogueiras –
que chamamos de Djumbai são de caráter
educativo e de formação para a vida adulta. Há várias versões em cada estória,
o que pretende assinalar que cada contador de uma estória não é dono da própria.
Muitas vezes, mesmo que a tenha criado, o contador prefere dizer que ouviu
contar, fugindo, também, das repercussões que aquela estória pode ganhar. Cada
um assume ter ouvido a estória da sua maneira. Nessas versões assumidas,
percebe-se que cada contador de estórias tem a liberdade de recontar a mesma
estória ouvida e dar um final aos personagens, de acordo com seu gosto e modo
de entender o mundo, no qual está inserido. O conto A lebre, o Lobo, o Menino e o Homem de pote, de Odete Semedo do
livro Djênia: estórias e passadas que ouvi contar II, ilustra essa dinâmica:
No fim da história, as nossas amigas ainda discutiam sobre o nome da
história e o final que este deveria ter:
– Não foi assim que eu ouvi, Cici! O lobo não podia sair a ganhar coisa
alguma. Quem sai a ganhar é a Lebre e tu deixaste que os populares lhes
batessem...
– Kutchi... a Lebre foi mazinha... Foi muito má ao ameaçar o menino que
sempre a tratou bem.
– Mas Cici, tu é que a fizeste má, quando ela podia continuar esperta e
marota; e não foi assim que ouvimos contar, a culpa foi tua!
– Eu ouvi exatamente assim, aliás, cada uma de nós ouviu como quis e
conta como quer.
– Não concordo; mas, olha, se assim for... o gato que rouba peixe
naquela história que me contaste, vou fazê-lo fugir; a cozinheira não o vai
escaldar.
– Isso não, Kutchi... aquele gato é mesmo mau e arisco, e... (SEMEDO, 2000, p. 134-135).
Se é verdade que as narrativas orais contribuem para
afirmação da identidade cultural guineense, pregando a moralidade na sociedade,
mostrando que, nem sempre, o forte pode ganhar do mais fraco, não é menos
verdade que essas estórias, também, trazem em si o retrato de certos
comportamentos de inferiorização das mulheres, cujas vidas em grupo e os
poderes de exercícios da cidadania são limitados. A nossa sociedade sempre
destaca os homens como mais fortes e as mulheres como as mais fracas e medrosas
em relação ao perigo. Estória de salton ku
si mindjer, (saltão e a sua mulher), de Teresa Montenegro e Carlos Moraes,
que transcrevemos a seguir retrata essa realidade de subalternização no
continente africano:
Salton ku si mindjer
Um mindjer sai pa ba panha
salton na roda di mar. I tchiga, i panha
salton manga del, i fia na korda. I bin panha um salton e fia na korda. Mindjer
disa salton sai, i odja si omi, i ba tchora djanan la na metade di tarafi. I na
tchora, i na tchora, i fala si omi ku panhadu, i na tchora. Salton fala si
mindjer: “Ka bo tchora. Ora ku bo sintinha tcheru na iassadu bo ta tchora, ma tementi
N ka iassadu inda, ka bo tchora”.
Mindjer ku panhal i ditanda gora korda e ba laba kurpu. Salton salta, i kapli
na corda e miti dentru di koba. I fala
si mindjer: “N tarda contau. Tementi bo ka na sintinha tcheru na fugu, sibi cuma
N ka muri”.
Tradução
O saltão e sua mulher
Uma mulher saiu para
apanhar saltões à beira-mar. Ela chegou, apanhou um monte de saltões e enfiou
na corda. Pegou saltões e enfiou na corda. A mulher do saltão saiu e viu seu
homem e foi chorar pra valer no meio do mangue. Ela chorou, chorou, dizendo que
seu homem fora apanhado, e chorou. O saltão lhe disse: “Não chore. A hora que
você sentir meu cheiro sendo assado, você chora; mas, enquanto eu ainda não
estiver assado, não chore”. A mulher que o apanhara pôs a corda [de peixes] no
chão e foi tomar banho. O saltão saltou e escapuliu da corda e se meteu dentro
de um buraco. Ele disse a sua mulher: ‘Eu não lhe disse! Enquanto você não
sentir o meu cheiro no fogo saiba que eu ainda não morri’ (COUTO; EMBALO, 2010, p. 117-118).
Sabemos que a vida da mulher em África é extremamente dura.
Ela é limitada, inferiorizada, frequentemente usada como um mero objeto e,
muitas vezes, castigada pela simples expressão de seu desejo de se divertir e
escapar das normas prescritas pela sociedade. Podemos perceber esse papel
subalternizado na estória Iabrin porta,
ali e na bin (abra a porta, estão me cutucando):
Em “Iabrin porta, ali e
na rikitin” (Abra a porta, estão me cutucando), da mesma coletânea, uma jovem
que gostava de dançar foi aliciada para um baile de serpentes. Quando percebeu
o fato, tentou fugir, mas as serpentes se puseram a correr atrás dela, tentando
agarrá-la (cutucar). Ela pediu ajuda da mãe, do pai e da avó, todos lhe
disseram que se virasse, já que gostava tanto de bailes. O único que enfrentou
as serpentes para salvá-la foi um tio. No entanto, não o fez por generosidade,
tanto que ela passou a servi-lo, mais precisamente, a ser sua mulher.(COUTO;
EMBALO, 2010, p. 118-119).
Além desses temas de
sofrimento e desvalorização da mulher guineense, também, encontramos em muitas
narrativas orais a temática da fome. Não é preciso recorrer a dados
estatísticos para sabermos que, em cada cinco guineenses, quatro vivem a
experiência dura da fome. Mergulhado na realidade do país, no qual passei a
maior parte da minha vida, afirmo que há muita fome na Guiné-Bissau, e esta,
quase sempre, é acobertada pela solidadariedade, pela amabilidade e, sobretudo,
pelo sentimento de coletividade desenvolvido nas culturas de tradição oral. Não
é por acaso que a temática de fome aparece frequentemente nessas narrativas e
na literatura propriamente dita. Os pesquisadores Couto e Embalo fornecem um
dado muito importante a respeito:
O contrário de
alimentação, ou seja, a fome, é tão ou mais frequente. Em uma contagem
perfunctória, constatamos que esses temas aparecem em acima de 80% das
narrativas. Em muitas delas vê-se a expressão “i kume tok i farta”, ou seja,
ele comeu até fartar-se. Aparece também, na versão portuguesa, sob a forma “e
aí, ele comeu”. A esmagadora maioria dos guineenses está no umbral que separa a
fome da sociedade. Cada vez que alguém come é uma alegria sem tamanho. É uma
vitória contra a morte. Muitos furtos são de alguma coisa de comer. As trapaças
normalmente têm por finalidade enganar determinada pessoa e comer o que ela tem.
A fome é um problema tão sério na África que o crioulo marca uma época do ano
como na tempu difomi, ou seja, a época da seca, como se pode ver, por exemplo,
na storia “Salton kutataruga” (o saltão e a tartaruga). No contexto do tema
fome/comer, gostaríamos de mencionar um caso de canibalismo. Na storia “Sene, um
son na si mame” (Sene, um filho único), Jumbai, as localidades de Uato, Bolama
e Caledje vão caçar, pois não é época de colheita (kebur). Ateiam fogo no mato
a fim de empurrar os animais para determinada direção. Acabam abatendo apenas
uma farfana (roedor que destrói as culturas de grãos). Como a carne desse
animal não é suficiente para as três localidades, surge uma discussão sobre o
que fazer. Descobrem que um menino que participa da caça é filho único, está
sozinho. Com isso, resolvem matá-lo a fim de misturar sua carne com a da
farfana. Aliás, isso ilustra a questão mininus di kriason (meninos para
criação), que frequentemente são maltratados pelos pais adotivos (COUTO;
EMBALO, 2010, p. 120-121).
As narrativas orais têm grande importância, na medida em que
enriquecem a nossa memória dos patrimônios culturais locais, destacando a
sabedorias dos velhos em preservação dessas memórias, retratando os
comportamentos na sociedade africana. Transformar fraquezas em forças é umas
das estéticas que fazem com que essas narrativas se tornem mais apreciadas e
estudadas.
Além dessas temáticas, as narrativas orais guineenses, de uma forma
ou outra, tentam dar explicações aos fenômenos das naturezas, esclarecimentos
de origens de alguns nomes dos animais, tanto domésticos quanto selvagens,
realçando a importância das mitologias tipicamente guineenses. De todas as
leiturais feitas, encontramos nas narrativas orais guineenses um discurso que
confronta a realidade guineense e nos leva a uma reflexão profunda da nossa
sociedade. Não podemos nos esquecer, ainda, que os contos orais guineenses,
como integrantes de uma tradição ancestral, fazem parte de uma cultura viva que
está, portanto, em constantes transformações e em diálogo com os contextos e as
realidades do país.
2.3. O conto escrito guineense
Género difícil – quem os escreve conhece bem as
armadilhas e as limitações que oferecem. Género mesmo difícil – quem os lê sabe
que os frequenta porque há algo de mágico e intenso na brevidade do que é
exposto e logo encerrado, sem espaços para manobras exageradas (ONDJAKI, 2008,
p.3).
O conto
escrito manifestou-se muito cedo, na África. É um dos gêneros que contextualiza
literariamente melhor o continente africano em relação às realidades de vida,
permitindo, assim, as relações mais profundas da vivência dos próprios
africanos. A sua função baseia-se nas transmições de apegos culturais dos
ancestrais, mantendo a vivacidade do que é tão comum partilhar na África, que é
o conhecimento e valores morais entre as comunidades existentes.
É nesse
sentido que o contista africano sente a necessidade e a obrigação de passar nos
seus textos as experiências dos mais velhos, pois essas experiências constituem
elo entre o passado e o presente, as suas transmições, de uma forma ou outra, permitem
a preservação da identidade cultural, que enriquecem as narrativas tradicionais
africanas. Maria Fernanda Afonso referiu essa importância e as influências que
as tradições orais exercem nos contos escritos: “apesar da sua indignação de
homem moderno face à instabilidade do quotidiano, o escritor africano sente-se
profundamente ligado a um tipo de discurso proveniente da tradição oral, da sua
herança comunitária” (AFONSO, 2004, p. 69). Segundo essa autora, inspirações
nessas fontes são necessárias, na medida em que permitem ao contista africano o
resgate dos mitos, das histórias antigas, dos heróis tradicionais, presentes na
encantação deslumbrante da narrativa
tradicional, estabelecendo-se, assim, o diálogo entre o passado e o presente (Ibid.,
2004, 69).
O gênero
conto, contudo, demorou muito a se firmar na Guiné-Bissau. Na década de 1940, a
poesia, como expressão de sentimentos estava presente, como atestam poemas
datados por Amílcar Cabral, Vasco Cabral e António Baticã Fereira, que já eram
um instrumento de reivindicação de direitos e de luta contra opressão colonial.
Até os anos de 1950, não havia, até onde sabemos, nenhum documento que
registrasse algum texto literário escrito por um guineense nato. Nesses anos,
foram registradas apenas obras dos estrangeiros que ali viviam. Porém, no ano
de 1952, veio à estampa a primeira manifestação nesse gênero, um conto da
autoria de James Pinto Bull, Amor e Trabalho, publicado no Boletim
Cultural da Guiné Portuguesa (AUGEL, 1998, p. 319).
Temos uma
distância de quarenta e um anos para uma nova publicação desse gênero. Em 1993,
surgiu A Escola, de autoria de Domingas Barbosa Samy. Apesar de uma
demora na consolidação do gênero conto, na literatura guineense, atualmente, o
conto é um dos gêneros literários mais presentes na Guiné-Bissau. Nele, os
autores nos conduzem a conhecer os problemas sociais vividos no país,
evidenciando a necessidade imperiosa de discutirem os desastres políticos e
econômicos que assolam o país. O conto parece tornar-se, assim, no espaço
guineense, a narrativa que melhor explica as realidades socioculturais do país.
Nele, também notamos inspiração e diálogo com a tradição oral. Como bem
esclarece Semedo (2010), “há vários casos em que os contistas modernos,
inspirados nos contos da tradição oral, trazem para os seus textos os conflitos
que marcam essas narrativas, por se adequarem às situações vivenciadas no
presente” (SEMEDO, 2010, p. 66).
Do outro
ângulo, para melhor compreender esse processo de recriação do conto moderno, em
diálogo com a tradição oral, podemos recorrer como exemplo ao conto
"encontro”, de Andrea Fernandes, publicado na antologia: DIMA, o
passarinho que criou o mundo: Mitos, contos e lendas dos países de língua
portuguesa:
A notícia do encontro de Kudjido com a serpente
espalhou-se. Cada filho de Ancoio contava melhor do que o anterior o que
ouvira, acrescentando cores e tambores às luzes e à melodia que a serpente de
fogo, diziam, cantava e dançava. Por vezes, surgiam discussões de se era assim,
se era asado, e também que era melhor que ele nunca tivesse contado, porque
essas coisas do mundo são segredo e o próprio mundo é um segredo, mas no fim
acabam por preferir voltar ao princípio e iam pedir a Kudjido que fosse ele,
com a sua própria boca, a narrar o encontro mais uma vez. (FERNANDES, 2013,
p.62).
Ao longo
deste capítulo, analisaremos contos de alguns escritores mais conhecidos e de
outros contistas contemporâneos, tendo em conta as temáticas em destaque. Analisaremos os seguintes contos: “Amor e Trabalho”, de James Pinto Bull; três contos do livro A Escola,
de Domingas Samy; “Aconteceu em
Gã-Biafada”, de Odete Costa
Semedo; “Hóspede”, de Andrea Fernandes; e “O Serco”, de Tambá
Mbotoh.
Não
ignoramos, de maneira alguma, outros escritores guineenses de grande
importância. Por isso, não deixaremos de citar títulos das obras, ano de
publicação e nomes desses escritores. Carlos Edmilson Marques Vieira, por exemplo, publicou N’Nori (estou cansado, termo crioulo)
em 2000, obra prefaciada por Leopoldo Amado. O livro conta com oito contos,
e a maioria deles aponta as dificuldades do país recentemente saído de uma
guerra civil. Um dos contos do livro, intitula-se “Mafingharawé?”,
palavra em língua balanta que aqui traduzimos: Por que é que me estão a matar? Através desse conto, o autor
utiliza a metáfora do lixo, que permeia quase toda a narrativa, para demonstrar
a sujeira após independência do país. Em alguns momentos, o autor, por meio das
personagens, faz também convite aos guineenses a ter esperança de dias
melhores.
Também
destacamos a obra Fogo fácil (2006), de Marinho de Pina, jovem guineense
atualmente radicado em Portugal. De Pina revelou-se muito cedo no gênero conto,
sendo vencedor, em 2005, do concurso de contos organizado pela RENAJ. A sua
obra, sem dúvida, é um retrato da vivência no país.
Julgo interessante
que o público e os pesquisadores das literaturas africanas conheçam a obra A
força de vontade, de Manuel Costa, publicada na edição do próprio autor, em
1993. Um esforço louvável deve ser levado em conta, apesar de certa imaturidade
literária constatada na obra. (AUGEL, 1998, p. 320). Admirável
diamante bruto e outros contos, de Waldir Araújo, publicado em 2008, sem
dúvida, merece também ser mencionado. Este livro caracteriza a vida difícil dos
guineenses na diáspora: a dor de querer partir, mas ter que ficar é uma espécie
de resumo dessa magnífica obra, lembrando-nos do tão debatido dilema da cultura
cabo-verdiana.
Concluímos
esse panorama da nova geração de contistas guineenses com o livro Cantar do
Galo, publicado em 2017, pelo autor da presente obra, Eliseu Banori,
radicado no Brasil. Este livro volta-se para a atual situação política e
econômica do país em todos os seus contos.
Nas obras
referidas acima, observamos que todos eles apelam à crítica do desencanto da
pós-independência, principalmente os problemas políticos e sociais com que o
país se tem confrotado desde então. As dificuldades vividas depois da
independência constituem tema recorrente na escrita dos autores contemporâneos.
Nessa sequência, vale lembrarmos outros contistas guineenses, muitas vezes
esquecidos quando se trata de prosa guineense contemporânea. Graças à coletânea
Contos do mar sem fim, editada pela Ku
si mon (Bissau) em parceria com a editora Pallas (Rio de Janeiro) e editora
Chá de Caxindé (Luanda), conhecemos nomes como Olonkó, Julie Agossa Djomatin,
Lamine Sadjo e Uri Sissé.
Todos
eles navegam, também, em um mar de desencanto da pós-independência. Mas não
posso deixar de assinalar que, no caso dessa publicação, trata-se de
pseudônimos de conhecidos autores guineenses que ludicamente preferiram não
revelar a verdadeira identidade. Como pista, pode-se adiantar que se deve
tratar de autores ligados à editora Ku Si
Mon.[36].
James
Pinto Bull, acima referido, publicou em 1952, Amor e Trabalho no Boletim
Cultural da Guiné Portuguesa (Bissau, n° 7/25, 1952, p.183-187), sendo
considerado o primeiro guineense a escrever contos. Pinto Bull, irmão do grande
linguista guineense Benjamim Pinto Bull é muito pouco conhecido, provavelmente,
por ter estado ao lado dos portugueses na escravização e maltratando seus
próprios irmãos de sangue. Nos anos 1950, James Bull foi considerado membro da PIDE, participando de massacres aos
irmãos guineenses, seguindo as ordens do governo colonial. Foi diversas vezes citado no discurso de
Amílcar Cabral: “Celebre traidor africano James Pinto Bull, apesar dos nossos
conselhos, acabou por morrer na triste condição de vil servidor dos
colonialistas, de inimigo do nosso povo e da África” (COUTO; EMBALO, 2010, p.
85).
Ironicamente,
apesar de ser um traidor da pátria guineense, Pinto Bull é o pioneiro da prosa
da Guiné-Bissau. Em Amor e Trabalho, dá-se uma denúncia sobre as
práticas de roubo, vistas como rituais de jovens incircuncisos (conhecidos como
blufus). Essas práticas acontecem ainda nos meios dos balantas – uma das etnias
da Guiné-Bissau. Por incrível que pareça, esses costumes tradicionais são
vistos como algo normal no seio do povo balanta,
assim, considerados atos culturais. O autor, apesar de ser visto, na
época, como um aculturado, mostra os hábitos tradicionais que ferem os
moradores nas regiões onde predominam os balantas,
que são obrigados a ficar calados diante dos ritos considerados tradicionais. A
crítica feita pelo autor, em 1952, não surtiu nenhum efeito, pois o ritual do
roubo praticado por esses jovens incircuncisos ainda é praticado no interior do
país, ou seja, nas regiões onde predomina a etnia dos balantas. (COUTO; EMBALO, 2010, p.85).
Hoje, sem
nenhum exagero, contam-se nos dedos as mulheres que escrevem literatura na
Guiné-Bissau. Dessas poucas mulheres, destacamos a escritora Domingas Barbosa
Mendes Samy, conhecida por mais íntimo de ‘Minga’, Maria Odete Costa Semedo,
Filomena Embaló (guineense de coração), Antonieta Rosa Gomes e Andrea
Fernandes, para reflexão mais adiante. Das mulheres citadas, Odete Semedo,
Antonieta Rosa Gomes e Filomena Embalo são as únicas que continuam escrevendo e
publicando. Citamos também na poesia Saliatu da Costa, com Bendita Loucura
(2008) e Entre a roseira e a pólvora, o capim! (2011) e, na prosa Né
Vaz, com o romance Pérola Roubada (Lisboa, Chiado Editora, 2018).
Domingas
Samy nasceu no dia 2 de janeiro de 1955 em Bula – região de Cacheu, fez seus
estudos primários em Gabú e em Bissau, estudou no Liceu Honório Barreto,
conhecido, hoje, por liceu Nacional Kwame N’Krumah. Samy, formada
em 1981 em Filologia
Germânica, na Uniäo Soviética, é considerada uma das pioneiras da prosa guineense com o
livro A Escola, atrás de James Pinto Bull. Publicou também versos
durante seus estudos na União Soviética em alguns periódicos e participou com
cinco poemas na APGB (1990). O seu único livro, A Escola, tem apenas
três contos: A Escola, que dá o título ao livro, Maimuna e O destino.
Entre os
países africanos de língua portuguesa, podemos afirmar que a Guiné-Bissau está
ao lado dos mais atrasados quando se trata de emancipação das mulheres nas
sociedades africanas. O índice de analfabetismo é muito elevado, como já vimos
anteriormente, e há um número reduzido de mulheres que frequentam o ensino
básico até o liceu. Entre essas mulheres, poucas conseguem ter acesso ao ensino
superior.
Na
história política guineense, até o presente momento, o único nome revelado à
candidatura para o cargo mais alto da magistratura guineense foi o de Antonieta
Rosa Gomes, grande intelectual, fundadora e líder do Fórum Cívico
Guineense-Social Democracia, formada em Direito na Universidade Federal de São
Paulo e ministra em vários governos. É autora do livro intitulado Da
Mutabilidade dos Contratos Administrativos (Direito), Retrato (poesia)
e de vários artigos científicos.
No
interior do país, principalmente na região leste, há ainda uma necessidade de
algumas organizações não governamentais procederem com uma política de
incentivos às meninas para irem à escola, fazendo, na medida do possível, a
doação de gêneros alimentícios, de acordo com a quantidade de meninas inscritas
nas escolas. Vale ressaltar que a maioria delas está na faixa etária entre 10 a
14 anos de idade; porém, desde o ventre da mãe já têm destinos traçados, na
maioria dos casos. Ainda crianças, já são apresentadas aos seus futuros maridos
– levadas forçadamente para satisfazer compromissos assumidos, através de dotes
recebidos dos pais, ou de algum membro de família. E elas, sem nenhuma
proteção, acabam, simplesmente, submetendo-se às ordens dos seus pais ou dos
responsáveis, em outros casos. Como podemos observar no conto “Pescador”, de
Eliseu Banori:
O essencial era alimentar muitas bocas que tinha em
sua casa. Três mulheres, doze filhos, três sobrinhos e duas sobrinhas, além da
outra mulher que já mandou pegar bico, que todo ano dava alguma coisa
para manter fidelidade do compromisso tomado há muito tempo, se não correria risco de
perdê-la. Isso ele bem sabia, por isso, nunca deixou faltar alguma coisa na
casa dos pais dela. Pois
é, era menina cobiçada na tabanca, acima de tudo tem ainda sangue novo, caso se
casasse com ela, a esperança de viver podia multiplicar em dobro dos seus
cinquenta anos já carregados na costa (BANORI, 2017, p. 93-94, grifos nossos).
As
igrejas evangélicas terminam por se ocupar com muitas dessas meninas, que fogem
do casamento precoce e forçado e procuram radicar-se na cidade de Bissau, em busca
de um refúgio para aliviar o seu sofrimento. Na Missão Evangélica da
Guiné-Bissau, situada em Bissau, próxima de feira Caracol, no bairro de Bandim,
encontram-se, hoje, mais de 25 meninas em condições vulneráveis, vindas de
diversas regiões do país, fugindo de um casamento arranjado pelos pais, ou por
algum membro da família. Muitas vezes, a maioria dessas meninas, nunca tinha
sentado numa cadeira de escola. A procura da igreja Evangélica por essas
meninas, hoje, torna-se cada vez maior. Muitas vezes, essas igrejas não
apresentam condições econômicas para satisfazerem as necessidades e demandas
dessas vítimas. Umas acabam por trabalhar nas casas de algumas mulheres ligadas
à igreja. Isto é, lá mesmo são educadas nos princípios éticos, morais e
religiosos dessas instituições.
Os três
contos de Domingas Samy compõem um relato de acontecimentos como os acima
descritos: o conto A Escola desdobra-se em várias narrativas dentro de
uma mesma estória. A primeira narrativa é a de Nha (minha) Aurélia, nome
muito comum na sociedade guineense, que revela o pertencimento e consideração
pela pessoa querida, demonstrado no pronome “Nha”, que pode ganhar outro
significado no Brasil, ‘nha’ de ‘sinhá’, ‘sinhá’ de ‘senhora’.
A
personagem Nha Aurélia é uma mulher doméstica – que tratava de cuidar de casa,
do filho e do próprio marido; uma mulher que tem silbintia, ( educação
básica de uma mulher) como manda a tradição guineense: Uma mulher “para se
casar” é aquela que sabe cuidar do lar. Enquanto que a dona Aurélia se
preocupava em cuidar da casa, o marido passava dia e noite na ‘; casa dois’,
termo usado para se referir à amante no cotidiano guineense. O marido só
procurava a mulher para ato sexual; além disso, exigia também as roupas limpas
e bem passadas ao seu gosto. Percebemos, no conto ora analisado, que dona
Aurélia se submetia a todas as ordens do marido para preservar o seu casamento
e para não “dar que falar” aos mais velhos - guardiões da tradição. Mas o
marido, como podemos perceber na estória, nunca deu satisfação da sua ausência
em casa.
A estória
em questão nos leva a pensar no romance Niketche: Uma História de Poligamia,
da escritora moçambicana Paulina Chiziane, publicado em 2002. Vemos em
ambas as obras as mesmas dificuldades das mulheres africanas em relação ao
casamento. No conto A Escola, percebe-se que a inexistência do nome do
marido, nos direciona a entender que a autora pretende aludir, de modo geral,
ao comportamento da figura masculina na sociedade guineense. Podemos perceber,
também, que a ausência do marido de Nha Aurélia nos leva a interpretar
ser essa a razão de sua casa se tornar “um entra bu sai”, como se diz em bom
crioulo. Isto é, cada um pode fazer o que quer. Nesse “fazer o que cada um
quer”, a filha de Nha Aurélia, Maria Sábado, ainda adolescente, fica grávida; sem
saber, contudo, quem a engravidou. Nha Aurélia sofre com o abandono do
marido e da filha grávida, sem saber quem é o pai de sua neta. Nha
Aurélia não consegue dominar o sofrimento e vexame numa sociedade
preconceituosa.
A segunda
estória mostra uma das grandes problemáticas na sociedade guineense: o “morar
de favor”. Muitas pessoas moram de favor; outras, devido à falta de emprego,
acabam por residir em casas de familiares ou de conhecidos. Nesse conto,
conhecemos um pouco da figura de Nha Santa, amiga de Nha Aurélia, que
mora de favor na casa dos seus irmãos, pois o marido a abandonou desde cedo. Nha
Santa passa também essa vergonha de ter um filho “negado”. Mesmo com essa
desilusão da vida, por ser uma mulher abandonada e mãe solteira, percebemos que
ela possui algumas virtudes raras entre as mulheres guineenses: a autoestima e
a ambição de vencer na vida.
Num país
em que a maioria da juventude se encontra desempregada, a escola torna-se o
lugar de passar o tempo. E cada um procura a sua forma de ganhar a vida. Os
médicos não trabalham mais para salvar vidas, os professores não ensinam mais
com amor à profissão. A vida está na rua, salve-se quem puder. Eis o resumo do
que vamos conhecer na estória da Nena. A terceira estória, dentro do conto ‘A
escola’, nos apresenta Nena, a filha de Nha Santa. A trajetória de Nena, ou
seja, a trajetória de muitas meninas sem nome, mulheres de diferentes cantos da
Guiné-Bissau, traz à minha mente a personagem sem nome, no capítulo Mama Sabel,
do romance Mistida, do grande escritor guineense Abdulai Sila.
Observemos o seguinte trecho:
Olha mulher grande, eu vim aqui para fazer
outra coisa, não para ouvir esse tipo de conversa, está claro? Eu não estou
aqui para isso, não! E para não voltares a chatear-me ficas a saber uma coisa:
eu não vou voltar para escola nunca mais! Já perdi estes anos todos e isso chega. Eu não vou ser como as
minhas irmãs, não. Perderam tanto tempo para nada. Não têm trabalho, não têm dinheiro, não têm nada. Absolutamente nada. Nem marido em
condições conseguiram... Andam sempre a pedir-me dinheiro emprestado e depois
não pagam. Eu sei o que quero na vida e se Deus quiser vou consegui-lo (SILA,
2002, p.393).
Há falta
de uma política educativa no país, o que leva muitas vezes as meninas a se
prostituirem para ganhar a vida, como nos revela a estória da Nena. Nena
prostituía-se, ou melhor, vendia o corpo com o consentimento dos pais. Não
frequentava mais a escola para adquirir conhecimentos como as outras irmãs. As
duas personagens, tanto Nena quanto a do romance Mistida, apresentam uma
relação entre si, na medida em que cada uma delas busca uma saída perante a
situação caótica em que vivem. Como diz Abdulai, na epígrafe à obra Mistida:
Si fere ala, fere bonde ko fere?[37] As duas personagens
procuram uma saída, seja ela má, seja ela boa; o que lhes interessa é a
resolução dos seus problemas. É importante comparar essas duas prostitutas das
obras destacadas, pois, em “A escola”, percebemos que Nena vendia o
corpo com a cumplicidade dos pais, ao passo que em Mistida, a personagem sem nome é chamada a atenção
pela “mais velha” Mama Sabel. Vejamos ainda outros trechos a seguir do romance
de Abdulai Sila:
Não, não posso aceitar este dinheiro... [...]
― Não podes por quê? És capaz de dizer por quê? Vá, diz! ― É dinheiro sujo. [...]
― Roubei-o, então? [...] ― Não o obtiveste honestamente, é isso que quero
dizer. ― Honestamente? Mama Sabel, francamente... Estou a ver que tu ainda
continuas como os olhos amarrados, não
sei quando é que vais conseguir abri-los. Então há uma coisa que se ganhe honestamente
nesta terra hoje em dia? Tu aqui a altas horas da noite, a apanhar este sereno
todo, isto é honesto? Diz-me se é honesto uma mulher-grande como tu estar a
vender mancarra neste beco a esta hora. Estás a ser honesta? Para quem? Para os
filhos, que já não tens? Para os teus netos, que não te conhecem? Para quem?
Diz!... (SILA, 2002, p. 389).
O dinheiro que tenho, este aqui, é meu.
Não interessa como obtive, mas ele é meu. [...] Faz de conta que estamos numa outra terra, está bem? Numa terra onde haja
um sistema mais ou menos justo de distribuição da pobreza nacional como sugere
o tal testamento do régulo de... Não sabes disso? Não faz mal. Faz agora de conta que estamos numa
outra terra ainda e que nessa terra trabalha-se honestamente. Mas toda a gente
trabalha honestamente, todos. Nesta terra, quando as pessoas chegam a uma idade
em que já não mais podem trabalhar, ou têm os joelhos inchados e por isso não
devem apanhar sereno, essas pessoas recebem uma reforma. Isso sabes o que é,
não é verdade? Muito bem, então continua a fazer de conta. Faz de conta que eu
sou funcionária desses serviços que pagam as tais reformas e estou aqui para te
entregar a tua reforma, que é este dinheiro que tens na mão. Portanto, faz de
conta que este dinheiro aqui é teu e que o ganhaste honestamente (SILA, 2002,
p. 390).
Tanto a vida de Nena quanto a da prostituta sem nome, em Mistida,
apresentam um final triste: durante o período de carnaval, Nena foi diagnosticada
com o vírus HIV, e a prostituta de Mistida, em Mama Sabel, terminou
abusada por um homem de poder, que vinha com um carro bonito sempre a sua
procura:
A rapariga estava num konkó escuro, com a porta encostada.
Estava sozinha lá dentro, sem companhia de ninguém. Quando entrou, soube logo o
que tinha acontecido. Deixou a porta aberta e sentou-se na cama, ao lado dela. Tomou-lhe
a cabeça e pô-la sobre as suas pernas. Limpou-lhe as lágrimas com carinho. Foi
nesse dia que lhe disse que uma mulher corajosa nunca devia chorar daquela
maneira. Não falou mais nada (SILA, 2002, p. 394-395).
Cremos
que a voz da Mama Sabel, no romance Mistida, representa o progresso do
país, pautando na ideologia de Amílcar Cabral: o progresso de um país depende
de todos. Já os pais da Nena são o retrato de vozes silenciadas de muitas famílias
sem empregos – nas quais os responsáveis acabam se conformando em serem
sustentados pelas filhas, mesmo sabendo das fontes ilícitas do dinheiro, como
sugere a epígrafe de Mistida: “se não há
saída, uma má saída é saída?” Acreditamos que, através dessas duas personagens,
assistimos a uma desvalorização dos valores transmitidos de geração em geração
dentro da sociedade africana.
Maimuna,
nome tipicamente muçulmano, é o título dado ao segundo conto do livro A
Escola. O narrador é omnisciente – é um conhecedor do espaço, do tempo e
das tradições muçulmanas. A estória se passa no Leste do país – região dominada
pelos muçulmanos. O relato em questão, em termos temáticos, é muito parecido
com a estória Aconteceu em Gã-Biafada, de Odete Costa Semedo, cuja obra
abordaremos no quarto capítulo.
“Maimuna”
é uma estória bem curta, em comparação com o conto “O destino”, que soma
41 páginas, e chega a fugir às características do conto, de acordo com o
conceito de Massaud Moises (1997). Este
afirma que um conto deve ser conciso e sucinto. A estória se desenvolve em
torno dos conflitos da Maimuna – uma jovem de pouca idade que foi prometida a
um velho, comerciante, considerado rico, do país vizinho, a Guiné-Conacry.
Prometida ao velho, a jovem estava ainda apaixonada pelo seu namorado, Djodje.
Pressionada pelo pai e o tio, Maimuna resolve fugir no dia da cerimônia do
casamento. Estória semelhante à de Maimuna se apresenta no conto de Maria Odete
Costa Semedo, Aconteceu em Gã-Biafada, do livro Djenia: histórias e
passadas que ouvi contar II e no poema de Tony Tcheka A prometida. Esse autor também, relata o drama de dois jovens apaixonados:
Saliu e Lamarana, que não podem viver esse amor, em função das pressões
familiares.
Nesse
sentido, concordo plenamente com Odete Semedo quando esta afirma que: “A voz e a palavra são, portanto, o veículo
da tradição, daí ser a palavra algo de grande importância na tradição africana,
pois tal como ela pode unir e preservar, assim também, quando mal usada, tem
força destruidora (SEMEDO, 2010, p. 64).
Concordo, também, que as práticas rituais quando não geram vidas, acima
de tudo, atormentando-as, a meu ver, têm também esse poder de destruição. A
desobediência das ordens dos pais representa a morte, de geração a geração,
para a família cuja indisciplina foi dirigida, caso também interpretado como
vexame familiar. Em algumas sociedades africanas, a ponte entre a liberdade e o
desejo do querer está ainda em processo de construção. Muito pouco se respeita
o direito das mulheres. A maioria ainda é vítima de muitos rituais violentos
que podem levar à morte. Vejam-se os exemplos: do fanado, do casamento forçado
e o ritual de se jogar crianças ‘especiais’ ao mar, consideradas como irans (espírito sagrado).
Uma das
versões do conto Aconteceu em Gã-Biafada nos mostra um desfecho feliz
para Saliu e Lamarana.
Saliu não chegou a pedir uma segunda esposa, pois o que os unia era muito
forte e sentira que uma segunda esposa iria perturbar a paz e a felicidade que
conseguiram alcançar depois de tantos desaires. Quiseram que mais pessoas
fizessem parte da sua família, para poderem ter alguém a quem contar a sua emocionante
história e muitas mais passadas (SEMEDO, 2000, p.38).
Percebe-se
que Lamarana não deixou ser amarrada com o cordão tradicional, pois, teve
ousadia em contradizer a tradição. Ousou quebrar com a tradição dos nossos
antepassados (casamento forçado) que diziam: ‘você não pode, isso é sagrado; se
fizer isso ou aquilo morre’. Lamarana ousou contradizer a tradição, e, assim
como dizia Johann Goethe “qualquer coisa que você possa fazer ou sonhar, você
pode começar, uma vez que, a ousadia tem genialidade, poder e magia em si”. Por
isso, é inegável que ela foi ousada e corajosa exatamente por fazer o que
poucos fariam, ou seja, romper com ditames populares cristalizados em nossa
sociedade, mas, principalmente na dos nossos pais e avós.
Ao lermos
os contos Aconteceu em Gã-Biafada e Maimuna desabrochamos nas
asas dos sonhos e entendemos que cada homem é livre de criar suas próprias
asas, lançar voo nas mais altas alturas. Tanto os personagens Saliu e Lamarana
quanto Jorge e Maimuna souberam lançar esse voo, ao tocarem nas feridas da
tradição. Os dois ignoraram as tradições locais, ignoram o medo de ameaças às
tradições. Foram para um mundo deles: viver um amor retribuído. Entendemos,
assim, que o sentimento amoroso não pode ser negociado.
No que se refere ao afastamento das tradições, vale reforçar com
palavras de Abdulai Sila, na entrevista concedida a Fernanda Cavacas a
propósito da Trilogia: “O facto é que na situação em que se encontra a nossa
sociedade, com mais de 60% de analfabetos, as pessoas não ligam aquilo que é
escrito, preocupam-se mais com o que é falado, com o que é mostrado” (SILA,
2002, p.13).
Já no último conto ‘o destino’, mais longo, temos estórias de várias
personagens de diferentes classes sociais. Destacamos primeiro a estória da Anazinha,
uma menina africana – que trabalha como empregada doméstica numa casa colonial.
Sem direitos à escola, ela vive discriminada e oprimida pela mulher do patrão.
Apesar de todo amor dedicado ao filho do patrão, termina abandonada e sem
nenhuma compensação financeira.
Domingas Samy apresenta como sua marca o encaixe de várias estórias
dentro de uma mesma narrativa, problematizando, em seu texto, a questão de
classe, raça e amor, conflitando constantemente em torno dos personagens. No
conto em questão, Nandinha, uma das personagens destacadas, não esconde aos
pais o seu desejo de se casar com um homem negro, acima de tudo, criado na sua
própria casa. Argumentando que “ninguém nasce criado...”, lutando assim na
defesa de direitos igualitários, quebrando com todos os estereótipos sociais da
sociedade da época, Nandinha se mostra uma personagem surpreendente. É da mesma
forma que a diferença de classe é aí apresentada, quando Anazinha recebe um
sapato de presente do patrão e é proibida de usá-lo pela esposa deste, já que
esta alega que uma mulher não civilizada não poderia usar salto. Porém, logo em
seguida, é contrariada pelo marido. “Ninguém nasce sábio, e se ela não sabe
andar com sapatos é porque ela não os tinha” (SAMY, 1993, p. 46).
O livro continua, de forma mais profunda, a se debruçar sobre a
condição feminina no país. O destino da mulher continua sendo de grande
incerteza na Guiné-Bissau. O título do conto já nos aponta diretrizes para
entendermos o enredo. A contista volta ao tempo colonial para problematizar a
condição feminina daquela época. Tanto o destino dos homens quanto o das
mulheres estão forjados e controlados em obediência à força maior. As temáticas
abordadas por Domingas Samy apresentam de uma forma clara e preocupante, a
situação de mulheres guineenses, antes e após independência.
Os três contos de Domingas Samy descrevem, de forma clara, as
dificuldades, pelas quais passam as mulheres guineenses. Depois que conhecemos
a autora, conhecendo um pouco dos temas que ela apresenta e as suas
preocupações enquanto mulher, numa sociedade em que os homens ainda detêm de
todo o poder, fica a indagação sobre os motivos que teriam levado Samy a deixar
de escrever tão cedo. Teria ela deixado ou sido obrigada a deixar de escrever?
Até que ponto seu abandono da escrita teria priorizado a sua realidade de
mulher guineense – aquela que deve se ocupar em cuidar de casa e dos filhos?
A meu ver, a dura vivência de mulheres guineenses, nos revela, de
fato, as dificuldades de elas se inserirem no exercício da literatura. Samy, em
1993, quando publicou A Escola , tinha todo o espaço a sua frente para
trilhar no caminho das suas inquietações: Pouco acesso de escolaridade de
mulheres, a violência no lar, casamento forçado e precoce, estupros e pouca
participação das mulheres na vida política e na literatura são os temas desse
belo livro. Por que Samy desistiu tão cedo de questionar tais mazelas, cujas
vítimas são as mulheres? Essa é a pergunta que fica no ar, já que não tivemos
ocasião de fazê-la para a escritora.
Odete Semedo, entre todas as escritoras guineenses, é das poucas que
continua com firmeza produzindo, palestrando e publicando obras literárias,
assim como pesquisando as tradições orais do país. Entre os livros publicados,
destacamos dois volumes de contos: o primeiro volume denomina-se Sonéá:
estórias e passadas que ouvi contar I. E o segundo Djénya: estórias e
passadas que ouvi contar II. Os dois volumes contam com dez contos, cinco
narrativas para cada volume, nas quais a autora, além de dar asas à sua
criatividade, também procura resgatar as estórias que ouvia da boca dos mais
velhos, ao redor das fogueiras, quando ainda era criança.
Vale
ressaltar que os dois volumes apresentam temáticas interligadas. Ambos têm as
mesmas características: sonhos, traições, práticas rituais, superstições, entre
outras crenças locais – que tomam conta de todas as páginas dessas duas obras.
Nelas, os personagens aparecem com nomes que têm um significado nas etnias
guineense, assim como na língua crioula. Por exemplo, Minô, da língua
fula, que significa ‘estou’, ou Mansebu, da língua crioula, que
significa ‘mulherengo’. Às vezes, surgem nomes de animais, como, por exemplo,
lobo e lebre, ou pássaros como mensageiros de uma nova. Esses são alguns dos
traços dessas duas obras importantes para a literatura guineense. As aventuras
dos personagens não se distinguem nos dois volumes. Tanto os personagens de Sonéá:
histórias e passadas que ouvi contar I, quanto os de Djênia: histórias e
passadas que ouvi contar II, pertencem ao mesmo mundo da criação literária
da autora.
Há nos
contos espaços metaforizados pela autora que, muitas vezes, nos levam a uma
reflexão profunda sobre eles. Esses espaços criados, às vezes, aparecem como
personagens são capazes de criar nos leitores várias possibilidades de leitura
e indagações. São espaços que nos confundem, mas ao mesmo tempo nos aproximam
dos problemas cotidianos guineenses. Adiante, no capítulo 4, analisaremos todos
os contos do segundo volume.
Andrea
Fernandes nasceu em 1955, em Bissau. Tem contos publicados na antologia dos Contos
do mar sem fim: Angola/ Brasil/Guiné-Bissau (2010) com o conto “Hóspede”,
que analisaremos no capítulo em andamento, e na antologia Dima, o passarinho
que criou o mundo: mitos, contos e lendas dos países de língua portuguesa com
o conto ‘Encontro’, que analisaremos no capítulo em andamento. Além disso, a
autora integrou a antologia Contos da cor do tempo (2004), publicada
pela editora Ku Si Mon, no seu décimo aniversário, como já referimos.
Andrea
Fernandes é uma excelente escritora e de visão literária invejável. Apesar de
ser pouco conhecida na diáspora e até nos meios dos seus conterrâneos, Ela nos
revela, através da sua escrita de cunho feminista, uma grande preocupação com a
situação da mulher na sociedade guineense. Dentre muitos contos escritos pela
autora, optamos para a análise o conto “Hóspede”.
Esse
conto apresenta características peculiares, diferentes dos demais contos
escritos pelos escritores guineenses. Temas como a desigualdade entre os gêneros,
a submissão da mulher, o casamento forçado, a violência nos lares e limitações impostas às mulheres, em busca de
desenvolvimento eficaz dentro da sociedade guineense já haviam sido enfocados
por outros autores. No entanto, Andrea Fernandes foge um pouco dessa linha
crítica, trazendo uma atmosfera de exaltação às mulheres na Guiné.
A
personagem Quinta Milgostos, protagonista do conto ora analisado, é uma
mulher livre, independente, mãe solteira, dona do seu próprio nariz. Quinta
vendia legumes na feira para ganhar o seu pão de cada dia: – “Trabalhar dê.
Ninguém me paga para ficar a dormir – respondeu Quinta, que ganhava a vida
menos mal a vender legumes caros no mercado – fica à vontade até eu voltar,
logo se vê”. O conto “Hóspede”, através dos personagens criados pela autora,
procura levantar a autoestima da mulher guineense, sensibilizando-a na
aprendizagem da liberdade e na luta pelos seus ideais, sem nenhuma dependência
econômica e amorosa do homem. O conto não esclarece em que época a trama se desenrola.
Contudo, alguns trechos mostram-nos que os fatos ocorrem nos anos 1980, na
cidade de Bissau, em Belém, um de seus bairros.
Ao lermos
esse conto, percebemos o quanto é urgente um estudo da autoria feminina e da
imagem da mulher nos meios acadêmicos guineenses, assim como os questionamentos
da subalternidade e do abandono das mulheres na sociedade guineense. O conto
apresenta uma vendedora de legumes que se revela uma mulher independente, mãe
solteira, trabalhadora e emancipada. Quinta Milgostos, a protagonista da
estória, conheceu Hospers numa festa de Djembé. Hospers é um
marinheiro holandês que desembarcou em Dakar como tripulante do navio mercante
Vera Cruz.
Num dia
de folga, isto é, no final do ano, ele acompanhou um colega para tocar tambor numa
festa de animação do evento – que festejava a chegada do processo de liberação.
Tudo aconteceu na terra senegalesa, Toubab Dialaw; foi nessa festa de
praia, que o marinheiro descobriu que a vida é bela, através dos sons do
tambor. Fora nessas festas que o holandês aprendera com muita eficácia a tocar djembé.
Ficara à noite inteira dançando e tocando: “Vera cruz tinha zarpado ao meio
dia. O coitado só acordou às três” (FERNANDES, 2010, p. 85).
Como a
vida não é somente pescar peixes, Hospers dedicou-se a tocar tambor, para
espalhar alegria nas terras africanas. Metido no sept-places, numa
viagem sem destino, o ex-marinheiro foi parar na Guiné-Bissau. Foi numa das
noites, tocando djembé no bairro de
Belém, que ele conheceu Quinta Milgostos. Tocou para ela, e esta dançou
até abraçar a alvorada. Quando tudo se esvaziou, Hospers declarou a futura
esposa o que sentia por ela desde que ali chegara – Mulher, io te quiero (Ibid.,
2010, p. 85). Quinta, sem piscar os olhos, retribuiu a mesma paixão que
sentia por ele, desde a entrada da festa, quando reparou em seu “ar de um
cachorro sem dono” (Ibid., 2010, p. 85). Não perdeu tempo e levou-o para casa,
coisa rara no comportamento das mulheres africanas: levar um homem para casa,
logo após o conhecer, é, de fato, algo impensável na sociedade guineense.
Destaca-se,
portanto, o mérito de Andrea Fernandes, que soube construir uma narrativa
inovadora, quebrando os tabus e mostrando que as mulheres podem ser felizes e
independentes, e que já não ficam presas em espelhos, olhando para suas feridas
ou tentando agradar aos homens. As mulheres de Fernandes ousam romper as
barreiras de estereótipos e preconceitos sofridos, reivindicando o amor
retribuído, coisa rara nas relações amorosas no seio guineense. Como podemos
ver no trecho a seguir:
Hospers enchia-a de atenção, levava-a a passear à
noite, massaja-lhe as pernas e os ombros cansados quando chegava do trabalho,
tratava-lhe do cabelo e das unhas dos pés, tocava tambor só para ela dançar,
satisfazia-lhe os Milgostos e ainda outros que ela nem sabia que pudessem
existir, e nunca houve nada que conseguisse fazê-lo zangar (FERNANDES, 2010, p.
85).
Lembramos a propósito o escritor
angolano, Fragata Moraes, que, em 2010, produziu o conto ‘Amor e perdição’, publicado na mesma
antologia dos Contos do Mar sem Fim, no qual procura mostrar a falta de
cuidado e de atenção dos homens africanos para com suas mulheres. Trazendo ali
características muito semelhantes às de “Hóspede”, Moraes mostra o envolvimento
de uma mulher angolana com um estrangeiro. É o que vemos no seguinte
trecho:
Julieta sorriu e acarinhou-o novamente. O balofo do
Bola de fungi nunca brincara com ela deste modo. Sempre cansado do serviço,
comer, ver televisão e dormir. Às sextas-feiras faziam amor, mais por
obrigação, mesmo não sendo ele assim tão mau na arte. Mas o peso, ai santo
deus, o peso é que lhe tirava as ganas. Bem lhe pedira para ser ao contrário,
mas qual quê, lugar de marido é em cima e não havia nada que o demovesse. À
mínima insinuação, resmungava logo, isto aqui não é lá como com os cabrões dos
estrangeiros que andaste (FRAGATA, 2010, p. 60).
O conto ‘Hóspede’
tem poucas páginas, um narrador omnisciente e poucos personagens, além dos
secundários, citados, porém não mencionados; por exemplo, as duas filhas da
Quinta Milgostos que vivem em Lisboa, os colegas do Hospers e o
vidente que tentou a todo custo ganhar dinheiro às custas de Quinta,
advertindo-a que o estrangeiro, no caso, Hospers, é um espírito sagrado.
Esse é um conto para ser lido e relido, e nos levar a entender o quanto a
situação das mulheres no continente africano é ainda de grande subalternidade.
O texto nos emociona e, ao mesmo tempo, nos conduz à reflexão. A autora
consegue nos mostrar as dificuldades no dia a dia do espaço guineense, assim
como na África: a falta de atenção, de cuidados ou de amor retribuído.
Nesse
sentido, pensamos aqui no livro de contos Mornas eram as noites (1994),
da escritora cabo-verdiana Dina Salústio. Esta obra aponta também para a mesma
preocupação dos contos acima comentados, apresentando rostos revoltados de
todas as mulheres da sua terra, sem distinção da cor, classe social, ou posição
política – mulheres que trabalham, acima de tudo, e cuidam da casa e dos
filhos. Mulheres solidárias, violentadas, pobres e mortas, retratos que compõem
as trinta e cinco narrativas do livro, escritas de forma poética, curta e
direta.
O conto ‘Hóspede’ é uma imagem de
liberdade, bem como aponta a fala da protagonista da estória – “A liberdade é
livre, e na sua variedade está o gosto (FERNANDES, 2010. p.83). O conto também
fala do comprometimento que as mulheres guineenses devem ter para reivindicar os
seus direitos enquanto mulheres, transformando-se em donas dos seus narizes,
numa sociedade em que o machismo não descansa nem um dia. A liberdade é o que
deve movê-las para não se sentirem dominadas nem excluídas, perdendo o medo de
lutar, mesmo sendo derrotadas por forças masculinas que ainda dominam o
universo guineense.
Numa sociedade em que as mulheres
são vistas de forma subalterna, há mil razões para Quinta Milgostos
desconfiar de tanto amor que recebia do Hospers. “Tanto e tão bem amada foi,
que um dia, sentiu medo”. “– Isto não pode ser. É demasiado bom para ser
verdade” (FERNANDES, 2010, p. 86). Essa desconfiança do amor que vivia a
incomodava dia e noite; até que, certo dia, vai parar na casa de um grande
vidente para saber se o que vive é verdadeiro ou se o marido estrangeiro não é
um espírito sagrado que invadiu a sua casa.
O conto
vai muito fundo da nossa imaginação, revelando-nos a figura de uma nova mulher
guineense, muito bem construída no texto. O título já nos adverte para a
interpretação da narrativa. Hóspede, segundo o dicionário da língua portuguesa,
é a pessoa que é recebida, por algum tempo, em casa alheia. Mas Hospers veio
para ficar na vida da Quinta Milgostos. “Mudou-se toda de saudades durante mais
de vinte anos, e o que é mais, a dúvida não parou de roer-lhe a alma pelo resto
dos seus dias” (FERNANDES, 2010, p. 87).
A autora
embarca na imaginação, usando estratégias que erguem a voz de mulheres guineenses,
cujas feridas são fundas e difíceis de tratar. O conto é testemunho de uma
escrita feminina – que pretende desenhar um mundo novo de mulheres. sem medo de
criar asas para um longo voo. O grito espalha-se por todos os trechos do conto.
O grito de inconformismo, de denúncias para dizer um basta.
Por outro
lado, destacam-se, também, os encantos, principalmente no rosto da Quinta Milgostos,
dançando até horas sem fim, para testemunhar a vida feliz e independente que só
a ela pertence. A liberdade está na esperança dos dias incertos, pois o texto
mostra que as mulheres guineenses precisam vencer o medo e viver prontas para
cultivar a esperança, em um país onde as desigualdades de gêneros se
multiplicam sem cessar. Hospers e Quinta Milgostos viveram um amor verdadeiro e
puro, bonito demais, um amor que espalha inveja.
Se a
nossa literatura é tão pequena por razões aqui bem esclarecidas logo na
introdução deste trabalho, também é tão pequeno o autor Tambá Mbotoh,
comparando a sua visibilidade com os demais autores já considerados consagrados
na Guiné-Bissau, por exemplo, Tony Tcheka, Odete Semedo e Abdulai Sila.
Apresentamos,
a seguir, Tambá Mbotoh, nascido em 13 de março de 1955, em Bissau. Há pouco
tempo, numa viagem a Bahia, abri o livro Contos do Mar Sem Fim, e me
deparei com a grandeza de escrita do autor, capaz de relatar os problemas
sociais e políticos guineenses de uma forma simples, mas profunda.
Mbotoh
aparece na antologia referida com o conto “O serco”. Na língua portuguesa a
palavra se confunde muito com “cerco”, que é uma ação de cercar, ou de
circundar por meio de cerca, segundo os dicionários. Já o serco é uma palavra bem conhecida no
vocabulário guineense, pois a maioria das famílias guineenses tem um serco. Na
língua portuguesa, temos a palavra “cerco”, que carrega pronúncia e escrita
quase igual à da palavra crioula; porém, o significado de cada uma é totalmente
diferente do outro. No contexto guineense, “O serco” é uma casa de banho comum
de uma família alargada guineense, e fica situado da casa próximo das casas
vizinhas (muitas vezes um serco é usado por duas ou três famílias). Também
pode ser visto como latrina fora do corpo da casa. A maioria dos sercos
apresenta uma estrutura cercada de kirintin, mas também, em alguns casos, é
cercado de chapa de zinco, apresentando um estado desumano. Relembramos, aqui,
que na Guiné-Bissau só as “elites” possuem um banheiro adequado para uso dentro
de casa, assim como água canalizada e luz elétrica.
Tambá
Mbotoh, até há pouco tempo desconhecido no espaço literato guineense, vem
justamente apontando as desigualdades sociais num país em que os políticos e
governantes fazem da nação um “quintal”. O conto apresenta poucos personagens.
Dentre eles, citamos, Eduino Gomes da Silva, o protagonista, e o Aliu “o menino
de mandado”; há ainda outros apenas referidos, como os jornalistas, Korvo
e Kotedua. O narrador é um político – que acabou de assumir a pasta de
Ministério de Comunicação Social. No entanto, o partido, além de confiar-lhe o
cargo, também, prometeu uma casa nobre para sair do beco onde morava.
São os meus últimos dias a viver na casa do bairro,
mas se não fosse o Patrol que me deram, juro que até ficava a dormir no
Ministério. Quando vou a entrar no bairro a esta hora, em pleno dia, diminuo a
velocidade do carro, mas isso não impede a habitual correria de porcos, miúdos
e galinhas a afastarem-se à minha passagem, num chinfrin desgraçado que me põe
logo de péssimo humor. O pior é que é sempre assim, todos os santos dias, como
se a rua fosse deles e eu um invasor, e isso me faz lembrar logo dela, da bela
casa que me vão dar, e do pouco que falta para eu abandonar este maldito
pardieiro (MBOTOH, 2010, p. 89).
O conto
relata a estória de Eduino Gomes da Silva, um alto dirigente de um partido não nomeado.
Pelo tempo referido no conto, dão-nos a entender que é o PAIGC, partido no
poder desde a independência do país até 1998 – ano da guerra de 7 de junho,
referido no conto ironicamente. Eduino foi nomeado pelo seu partido para o
cargo de ministro da comunicação social. Só que sua nomeação o pegou de
surpresa, e Eduíno mora em um bairro pior do que as favelas das cidades
brasileiras; pior ainda que os bairros dos musseques de Angola e sem
nenhuma privacidade, como vemos no trecho a seguir:
O episódio deixou-me irritado. A minha nomeação para
Ministro dos Órgãos apanharam-me a viver nesta casa miserável, com uma porta à
frente e outra atrás, que dava para um quintal de má morte fechado com kirintins
que já não vedam coisa nenhuma, descaídos e roídos pela baga-baga, além dos
buracos que vão deixando as vizinhas de atrás quando arrancam pedaços para
acender o fogareiro (MBOTOH, 2010, p. 90).
O que lhe
assegurava toda a desgraça de morar num bairro como aquele era o seu Patrol,
mas quando voltava do trabalho para casa sentia-se um verdadeiro “lixo”:
“Choveu a noite toda e a rua está uma miséria. Meu belo Patrol, murmurou
agradecido, acariciando o volante forrado em cabedal antes de ligar o ar condicionado
e o leitor de cêdes” (MBOTOH, 2010, p.90).
Eduino
Gomes da Silva é obcecado pela casa prometida, e não escondia nos olhos a
pressa de mudar-se do bairro de lixo onde morava para um bairro nobre, pois
“luxo com lixo não combina”. Assim, declara: “Não há nada a fazer, estou
obcecado com a casa nova e já nem os prazeres do Patrol me conseguem distrair
mais de um minuto deste desejo imperioso de tê-la toda para mim” (MBOTOH, 2010,
p. 90). Apesar de Tambá Mbotoh ser pouco conhecido tanto no país, como na
comunidade de língua portuguesa, não podemos ignorar o seu amadurecimento
literário no conto ‘O Serco’ escrito numa linguagem acessível, porém
cheia de figuras estilísticas que marcam a realidade do dia a dia guineense. O
seu estilo se aproxima, de certa forma, ao de Abdulai Sila, pois os dois
transportam para o texto o falar popular do povo guineense. Não há como ficar
cego perante as realidades do país, bem presentes no conto e exploradas com
intensidade, caracterizando a forma peculiar de escrita de Mbotoh, e marcando-o
como um contista promissor, que sabe escolher as palavras para caracterizar os
comportamentos ilícitos dos governantes atuais.
O Conto
“O serco” é destacado neste trabalho no sentido de ampliar a visão crítica de
um país que é ainda um dos países mais pobres do mundo, muito em função das
condutas autoritárias dos seus governantes. O texto foca-se nas posturas
egocêntricas, voltadas mais para o acúmulo de bens materiais do que para o
interesse do povo. “Era só dela agora que eu sentia a falta. Das três vezes
anunciadas, da minha prometida, daquela por quem eu espero dia e noite. Felizmente
já faltou mais para eu entrar nela. Prometeram-me as chaves para hoje ou
amanhã” (MBOTOH, 2010, p. 89). Os bens materiais são os primeiros pensamentos
que tomam conta dos principais personagens, apresentando sempre discursos
falsos, que buscam impressionar e enganar o povo. É o que podemos observar no
trecho a seguir: “Quando fui chamado a servir o país como ministro aceitei
imediatamente, sem hesitações. A pátria está por cima de todas as coisas e, se
meu modesto contributo se revela indispensável, eu tudo faria para dignificar o
cargo” (MBOTOH, 2010, p.91).
Na medida
em que mergulhamos no conto, ganhamos a consciência de algumas certezas e verdades. Essas verdades e
certezas vão desvendando, de forma clara, a realidade política do país. Veja-se
o trecho: “Comunica-se aos detentores de bens públicos que devem apresentar-se
na sede do quartel-general dos três movimentos nas próximas vinte e quatro
horas e fazerem entrega dos veículos e bens que se encontram na posse” (MBOTOH,
2010, p.96). Observamos que aqui o autor enfatiza um novo tempo, e sonha com esse
mesmo tempo, realçando novas ideias para despertar inovações no campo político
guineense. Por fim, a narrativa nos apresenta um final triste e solitário do
governante – arrogante – que se sentia dono de todo o poder:
Gritei logo por
Aliu, pra que fosse ver o que se passava. Não havia Aliu, nem cachorro. Tinham
sumido. Tinham fugido de mim, o par de cachorros! E agora ouviam-se nitidamente
tiros na estrada, cada vez mais perto.
– Mame di mi ki padin – sussurrei desnorteado, já com a barriga fora de
controle, e desatei a correr mais uma vez para o serco (MBOTOH, 2010, p. 96).
Assim
termina esse belo conto, apontando para o descontentamento e a rebeldia dos
militares – que resultou na guerra civil de 7 de junho de 1998. “Gritei logo
por Aliu, pra que fosse ver o que se passava. Não havia Aliu, nem cachorro.
Tinham sumido.”
Optamos
por apresentar aqui a maior parte dos contos aos quais tivemos acesso, pois
assim percebemos que os escritores guineenses, tanto no exterior tanto no país,
continuam mostrando o desencanto e questionando os rumos do pós-independência.
O conto escrito cada vez mais ganha espaço na literatura bissau-guineense. Acredito
ser um dos recursos que melhor pode apresentar o país em relação ao espaço e às
culturas locais.
Hoje, sem
nenhuma dúvida, os poetas, os romancistas e os contistas são vistos como
porta-vozes da sociedade guineense. São eles que carregam essas dores imbuídas
de tristezas, dando voz para aqueles que não as têm. Se antes da independência
do país as temáticas literárias voltavam-se para denunciar a presença e
opressão colonial, após a independência, percebe-se que há uma grande mudança
nos temas dos escritores guineenses. O desencanto da pós-independência é pilar
de destaque na cobrança das promessas feitas para um país melhor, com que todos
os combatentes e filhos da Guiné-Bissau sonhavam viver.
2.4. Poesia: a voz dos oprimidos
O
poeta ironiza na dança das palavras e diz que tudo muda, porque as vozes são
mudas [...] (TCHEKA, 2011, p. 70).
O canto evocado pelo poeta Tony Tcheka, pseudônimo de António Soares
Lopes Júnior, da Guiné-Bissau, no trecho do seu artigo ‘A Literatura guineense
está viva’, foi publicado no livro Literaturas
da Guiné-Bissau: Cantando os escritos da história, organizado por Margarida
Calafate Ribeiro e Maria Odete Soares Costa Semedo. Tcheka parece apontar um
caminho de esperança e luz para as almas guineenses que, no dizer do poeta, têm
sido caladas. Mudas, porque foram
submetidas ao silêncio que fez com que elas vissem a vida como o sofrimento que
há séculos lhes estendia o manto para muitas noites de dores forçadas na
peregrinação sem destino.
Parece-me que o tempo não mudou muito. Se mudasse, a meu ver,
deixaria os traços – que ainda despertam sempre os poetas para consolar os
angustiados perante o desencanto da vida que perambula nas marcas do próprio
tempo. A poesia, na boca dos homens de letras guineenses, serviu como arma para
lutar e combater o imperialismo estabelecido por séculos num país que parecia
ser apenas mais uma fonte de exploração para os colonizadores. No entanto, a
poesia era a melhor maneira de se fazer ecoar a voz do povo injustiçado.
Hoje, ainda, a poesia serve para contornar as dores de desencanto do
pós-independência – as vozes revolucionárias, de uma maneira intimista e ao
mesmo tempo coletiva, vão cantar as mesmas melodias de angústia do
pós-independência que o tempo ainda não soube superar. Como bem observou Tony
Tcheka: “E hoje, quando deviam cantar outros versos, conjugam os mesmos verbos
com os mais velhos, como se o tempo tivesse parado no tempo”. (TCHEKA, 2011, p. 69).
As palavras do poeta são sentidas no mais fundo do ser, onde possam
encontrar a alma de um guineense. As palavras do poeta, também, descrevem que o
luto e a melancolia continuam a trilhar os mesmos caminhos de ontem, em um chão
onde se encontram as marcas de dor amargas do passado e desse sol, que todos
esperam amanhecer, mas que ainda custará um alto preço a pagar. “Ali onde a dor
e a paixão se confundem” (TCHEKA, 2011, p. 69).
Insistimos em apontar que a presença portuguesa, há mais de cinco
séculos no território que, hoje, é denominado de Guiné-Bissau, provocou um grande
atraso na economia, na política, na educação, na saúde e na péssima
infraestrutura dos serviços no país. Sabe-se que a Guiné-Bissau, por muito
tempo, apenas servia como um território de exploração e de fins comerciais para
colonialistas portugueses que ali viviam, não tendo construído nada de
significativo para o seu desenvolvimento, em comparação com outras colônias,
como Moçambique, Angola e Cabo Verde.
Embora já tenhamos mencionado anteriormente, lembramos que a
Guiné-Bissau só teve sua primeira instituição de ensino em 1958 – o Liceu
Honório Barreto -, enquanto que, em Cabo Verde, o Liceu Gil Eanes já existia
desde 1860. Como se vê, há uma diferença larga entre esses dois países no campo
da educação, o que, naturalmente, nos ajuda a entender o pioneirismo da literatura
cabo-verdiana no seio das demais literaturas africanas de língua portuguesa.
Na Guiné-Bissau, antes da independência, não havia espaço para o
desenvolvimento da literatura propriamente dita. Tampouco surgiu uma elite
cultural, capaz de dar origem à criação de grupos que, num futuro próximo,
originassem movimentos literários locais. Os nativos eram mais vistos como
rebeldes e, em função disso, eram segregados. Assim, pode-se dizer que não
havia espaço nem liberdade para que os habitantes externassem sentimentos de
revolta ou de dor em relação ao sistema de opressão instalado, a não ser
registros na tradição oral. Na época colonial, havia mais obras publicadas por
estrangeiros que viviam na Guiné Bissau e escreviam seja em poesia seja em
prosa. Praticamente a maior parte dos escritos dessa época apresentava uma
visão estrangeira, não apontando sequer as desilusões e opressão sofridas por
parte dos nativos, considerados na sua maioria gentios.
Porém, da parte dos nativos
não se registaram quaisquer escritos que pudessem denunciar ou mostrar esta e
outras questões ligadas à resistência dos autóctones, mas do ponto de vista
local registam-se os testemunhos orais; pois da penetração até o momento em que
a administração colonial portuguesa foi instalada não se conhecem notas sobre
grupos ou de um grupo de guineenses que se dedicaram às letras e/ou ao registro
da situação que então vivenciava. Uma situação que difere com a de Angola, Cabo
Verde e Moçambique, onde se registaram atividades de intelectuais que deram
origem a movimentos literários (SEMEDO, 2011, p. 25).
A poesia sempre foi para os africanos a forma mais emblemática de
resistir e lutar contra o colonialismo e o neocolonialismo, atuando na África
desde muitos séculos. Na Casa dos Estudantes do Império (1944-1956), fundada
para abrigar estudantes africanos de "Além Mar", encontraram-se
alguns dos que se tornaram grandes mentores dos movimentos de independência em
seus países, a saber, Angola, Mocambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde,
Guiné-Bissau. O fazer poético desses
jovens líderes foi um sensível instrumento de protesto e de sensibilização,
destacando-se nomes como Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane,
Samora Machel, Noemia de Souza, Alda do Espírito Santo, José Craveirinha, entre
muitos outros. Seus versos eram vistos como uma forma escolhida para questionar
a presença dos colonizadores portugueses na África. A voz desses poetas e
ativistas, alguns deles vivendo na Europa, cheios do espírito revolucionário,
levantou-se em protestos contra a exploração humana.
Na Guiné-Bissau, a poesia, na época da colonização não serviu
somente como expressão para libertar os sentimentos de dor, mas, também, serviu
para mobilização do povo para uma luta armada; enfim, para dar um basta ao jugo
colonial. Foi nesse mesmo espírito que poetas como Amílcar Cabral e Vasco
Cabral escreveram seus versos de indignação. Versos que interrogavam a
preocupação com a existência humana e seu verdadeiro valor. Nos anos 1940,
Amílcar Cabral já produzia poemas. Rejeitou ser silenciado e sua poesia não se
calou perante a dor. O poema No fundo de
mim mesmo talvez seja um dos que mais revela a radiografia desse tempo de
tirania:
No fundo de mim mesmo
eu sinto qualquer coisa que fere minha carne,
que me dilacera e tortura …
… qualquer coisa estranha (talvez seja ilusão),
qualquer coisa estranha que eu tenho não sei onde
que faz sangrar meu corpo,
que faz sangrar também
a Humanidade inteira!
Sangue.
Sangue escaldante pingando gota a gota
no íntimo de mim mesmo,
na taça inesgotável das minhas
esperanças!
Luta tremenda, esta luta do Homem:
E beberei de novo – sempre, sempre, sempre -
este sangue não sangue, que escorre do meu corpo,
este sangue invisível – que é talvez a Vida![38]
Encontramos nesse
poema uma voz que quer ser ouvida, um grito que não esconde a sua ferida e
apresenta a sua carne e a sua alma torturada.
O poema de Cabral vai além, fazendo com que a sua voz de luto ultrapasse
as fronteiras. Podemos dizer que a tortura - corpo
sangrando, carne dilacerada - é a sua África despedaçada em mãos do
colonizador.
Amílcar Cabral e
Vasco Cabral são vozes que mereceram exaltação. Apesar de terem-se manifestado
de forma individual, seu inconformismo em relação aos sofrimentos do povo
guineense e seus versos valeram para resistir o mal-estar e
a barbárie imposta à população guineense. A poesia se revelava um caminho para
buscar saídas às insatisfações do quotidiano. O poema de Vasco Cabral,
intitulado “3 de agosto”, abaixo transcrito, sem dúvida, faz alusão a esse
período de violências.
3 de Agosto
1959
Bissau desperta inquieta
do sono da véspera.
Sopra o vento de morte
no cais de Pindjiguiti!
E de repente
o clarão dos relâmpagos
o ribombar dos travões.
O meu povo morre massacrado
No cais de Pindjiguiti!
Um clamor de vozes
ameaças e pragas
fulmina o espaço
num coro de impotência.
O meu povo morre massacrado
no cais de Pindjiguiti!
Em
1959, os trabalhadores de porto de Pindjiguiti realizaram um simples protesto
de reivindicação por direitos a um salário digno, tendo em conta as muitas
horas de trabalhos estafantes a que estavam submetidos. O protesto culminou em
um massacre, como assinalam os versos do poema acima.
Antes
de 1960, poetas nativos guineenses demonstravam paixão pela literatura,
escrevendo poemas de cunho nacionalista, entre eles, os nomes aqui já
referidos. Mas o primeiro guineense nativo a publicar um livro de poesia foi
Carlos Semedo com o simples título Poemas, pelo Jornal Bolamense,
em
dezembro de 1963.
Ali encontram-se versos que anseiam a liberdade, mostrando que a poesia
podia servir para lançar a esperança de um amanhã por vir – que garantisse o sossego
do povo guineense. O poeta também cantou a sua alma distante da sua terra e dos
seus anseios – a saudade que só os versos poéticos podiam vencer.
Sobre Carlos Semedo, assim se expressa Moema Augel:
Se considerarmos
1963, ano em que foi publicado o livrinho de poemas de Carlos Semedo, como o
marco do surgimento da literatura guineense, temos que passar por um período de
silêncio de quinze anos de duração até o aparecimento da segunda publicação
individual. Apesar de incipiente e modesto, o caderno de quarenta e sete
páginas tem que ser com razão festejado
como a primeira publicação individual no âmbito da beletrística de autoria de
um filho da terra na ainda colônia da Guiné (AUGEL, 1998, p.65).
Depois de uma longa pausa sem publicações, a antologia Mantenhas para quem luta: A nova Poesia da Guiné-Bissau (1977), sem sombra de
dúvida vai marcar o fortalecimento de uma literatura propriamente dita,
fugindo, assim, das características das ‘manifestações literárias’ propagadas
até as décadas de 1940 e 1950, sem uma articulação e um sistema próprio. Como
afirma Odete Costa Semedo:
Antonio Candido denomina de manifestações
literárias e define-as como todo o balbuciar literário de inspiração individual
ou de influência em outras literaturas, porém, não representativas a ponto de
ser considerado um sistema. Essas manifestações literárias são próprias de
fases iniciais, em que a imaturidade do meio dificulta a organização de grupos
e a elaboração de uma linguagem própria; do outro lado está o segundo momento,
considerado o de afirmação da literatura como sistema de obras ligadas por
denominadores comuns, que permitem reconhecer traços dominantes de uma classe. Esses
denominadores são determinados elementos
de natureza social, as características internas e psíquicas literalmente
organizadas (SEMEDO, 2011, p. 23).
Após a independência, o primeiro guineense a publicar um livro
individual, foi Francisco Conduto de Pina, com Garandesa di no Tchon, obra pioneira no país recém-independente. O
título em crioulo carrega várias conotações importantes no contexto guineense –
imagens que louvam a grandeza do país, seus recursos naturais e o seu espaço
úmido – que permite cultivar a terra tanto na chuva como na seca. Contudo, o
país com esses recursos continua a depender da comunidade internacional para
sobrevivência. Apesar de contar apenas com 36, 125 km², neste ‘chão’ da Guiné
há chuvas para lavrar a terra, há madeiras para construções de imóveis e há mar
– maior riqueza do país. Tudo isso faz grande o nosso Tchon, que é o termo
crioulo para designar a terra natal, que a voz do poeta exaltou cantando também
a sua África em liberdade:
Que linda tarde
Tarde de setembro
Tarde africana o sol imerge no horizonte
Leva consigo a tristeza
De tanta gente (PINA, 1978, p. 8).
Pode-se afirmar que, entre os países da colonização portuguesa, a
Guiné-Bissau foi o que mais tardiamente viveu o desenvolvimento da escrita. A
primeira editora - Nimba - só foi
criada em 1987, sob tutela da Direção Geral da Cultura da época. Parece-me que
a existência dessa editora foi curta, sendo substituída anos depois pela
Editora Escolar (1991), com financiamento da Suécia, destinada à edição de
material escolar, que vinha publicando desde 1991. (AUGEL, 1996, p.10). Esse fato
influenciou bastante as produções literárias em geral. Apesar da raridade de
editoras, apareceu, em 1973, já nas vésperas da independência, a primeira
antologia poética, Poilão, uma
modesta coletânea que reuniu poetas de diferentes nacionalidades, entre eles:
quatro portugueses, três cabo-verdianos e quatro guineenses (AUGEL, 1998, p.
89).
Na década 70, registre-se a publicação de antologias poéticas, forma
adotada para dar visibilidade aos escritos dos poetas – que tanto escreviam, e
não podiam ser lidos. Falando da coletânea pioneira, após a independência,
percebe-se que a mestiçagem não se observa somente nas distinções das pátrias,
mas, sim, nos temas ali presentes – que, sem dúvida, o dizer poético de cada
autor emprestou obra um sabor – que só a arte nos oferta.
Percebemos um amadurecimento literário de alguns poetas guineenses
que, antes da independência, ainda jovens, já manifestavam nos seus versos um
espírito revolucionário, engrandecendo a terra natal e demonstrando uma
profunda consciência da realidade colonial.
A obra Mantenhas para quem luta foi
festejada como a primeira reunião de poemas do novo país Guiné-Bissau. Como
Odete Semedo se expressou:
Em 1977, nos verdes anos da independência, é uma
antologia poética que vai marcar o
início da literatura guineense – do seu título Mantenhas para quem luta. A nova poesia da Guiné-Bissau –, trazendo
temas em torno dos quais vozes de catorze poetas se uniram e se fizeram sentir, apenas
<senão> de entre esses nomes não constar nenhum nome feminino (SEMEDO,
2011, p. 29).
Essa obra coletiva revelou uma identidade própria e uma dicção que
expressava claramente o compromisso político dos autores ali publicados:
exaltando a pátria, a independência e expressando agradecimentos àqueles que
deram a vida nas matas da nossa terra para salvar o povo do jugo colonial: os
combatentes da liberdade da pátria. Os “meninos de hora de pindjiguiti”, como referiu Mário de Andrade uniram vozes para
denunciar o mal-estar que a presença portuguesa causou aos filhos guineenses.
Nessa obra, sim, havia unificação de vozes, sendo que uma parte considerável de
criações poéticas dessa antologia data ainda do período colonial, além de algumas
que foram produzidas após a independência, em agradecimento aos combatentes.
Em 1978, surgiu Momentos
Primeiros da Construção, com participação de doze poetas, e a colaboração
de uma única mulher: Mariana Marques Ribeiro. As publicações antológicas não
pararam por aí. Em 1979, foi publicada, em Bolama, ilha do arquipélago dos
Bijágos e antiga capital, a Antologia dos
Novos Poetas, jovens cheios de inspirações, em seus versos que apresentaram
denúncia ao colonialismo e revelaram as cicatrizes da guerra colonial. A
referida antologia tem como título Os
Continuadores da Revolução e a Recordação de um Passado Recente. Nela, a
língua crioula apareceu como marca da valorização da cultura local.
Passou-se quase uma década para publicação de A nova Poesia: antologia poética da Guiné-Bissau. Publicada em
1990, e que difere das outras até então publicadas por ter um volume maior de
páginas e contar com a presença de duas vozes femininas: Domingas Samy e Eunice
Borges, de origem cabo-verdiana. Dois anos depois, foi publicada em Lisboa O eco do pranto – A criança na moderna poesia guineense. Essa antologia tratou da
problemática das crianças na sociedade guineense, num esforço da UNAE,
organizada por Tony Tcheka. Todos os temas dessa obra procuraram abordar
questões relativas ao espaço infantil no universo guineense. E mesmo no
universo africano. Lamento dizer novamente que, entre nove poetas a obra só
contou com uma presença feminina - Mariana Ribeiro.
Na década 90, pouquíssimos autores haviam sido editados, com exceção
de Francisco Conduto de Pina, que já havia publicado como referimos, em 1978, o
seu primeiro livro de poesia Garandesa di
no Tchon.
No entanto, não se pode dizer que não existiam outros autores que
escreviam literatura. Em 1996, com a contribuição da pesquisadora Moema Parente
Augel, de nacionalidade brasileira, em colaboração com o INEP, surgiu uma
antologia poética intitulada em crioulo: Kebur[39]:Barkafon di Poesia na Kriol. Trata-se do primeiro volume da Colecção
Kebur, sendo de uma coletânea que conta com todos os versos em kriol, coordenada e prefaciada pela autora
supracitada. A publicação privilegia textos inéditos escritos em crioulo e
reforça a valorização da língua enquanto acervo da memória coletiva. Além de
tudo isso, os textos ali publicados estimulam o gosto pela leitura, e reafirmam
a identidade cultural do povo guineense.
Se a década de 70 foi
considerada o marco da literatura guineense, com várias publicações de coletâneas
de cunho nacionalista, a década 90 inspirou e revelou várias vozes poéticas que
questionavam a situação social do país e apontavam o desencanto da
pós-independência. Afinal, a independência já se revelava apenas como uma
ilusão.
Alguns anos após a
independência do país, isto é, a partir dos anos 90, surgiu uma nova maneira de
fazer poético, uma forma peculiar, diferente de outros tempos, em que os poetas
contestavam a presença colonial e uniam gritos para exaltar a liberdade e lutar
contra o sistema colonial. Parece-me que durante esse novo período os poetas
dessa geração se abraçaram em uma mesma sintonia, fazendo críticas da vida
miserável que o povo levava. No lugar da esperança e dos sonhos de dias
melhores começaram a brotar espinhos de desencanto ao lado da falta de produtos
de necessidades básicas.
Crescia, também, o descaso pelos
antigos combatentes que, outrora, lutaram para liberdade da pátria guineense.
Essa nova postura inspirou a maioria dos textos poéticos, assim como
textos ficcionais que começaram a questionar a esperança e as promessas que
medraram durante as lutas pela independência e a euforia da vitória
conquistada, para pôr em relevo a crítica aos desmandos dos governantes e a
traição aos ideais libertários pregados pelos líderes do passado.
Viu-se nascer um período de
autoritarismo e abuso do poder – que vai se prolongar por vários anos, ou
melhor, que ainda está vigente no país. Daí, multiplicaram-se discursos denunciadores
representantes de letras, como Agnello Regalla, Tony Tcheka, Abdulai Sila,
Odete Costa Semedo, Huco Monteiro, Felix Sigá, Jorge Cabral, só para citar
alguns deles, que tomaram outros caminhos, trazendo, nos seus poemas e outros
textos, críticas a uma nação fragilizada, com péssimas condições sociais. A
explicação desse momento é reforçada pelas palavras da escritora Odete Semedo:
Porém, em menos de uma
década depois das independências, a realidade de uma gestão deficiente começou
a fustigar os sonhos de um país justo, de uma distribuição equitativa de
riquezas, sobretudo dos bens de primeira necessidade. Nessa altura, os textos
começaram a tomar outras feições, e, hoje em dia, os poemas já não exaltam os
heróis, mas questionam sobre a vida de miséria dos combatentes da liberdade da
Pátria; já não só glosam Amílcar Cabral na sua afirmação de que “as crianças
são as flores da nossa luta e razão principal do nosso combate”, mas questionam
o porquê da ausência de escolas para todas as crianças, por que os cuidados com
a saúde continuam insuficientes (SEMEDO, 2010, p. 33).
Foi nesse mar de desencanto
da pós-independencia que a inspiração de alguns poetas acendeu; muitos deles tiveram
oportunidade de publicar suas obras individuais no projeto do INEP, a Série
Literária, coordenada pela pesquisadora Moema Augel.
A Série Literária -
Colecção Kebur, projeto do INEP, foi financiada pela União Europeia. O projeto
visava tornar visíveis os poetas que até então não tinha conseguido ter acesso
a uma publicação. Mas por que não tinham nada publicado? Quem responde a essa pergunta é Peter Mendy,
na apresentação do livro de poemas, Marinheiros
da Solidão, de Jorge Cabral: “A história da Guiné-Bissau regista um período
infértil na literatura publicada porque muito pouco foi escrito. Não por falta
de poetas ou de motivações nem de inspirações, mas apenas pela ausência de um
ambiente favorável” (CABRAL, 1998, p. 9).
O projeto do INEP revelou
poetas guineenses e marcou as publicações individuais de temáticas de protestos
e indagação da vida miserável das crianças sem escolas, descaso na saúde
pública e questionamento, também, dos combatentes da liberdade da pátria que
acabaram por se refugiar nas bebidas alcoólicas, amparando suas vidas
solidárias. Nessa leva, mais de uma meia de dúzia de poetas dessa geração
expressaram de forma intimista a dor da alma, também coletiva, na medida em que
esse sofrimento foi comum a todos os guineenses.
Nesse projeto que contou
com oito publicações, vieram à estampa seis livros individuais, todos utilizando,
sobretudo o português e também com poemas em língua local, o crioulo.
A grande inovação dessa
iniciativa foi abrir a série com uma antologia exclusivamente em crioulo: Kebur: Barkafon di Poesia na Kriol, como forma de divulgar essa língua e
exaltar a identidade cultural guineense. Comenta Moema Augel:
Acreditamos além disso
também que, com a publicação de obras em kriol, estaremos contribuindo para um
maior gosto pela leitura, um mais amplo acesso da juventude aos livros, que se
sentirá, esperamos, mais motivada a entregar-se à disposição livros escritos
numa língua que lhes é mais familiar (AUGEL, 1996, p.14).
Achamos necessário citar os nomes de todos
eles, para que os interessados em pesquisar os escritores guineenses tanto no
país, como no exterior possam conhecê-los: Adriano Gomes Ferreira (Atchutchi), Djibril
Baldé, Ernesto Dabó, Nelson Medina, João José Silva Monteiro (Huco Monteiro),
Dulce Maria Vieira das Neves (Dulce Neves), Respício Nuno, Francisco Conduto de
Pina (Conduto de Pina), Armando Salvaterra (já falecido), José Carlos Schwarz (Zé
Carlos – já falecido), Maria Odete da Costa Soares Semedo, António Félix Sigá (
já falecido) e António Soares Lopes Júnior (Tony Tcheka) (AUGEL, 1996).
O projeto Série Literária,
Coleção Kebur, contou ao todo com oito volumes: O primeiro volume foi
publicado em 1996, Kebur: Barkafon di
poesia na kriol, coletânea de poesias apenas em língu guineense. A obra
contou com a presença de treze poetas, muitos deles novos, enquanto alguns
poucos já haviam publicado em outras coletâneas do país, entre eles Tony Tcheka
e Felix Sigá.
O segundo poeta escolhido
dessa coleção é Tony Tcheka, com a sua obra de cunho nacionalista, intitulada Noites de Insônia na terra adormecida, publicada
no mesmo ano que o primeiro. Essa obra,
do ponto de vista literário, possui a mesma força que as de Vasco Cabral e
Hélder Proensa. O livro de Tony Tcheka é dividido em cinco partes, a saber: Kantu kriol (10 poemas), Poemas (13
poemas), Sonho Caravela (9 poemas), Poesia Brava (31 poemas) e Canto Menino (8
poemas). Todos os poemas desse livro evocam um sentimento de dor, nos quais o
eu lírico apresenta o seu desgosto com o rumo que o país tomou – distantes dos
sonhos dos filhos, e apresenta um rosto estranho a eles.
Mas o poeta não está longe;
ele testemunha o sofrimento das crianças que, nas palavras de Amílcar Cabral
“são flores da luta”. O poeta, também, não deixou de passar à vista a fome que
não perdoa os homens. A realidade da vida não permitiu que o poeta calasse: a
dor da perda dos entes queridos faz parte das suas Noites de Insônia na terra adormecida. São dignas de realce a
temática da fome, da morte, da exaltação à terra natal e por que não do amor?
Enfim, Noites de Insônia na terra
adormecida é o descontentamento por causa dos rumos incertos de um país
recém-independente. Com a palavra o próprio Tony Tcheka:
Este livro
resulta de uma enorme desilusão ao ver uma terra cada vez mais destroçada e
tudo por construir. Mesmo o elementar como a saúde e a escola. O que se ensaiou
nos primeiros anos dos seis anos de independência foi-se esvaindo em nada. O
livro é a dor pelos projectos esquecidos, as traições ao pensamento de Amílcar
Cabral, Domingos Ramos, Titina Silá, Canha Na Tun-guê, Pansau Na Isna, toda uma
geração que se privou de tudo para lutar contra a injustiça social e considerou
pedra basilar do combate, a nossa identidade, a nossa cultura como ademais
definiu o líder do movimento de Libertação nacional, Cabral:“a luta pela
emancipação e independência é um acto de cultura”. Sucederam-se assaltos ao
poder, golpes de estado, assassinatos, prisões, corrupção, nepotismo, compadrio
e o desprezo pelo conhecimento e o saber deu-se início a um longo período de
saque, desgoverno, que dura até aos dias de hoje, agravado pela incompetência.[40].
Odete Costa Semedo, com o
seu livro Entre o Ser e Amar (1996),
figura como a terceira poetisa a ser publicada nessa colheita literária. Com
essa publicação, a autora tornou-se a primeira mulher a publicar um livro de
poesia individual no país. Semedo preocupou-se com o uso da língua nessa obra,
tendo optado em escrever em duas línguas para deixar seu recado de geração em
geração: a língua crioula e a portuguesa. Sendo assim, ela é a pioneira nesse
estilo bilíngue no país. A poetisa oferece-nos seus versos em duas línguas, na
maneira leve e suave de fazer poético para emocionar e encantar. Não escondeu
as estórias e cantigas do seu chão, nem os “feitos dos homens e das mulheres”;
apenas preocupou-se com os sinais a deixar aos netos destes séculos. Mas o eu-lírico
não poupou a sua voz: cantou e contou as estórias: jogando para fora o que alma
repudia. Como a própria Odete assegura na nota do livro em tese: “Por assim
ser, e considerando-me pertencente às duas culturas, senti-me encorajada a
publicar alguns dos meus escritos em edição bilingue: português e kriol, de modo a proporcionar aos
leitores um espaço de lazer, reflexão, crítica e encontro consigo mesmo
(SEMEDO, 1996, p.7).
A ideia da coleção Kebur surgiu na proposta de divulgar
textos inéditos dos escritores que não tinham acesso a uma publicação e
combater “o espaço vazio”, tão comentado por muitos historiadores literários,
como Manuel Ferreira. Moema Augel, no prefácio da obra em tese, procurou
esclarecer o momento vivido: “Os autores existem, a produção literária existe,
é forte e bela, e é urgente que ela se torne conhecida e divulgada, tanto no
país como no exterior” (AUGEL, 1996, p.9). No total de treze poetas, só se
registrou a presença de duas vozes femininas: Odete Costa Semedo e Dulce Neves
(também cantora), ambas com seis poemas de temas variados – que tratam de
problemas dos sofrimentos quotidianos dos guineenses, além do eterno tema do
amor. Observemos o primeiro poema que abre as páginas de Odete Semedo, na
coletânea referida, intitulado: I sin,
ou “É assim”:
N fasi sufrimentu iagu Fiz do meu sofrimento água
Pa i matan e sede ku na giban
Para matar a sede que me esmorece
N fasi kasabi panu di
kubri Cobri com angústia a
minha nudez
Pa i tapan borgoña
Para disfarçar a
vergonha
D ´e ña kurpu kutuladu
Do meu corpo
apunhalado
N dianta ku kansera
Ombreio com o sofrimento
Ka i bin caman ngratu Que não venham a chamar-me de
ingrato
N darma iagu di ña uju Derramei lágrimas dos meus olhos
N sindji panu
Amarrei forte o meu
pano
N rema na kontra mare Remei contra a maré
Ma i kapa nada
Mas não foi por nada
I son pa n sibi
Só queria saber
N´de kuno na bin ba ciga Onde iremos aportar
(AUGEL, 1996,
p.131; tradução minha e correção de Tony
Tcheka).
Os versos acima demonstram a grande maturidade da poetisa com a
situação sociopolítica do seu chão. A maturidade ora revelada pode ser sentida
e interpretada pelas péssimas condições econômicas do país. Os versos, em um
crioulo fundo, transbordam a alma da própria poetisa e do seu povo “cobri com a angústia a minha nudez/ para disfarçar a vergonha”. Que amarra forte
o pano/remando contra a maré”. Estes, entre outros versos, revelam profundamente
a situação social atravessada no país há décadas. O eu lírico narra as
realidades sociais do seu tempo e não se deixa prender nas palavras, não quer
adiar as palavras de dor. Libertar é beber a água desse sofrimento: “Fiz do meu sofrimento a água /para matar a
sede que me esmorece”. Ainda que esses versos apresentem características
intimistas, me parece que a dor é coletiva. Pois todos nós queremos saber: “Onde iremos aportar” (SEMEDO, 1996,
p.31).
A quarta colheita dessa Série literária é o poeta Felix Sigá,
autor já falecido – com o seu livro intitulado Arqueólogo da Calçada (1996). Diferentemente de Odete, que quer
cantar os feitos dos homens e das mulheres do seu chão em duas línguas, Sígá,
poeta das palavras sob medidas do tempo, cantou esses feitos em uma língua só.
Porém, parece cantar em duas simultaneamente. Peter Mendy, na apresentação do
livro de Jorge Cabral, afirmou que: “Felix Sigá com o seu Arqueólogo da Calçada, onde muitos dos seus versos em português
estão molhados na seiva crioula, com interessantes e criativas interferências
que denotam, sem nenhuma dúvida, a origem lírica do poeta” (CABRAL, 1996,
p.10). Este estilo é amplamente explorado no “Pasa ku mon”, do livro acima
referido, que transcrevemos a seguir:
Mulheres só rir rir só
Com homens de gente
Tardan na rua e no beco
Seus homens – tolos
Falam que foram kulkar
Porque jantam sian disso
Seiz-hora sett-hora
Só no beco
Até na fuska-fuska
Mbé! Não é limpo
Inda sem panos no vestido
Nem de baixo nem de cima
Eh! Uh! – kuma casados
também
Nkata
pud idé
Nkata
roki-rokidé
Saem de manhã sem comer
Dão água-pú aos meninos
Com tem-de-pressa acaloram
Levam
man kara kuskus ku kanfurbat
E rapazes de Ray-ban escuros
Torram-se até viraram carvão
Dentro de rangler e
campestre
Desde que mundo é mundo
Levantamos e vimos
Mulheres só debaixo de
homens agora badjudas fumarem e gritarem
Isso passa com mão!
Dizem que eu tenho poeira na
cabeça
Cozinhar é trabalho de
mulher
Lavar e vestir meninos tudo
também
Homem é na oficina ou no
lugar
Mulher própria só vale na
porta do casamento (SIGA, 1996, p. 95-96).
O poeta escolhido para a
quinta colheita do Kebur é Pascoal
D´Artagnan Aurigemma, com seu livro Djarama.
O poeta nasceu em Farim, uma das cidades da província norte do país; é filho de
imigrante italiano e de mãe pertencente à etnia mansonca. D´Artagnan
Aurigemma, autor já falecido, apesar de ser conhecido como grande falante da
língua crioula, só escreveu em língua portuguesa. Djarama, uma palavra da língua fula que significa “obrigado” em
língua portuguesa, foi uma forma simples que o poeta escolheu de agradecer aos
combatentes pelos anos de luta contra o colonialismo português.
Como apontou Alda Neves no
prefácio do livro, “Está lá tudo na poesia de Pascoal D´Artagnan Aurigemma: a
liberdade, a compreensão, a fraternidade, a solidariedade, a consciência
política, a Universidade”. (DJARAMA, 1996, p.23). Tudo está na poesia e nos
cantos do poeta. Muitas vezes, ele parece contente; outras, triste. É pena não
ter visto suas obras editadas. Nasceu em 15 de março de 1938, e faleceu em 7 de
dezembro de 1991. Tem poemas publicados nos jornais do país e um livro
publicado em Brasília, por Hildo Honório Couto – com o título Amor e Esperança (1994), da editora Thesauros. Seus poemas também foram publicados
nas antologias poéticas guineenses, entre elas: Antologia poética da Guiné-Bissau (1990) e Eco do Pranto.
Ora di kanta tchiga, é um título em
crioulo guineense, que significa a hora de cantar chegou. Essa obra traz quase
todos os textos musicais de José Carlos Schwarz e o seu grupo Cobiana Djazz, com traduções dos
sentidos de cada verso em língua portuguesa em notas de roda pé. Valeu à pena o
reconhecimento da voz pioneira da música moderna guineense. O poeta se foi, mas
deixou-nos sua obra para cantarmos consciência da sua ideologia de luta. A hora
era de cantar a dor e a esperança nos dias melhores. A metáfora desse título é rica pela sua dimensão cultural no
contexto guineense. Ora di kanta tchiga
é mais do que um simples canto de cantar. Era a hora de revolução. Era a hora
de se manifestar contra quaisquer males e angústias que o colonialismo trouxe
para o chão guineense. Hoje, Ora di kanta
Tchiga talvez ajude a combater o desencanto da pós-independência. Essa
publicação foi a sexta da Série literária
Kebur, sendo da autoria da pesquisadora Moema Parente Augel.
Jorge Cabral é natural de
Canchungo, situado na região norte da Guiné-Bissau. Em vida, foi um grande
intelectual e diplomata. Passou maior parte do seu tempo em viagens e estudos,
tendo ampliado a sua formação acadêmica em países lusófonos e francófonos.
Essas aventuras permitiram ao poeta escrever em português e francês. O poeta
morreu no dia de 17 de setembro de 1994, vítima de um acidente aéreo em missão
de serviço da organização das Nações Unidas (ONU).
Marinheiros da solidão, de Rui Jorge
Dias Cabral, ou simplesmente Jorge Cabral, constituiu a penúltima publicação da
Série literária Kebur. Um livro que
conta com versos tanto na língua portuguesa quanto na língua francesa. A obra
possui um total de trinta e seis poemas divididos em quatro partes; entre eles:
poemas épicos, com três poemas: Um sonho – Uma realidade, (um poema em onze
páginas, nos quais o poeta procurou homenagear Amílcar Cabral por ocasião de
XX° aniversário do assassinato deste). Na mesma secção, também, se encontram os
poemas: demain e anonymes, ambos escritos em francês.
A segunda e a terceira
parte intitularam-se: descobertas e confissões. Ambas registram um total de
vinte e cinco poemas escritos em língua francesa. A segunda parte, descoberta, registra quatorze poemas e a
terceira parte, confissões, conta com
onze poemas. Já a última parte, Marinheiros
da solidão, refere-se ao título dado à obra. Essa parte conta com oito
poemas em português. Jorge Cabral, além de ter sido incluído nesse projeto da
INEP, autor, em vida, já havia participado nas duas antologias poéticas guineenses:
antologia poética da Guiné-Bissau (1990)
e Eco do pranto (1992). Além de ter
mais produções literárias em língua portuguesa e francesa, Rui Jorge Cabral tem
algumas produções em língua crioula. Porém, nenhum deles consta nessa obra
(CABRAL, 1998, p. 11-12).
Segundo Peter Mendy, então
diretor do INEP, a instituição tinha planos de publicar dez títulos à coleção kebur, com sentido de dar mais
visibilidade às produções literárias guineenses. Como ele mesmo afirma na
apresentação do livro Marinheiros da
solidão, de Jorge Cabral: “os poemas contidos nos livros da Série Literária
procuram estabelecer uma identidade guineense exprimindo, tanto em kriol como
em português ou francês, com clareza e prudente economia de palavras, a vida,
os sentimentos, as cores e os ritmos do país” (CABRAL, 1998, p.11). Moema Augel
acrescentou, no mesmo espírito, que: “Se é verdade que na Guiné-Bissau havia
até pouco tempo uma grande escassez de publicações no âmbito literário,
limitando-se a algumas coletâneas poéticas e alguns livros individuais, é
também verdade, embora pouco conhecida, que trabalhos inéditos de excelente
qualidade aguardavam há anos uma publicação” ( AUGEL, 1998, p.11).
Os livros Ora di Kanta Tchiga e A Nova Literatura da Guiné-Bissau são
ambos de autoria da Moema Parente Augel, investigadora, na época, no INEP e
pesquisadora da literatura guineense. Essas duas obras do mesmo projeto completaram
os números das edições planejadas. A Nova
Literatura da Guiné-Bissau publicada em 1998, a meu ver, é a semente que
deu fruto a muitas pesquisas no campo da literatura guineense. Uma obra que faz
um balanço geral da literatura guineense até aquela data, trazendo reflexões
profundas sobre a história, a política, a sociedade, a cultura e das
literaturas produzidas por autores guineenses antes e após a independência do
país. A nova Literatura da Guiné-Bissau,
a meu ver, hoje em dia, é uma referência obrigatória para interessados em
debruçar-se sobre a literatura guineense.
Longos anos se passaram
desde 1996, quando foi publicada Kebur:
Barkafon di Poesia na Kriol, até aparecer uma nova publicação antológica.
Em 2010, numa iniciativa juvenil, foi publicada, em Lisboa, Traços no tempo: Antologia Poética Juvenil
da Guiné-Bissau. Como ressaltou Odete Costa Semedo:
Em 2010, Traços
no tempo: antologia poética juvenil da Guiné-Bissau, foi uma novidade trazida
pela diáspora guineense (Lima, 2010). É uma antologia que contou com a
participação de vinte e três poetas, entre as quais se conta se contam três
nomes femininos: Filomena Gomes Correia, Gina Có e Irina Gomes Ramos. Ali,
retomaram-se as temáticas do poeta sofrido com a dor do país que não alcança o
desenvolvimento almejado, temática que esses autores intercalam com as do
sentimento de expatriado num tom mais intimista, mas numa lírica ainda tênue.
Isso significa que os temas abordados continuam sendo os atalhos da nossa
história. E muito me parece que os problemas sociopolíticos continuam a
direcionar os escritores guineenses (SEMEDO, 2011, p.30).
Nota-se pouca participação
de vozes femininas no florescer da poesia guineense, após a independência do
país. Entre as vozes femininas citadas, como observamos nas diversas
publicações antológicas desde 1973, com a publicação de Poilão até 2010, com a publicação de Traços no tempo: Antologia Poética Juvenil da Guiné-Bissau nota-se
presença de poucas mulheres. Mariana Marques Ribeiro foi das poucas que
participou em mais de uma antologia poética nesses períodos.
A presença de poucas
mulheres no espaço literário guineense me parece ser associada à crise na
política educativa do país. Assim, elas
são mais orientadas para serem donas de casa, cuidar do marido e dos filhos do
que enveredar nos caminhos das ‘letras’. Na Guiné-Bissau, depois da
independência, eram pouquíssimas as mulheres que frequentavam a escola. E, sem
dúvida, com esse cenário, o resultado é uma minoria delas no espaço literário
guineense.
Não podemos esquecer-nos de citar as duas grandes obras poéticas
publicadas nos inícios dos anos 80: A
luta é minha Primavera (1981), de Vasco Cabral e Não posso adiar a palavra (1982), de Hélder Magno Proença. As duas
obras nas palavras de Peter Peter Mendy são as primeiras obras líricas do país,
após a independência (CABRAL, 1998, p. 10).
De 2001 até 2013, surgiram novas publicações individuais no gênero
de poesia, entre elas: Stera di Tchur
(2001) de Rui Semedo; Falso Plaquê
(2001), de Atchô Express; Olhar da
Mulher (2001) de Manuel da Costa em coautoria com o angolano Mário Ernesto, A
Esperança é Última a Morrer (2002), de Emílio Lima, Sol Na mansi ( sol há
de amanher), ( 2002), de Nelsom Medina, cujo prefácio de autoria de Tony
Tcheka, também, escrito em crioulo; Palavras
da Alma (2005), de Inácio Gomes Semedo, Testemunhos de Ontem (2003) e Mundo Kebur (2006), de Silvano Gomes, Chuva de Lágrimas (2004), de Tino João
Mirolho.
Seguem-se No fundo de Canto (2003),
de Odete Costa Semedo; Coração Cativo
(2005), de Filomena Embalo, Pensar de um
Sonho (2005), de Onésimo Figueiredo, Retrato
( 2007); de Rui Jorge Semedo, Estados de
alma (2007); de Tomás Soares Paquete, Guiné
Sabura que Dói ( 2008), de Tony Tcheka, Bendita
Loucura (2008), de Saliatú da Costa, No Canto Lúgubre da Verdade
(2009), de Édison Ferreira. As publicações seguiram com novas vozes poéticas. É
o que demonstra Rui Jorge Semedo, no seu artigo sobre uma radiografia do
processo literário guineense:
Se a
terceira e quarta décadas foram produtivas, a quinta aponta e desponta para um
ambiente deveras promissor e foi solenemente aberta pelas obras poéticas
Palavras Suspensas (2010), de Conduto de Pina, No Compasso do Primeiro Passo
(2010), de André Mendes, Entre a Roseira e a Pólvora, o Capin (2011), de
Saliatú da Costa, Em Busca do Espaço Verde (2011), de Eliseu José Pereira, O
Vento ainda Sopra (2012), de Eliseu José Pereira, Insana Rebeldia (2012) de
Edson Pereira Incopté e os contos IMF No Palácio do Governador (2011), de
Hildovil Silva &Iramã Sadjo que são até à data e do ponto de vista da
idade, os mais jovens escritores guineenses, Adormecer de um Sonho (2010) de
Carlos Edmilson Vieira, L`ultimecombatpour um amouranonyme (2012) de Lourenço
da Silva, Anjo do Mal 2012), de Plínio Gomes dos Reis Borges.( SEMEDO, 2012, p.
81).
De tudo que vimos até aqui sobre a poesia guineense e seus autores,
percebemos que, apesar de uma demora na divulgação das obras poéticas no país,
há uma forte ligação dos seus autores com sentimentos da pátria. As palavras de
Pires Laranjeira reforçam essa ideia: “A confrontação com o regime opressor
fará com que essa literatura se apresente tantas vezes “atravessada no seu
discurso pelo texto social e pelo texto político” (LARANJEIRAS, Pires, 1985, p.
125, apud AUGEL, 1998, p. 114).
As questões socioculturais, hoje em dia, continuam sendo a fonte de
inspirações de muitos poetas guineeses, tanto dos que assistiram à proclamação
da independência quanto os da geração do pós-independência. Peter Mendy afirma
o seguinte: “A literatura é uma componente da cultura que, capturando as
percepções e experiências quotidinas colectivas, pode ajudar a produzir um
sentimento forte de identidade nacional. A poesia é uma forma literária eficaz
para mobilizar as emoção e energias, para inspirar e motivar” ( CABRAL,1998, p.
9).
Os temas de luta armada e questões sociais do pós-independência são
de grande destaque nas produções literárias guineenses. Porém, ultimamente, os
temas mais debatidos, principalmente por vias da poesia, são as temáticas que
questionam a vida social e política do país. Antes da independência, o país se confrontou
com longos anos de exploração humana em diferentes aspectos. Após a
independência até os dias atuais, os bissau-guineenses não conseguiram esquecer
a dor do passado nem acreditar na esperança dos dias de amanhã. Esses fatos
influenciaram bastante os autores guineenses nas suas produções literárias que,
a meu ver, sem nenhuma dúvida, traduzem um sentimento de amor ao país, a
despeito das frustrações com o quadro social. Vemos, portanto, que os poetas
guineenses assumem a missão de ouvir as vozes dos oprimidos e lutar por eles.
CAPÍTULO III
DA LIBERDADE DA PÁTRIA AO
DESENCANTO DA PÓS-INDEPENDÊNCIA
3.
Amílcar Cabral e a breve
história do PAIGC
O melhor modo de homenagear Cabral é
relacionar suas preocupações, questionamentos intelectuais e exemplo inspirador
às realidades atuais (LOPES, 2012, p.11).
Tem sempre um sorriso cordial, um cumprimento
afectuoso, a simplicidade de quem está habituado às grandes acções. Amílcar
Cabral tem a qualidade de compreender intimamente os que o rodeiam, pois
conhece-os a todos e trata-os pelo seu nome próprio. Cativa pela sua
sensibilidade e pela ampla e profunda cultura que possui (ORAMAS, 2014, p.167).
Os jovens guineenses conhecem muito pouco do legado de Amílcar
Cabral, sobretudo, em função da falta de estímulo à educação e à leitura. Esse
desconheimento e desinteresse têm sido nefastos, especialmente nas últimas
décadas, quando a maioria da população guineense vem mergulhando no desalento e
na desesperança. O exemplo de Cabral merece permanecer vivo na memória
coletiva. Afinal, como afirma Carlos Lopes:
Desde cedo Amílcar percebeu que a luta que valia a
pena era por valores. Suas denúncias da situação colonial debruçavam- se sobre
a imoralidade com que eram tratados os povos das colônias, sobre a injustiça no
mundo e sobre a necessidade de afirmação das identidades culturais (LOPES,
2012, p. 189).
Seja qual for o caminho que trilharmos para falar da Guiné-Bissau,
não poderemos deixar de lado a história de Amílcar Cabral, tanto na política, quanto
na cultura e na literatura do país. É fundamental, pois, que os guineenses
conheçam um pouco de sua história, pois ela representa uma grande inspiração
para qualquer geração que busque compreender o contexto do colonialismo e da
luta armada pela liberdade de dois países africanos, Guiné-Bissau e Cabo Verde.
Amílcar Lopes Cabral nasceu em 12 de setembro de 1924, na cidade de
Bafatá, região leste da Guiné-Bissau, filho de Juvenal António Lopes da Costa
Cabral, conhecido como professor desde o ano de 1911, data em que pisou pela
primeira vez a Guiné-Bissau. A mãe se chamava Iva Pinhel Évora, era dona de
pequenos negócios e, aos 29 anos de idade, emigrou para a Guiné-Bissau. Isso
aconteceu, em agosto de 1922, devido à seca que tomava conta de Cabo Verde. Iva
Pinhel Évora tinha viajado com o seu então marido, João Carvalho Silva, e o seu
primeiro filho, Ivo Carvalho Silva que, na época, tinha nove meses de vida. A
relação do casal não durou muito tempo. Tudo indica que, nesse mesmo ano, Iva conheceu
Juvenal Cabral, que já havia estado na Guiné-Bissau.[41]
A relação dos pais de Amílcar Cabral também não durou por muito
tempo. Em 1929, depois de cinco anos do nascimento de Amílcar Cabral, o casal
já havia se separado. Algumas fontes contam que Juvenal Cabral voltou para o
arquipélago de Cabo Verde, em 1932, junto com os três filhos que teve com Iva
Pinhel: Amílcar Cabral e suas irmãs gêmeas, Armanda e Arminda.[42]
Mais tarde, toda a responsabilidade do cuidado dos filhos era assegurada a Iva
Pinhel.
Há fontes que relatam que Juvenal Cabral, pai de Amílcar Cabral,
havia abandonado Iva com seus três filhos. Como se observa na própria fala de
Iva: “cansei-me demais na máquina, na tina e no ferro; a trabalhar dia e noite
porque não tinha auxílio do pai”.[43]
O próprio Cabral lembra esse momento de seca em Cabo Verde: “quando eu estava
no liceu, a minha mãe […] empregou-se na fábrica de conserva de peixe, porque a
costura não dava nada. E sabem quanto é que ela ganhava por hora? Cinco tostões
por hora, e, se houvesse muito peixe, podia trabalhar 8 horas por dia, ganhando
4 pesos (escudos). Mas se o peixe fosse pouco, (era preciso andar muito para
chegar à fábrica) trabalhava uma hora e ganhava cinco tostões”.[44]
Nos anos 1944 e 1945, Amílcar Cabral conseguiu o seu primeiro
emprego como ajudante de tipógrafo, na Imprensa de Cabo Verde, na ilha de São
Vicente. Em 1952, voltou a Guiné-Bissau.
Contudo, mal chegou, já se confrontava com a violência dos colonialistas. Essa
violência era o que mais o irritava e impulsionava a reivindicar direitos e
lutar pela liberdade dos que sofriam a opressão.
Em 1941, a seca tomou conta de quase todas as ilhas de Cabo Verde.
Essa seca empobreceu as terras cabo-verdianas, resultando no desaparecimento de
vegetação e causando a morte de muitas pessoas. Diante da realidade das secas
em Cabo Verde, Amílcar Cabral, que mostrava aptidão para a literatura e a
sociologia, optou pela engenharia agrônoma, com intuito de mudar a situação do
arquipélago, que não despertava nenhuma responsabilidade por parte das
autoridades portuguesas (ORAMAS, 2014, p.32). Ainda na adolescência, o menino,
que se tornaria o grande líder guineense, mostrava a sua preocupação em mudar
os rumos da história da sua terra, através da sua formação profissional.
Depois de ter
percebido o esgotamento[45] das
possibilidades de debate na Casa de Estudantes de Império, ele mesmo organizou
e criou um centro de estudos africanos, onde se discutiam vários temas em prol
do entendimento do homem negro na diáspora enquanto ser social. Além disso,
Cabral dirigia um programa cultural para a emissora Rádio de Cabo Verde,
palestrando e transmitindo, assim, seus conhecimentos sobre as origens do
empobrecimento da terra e levantando questões ligadas ao passado de escravidão
dos africanos. Infelizmente, esse programa foi interrompido pelas autoridades
portuguesas, que entenderam a iniciativa como contrária aos seus interesses.
Pouco a pouco, como aponta Oramas, Cabral “vai sendo conhecido pelos seus
escritos, pela sua poesia, pelas suas leituras, pelas coisas que aprecia”
(ORAMAS, 2014, p.38).
Uma vez que a
nossa geração não conhece minimamente a história do nosso país, entrelaçada à
história do próprio Amílcar Cabral, cumpre aqui também evidenciarmos
os muitos aspectos de sua figura emblemática e as contribuições dadas no
processo de evolução política do continente africano. Nesse sentido, vale
lembrar que a figura de Amílcar Cabral como um líder intelectual contínua a
apresentar grande complexidade e constitui-se de várias faces, desde o seu
nascimento até a sua morte em Conacry. Como nos lembra Kwame Anthony Appiah, “a
situação do intelectual africano é tão complexa e multifacetada quanto pode um
ser humano enfrentar em nossa época” (APPIAH, 1997, p.15). Embora a trajetória
de Cabral tenha dado margem a muitas desconfianças em relação aos privilégios
dados aos cabo-verdianos, enquanto presidente do partido, sabemos que ele usou
a sua inteligência para estabelecer pontes para dignificar o modo de viver
tanto dos guineenses quanto dos cabo-verdianos.
Amílcar Cabral tinha muitos motivos para não se preocupar com o
sistema colonialista implantado na então Guiné Portuguesa. Em primeiro lugar, ele
possuía uma formação superior, que o colocava na posição dos assimilados. Além
de gozar de grandes privilégios, Cabral vivia em Lisboa, distante da opressão
colonial e reconhecido como intelectual no seio dos colonizadores. No entanto, em
1952, quando decidiu voltar à Guiné, não ambicionava ter uma posição boa no
serviço colonial nem ser visto como assimilado. Cabral voltou à África como
agrônomo, disputou um cargo e o conquistou; mas o sentimento maior que o
possuía era o desejo de ver homens livres da escravidão e da tortura. Cabral
não enxergava somente um lado de uma moeda. Sentia que todos os homens mereciam
ser livres e entendia, na época, que a sua contribuição maior seria lutar para
o fim do colonialismo, mesmo que a sua vida estivesse em perigo.
A intelectualidade de Amílcar como líder partidário inspirou outros
grandes líderes no mundo. Contudo, infelizmente, Cabral não deixou herdeiros
ideológicos no PAIGC. O partido que comandou, antes e durante a luta armada,
carece até hoje de uma liderança – que envolva o espírito de unidade e luta –
como ele pregava no ‘mato’. Quase todos os presidentes do PAIGC, desde a morte
de Cabral até os nossos dias, tiveram grandes problemas de liderança.
Hoje, essa escassez de lideranças resultou na divisão em duas alas
no partido (os quinzes deputados que saíram do PAIGC e fundaram o MADEM-G15 –
liderado por Braima Camará). Esse novo partido foi criado por um grupo de
dissidentes do PAIGC e tornou-se o segundo partido com maior número de
deputados no parlamento guineense nas eleições legislativas de 10 de março de
2019. O que se pode ver, hoje em dia, é a divisão e discursos de ódio no seio
do partido.
Regressando ao
passado histórico do país, precisamos reconhecer que o equilíbrio e a intelectualidade
de Amílcar Cabral no exercício de liderança do PAIGC – por mais que os
conflitos étnicos e raciais no partido se estendessem – contribuíam, muitas
vezes, para a resolução de soluções mediante as discórdias, embora a
reconciliação parecesse distante.
Muitos sociólogos, tanto africanos como europeus, têm trabalhos que
debatem a sua visão revolucionária. Nós, guineenses, assassinamos Cabral, e
continuamos a assassiná-lo quando o ignoramos e deixamos de compartilhar as
suas ideias acerca do nosso mundo. A história política de Cabral estará sempre
ligada à história do nosso povo, apesar de Cabral ter saído da Guiné-Bissau
ainda criança, voltando somente depois dos dezenove anos (MENDY, 2012. p.22).
Como muitos dos seus colegas revolucionários da CEI, em Lisboa,
Cabral concluiu que a luta armada dava sentido à vida dos africanos. Nesse
aspecto, suas ideias alinham-se às de outras grandes figuras da África que
lutaram contra a presença colonial no continente africano, como Nelson Mandela,
Agostinho Neto e Patrice Lumumba, entre outros. De fato, todos eles, apesar de
terem histórias de lutas diferentes, lutavam pelo fim da exclusão racial e de classe.
Resta-nos entender que, apesar de esquecido pelas novas gerações, o pensamento de
Cabral foi fundamental para a construção da identidade do povo guineense e de
Cabo Verde.
A defesa de Amílcar
Cabral na luta armada girava em torno das hostilidades constantes praticadas
pelos colonizadores europeus. Cabral pautava seu discurso na recuperação da
terra e era completamente contra o espírito de desumanização do colonialismo.
Como se observa em suas palavras: "De nada serve libertar uma região, se
as pessoas dessa região são deixadas sem as necessidades básicas da vida"
(CABRAL, p.152, apud NZONGOLA, 2012,
p.110).
Após a
independência do país, os guineenses criaram muitas expectativas em relação a
uma vida mais digna. Proclamaram a independência na esperança de um novo estado
que iria proporcionar novas oportunidades e direitos igualitários para todos. Infelizmente:
Essas esperanças foram desfeitas pelo Estado e pelos
governantes pós-coloniais. Infelizmente, os líderes do movimento nacionalista
tinham expressado um compromisso com a democracia, o desenvolvimento econômico
e a solidariedade pan-africanista. Quando começaram a lidar com as realidades
práticas da governança, tornaram-se mais interessados em defender os seus interesses egoístas de
classe, cuja satisfação exigia recurso aos métodos autoritários do poder, a
corrupção e o enriquecimento em grande
escala, bem como a promoção do nacionalismo territorial em vez do pan-africanismo
e, ainda, do tribalismo em vez da unidade nacional (NZONGOLA-NTALAJA, 2012,
p.114).
Já se aproxima quase meio século da sua morte. Cabral foi
assassinado a tiros pelos próprios companheiros de luta, na noite de 20 de
janeiro de 1973, aos 48 anos. Nessa noite, ele foi surpreendido por um grupo de
homens armados. Mas, quem disparou o tiro, apagando toda a história e ambição
de vida de Amílcar Cabral, foi Inocêncio Kani, um dos grandes nomes do PAIGC na
época colonial. Amílcar Cabral, com a sua morte, deixou para trás o sonho de
unir dois países, um sonho de ver a independência dos homens acorrentados e
torturados por cipais[46].
Sua morte continua a ser um mistério. Até hoje não foi revelado o nome do
mandante. José Pedro Castanheira, jornalista, de origem cabo-verdiana, insiste
em se debruçar sobre assunto no livro: Quem
matou Amílcar Cabral? De fato, quem matou Cabral matou todos os projetos
que, com muita coragem, ele havia começado. Quem matou Cabral é cúmplice de
todos os problemas e crises políticas e econômicas, das quais o país ainda não
conseguiu se libertar.
Amílcar Cabral não foi somente um grande líder, foi um grande
intectual, um homem de cultura com uma visão política extraordinária que
expandiu a sua personalidade e se tornou uma figura mundial, que orgulhou muito
os povos de Guiné-Bissau e de Cabo Verde. O secretário-geral do PAIGC, como era
chamado durante a luta armada, tinha um discurso político muito avançado, que
provava um amadurecimento inquestionável e ciente da sua convicção
revolucionária. Assim pronuncia-se Oscar
Oramas ao seu respeito:
Amílcar Cabral tem o valor do exemplo e a sua vida e
obra reclamam, não só serem reconhecidas, mas também estudadas como referência
de quem contribuiu de maneira decisiva para a libertação dos povos sob
dominação colonial no Continente africano, particularmente os subjugados por
Portugal, procurando que os filhos desses países tivessem lugar reconhecido na
civilização universal (ORAMAS, 2014, p.26).
“As crianças são flores da nossa luta e a razão do nosso combate”, essa
é uma das frases mais conhecidas de Amílcar Cabral. De fato, ele não só se
preocupava com a questão política, mas voltava-se intensamente para o social. Logo
nos primeiros anos da luta armada, criou uma escola em Conacry e um internato,
na região de Cubucaré, para formação dos filhos de guerrilheiros, a fim de
educá-los a terem consciência da realidade colonial (ORAMAS, 2014, p. 87).
Cabral era seguro nas suas convicções revolucionárias. Seus
discursos demonstravam a certeza de que lutava para a liberdade total da
África. Era um homem generoso, amável, culto, grande apreciador de livros e,
acima de tudo, uma pessoa que não se deixou calar. Em vida, escreveu poesias,
contos, textos políticos, artigos sobre literatura, agronomia e sociologia.
(ORAMAS, 2014, p. 171). Ao longo de sua vida, demonstrou, vezes sem conta, a
necessidade de partilhar o conhecimento. E entendeu, claramente, que o
conhecimento é algo fundamental e básico para o homem. É o que podemos observar
na sua própria fala:
Obrigar cada responsável a melhorar cada dia os seus
conhecimentos, a sua cultura e a sua formação política. Persuadir cada um
deles, que nenhum pode saber sem aprender e que o mais ignorante é aquele que
sabe sem nunca ter aprendido. Aprender na vida, aprender acerca do nosso povo,
nos livros e através da experiência de outros, aprender sempre (ORAMAS, 2014,
p. 175).
A insatisfação é uma das palavras que retrata alguns períodos da
história do PAIGC, pois, ao longo da sua fundação, o partido não só deparou-se
com os inúmeros problemas da Guiné-Bissau – com uma população que não
ultrapassa dois milhões de habitantes, um dos países mais pobres do mundo, com
altíssima taxa de analfabetismo – como também precisou enfrentar os próprios
conflitos dentro do partido, como a divisão de classe e raça, e a morte do
próprio Amílcar Cabral, além de sucessivas divergências políticas que
resultaram em golpes de Estados no país.
A Guiné-Bissau resistiu duramente a colonização, desde 1446, data
que marca a presença dos europeus no território guineense. Mas sabemos que a
colonização, de fato, se inicia a partir do final do século XIX, especialmente,
a partir de 1915, quando os portugueses começam a alargar as suas conquistas
para todas as regiões cobiçadas do país. Amílcar Cabral, herói da pátria
guineense, nasceria nove anos depois dessa conquista integral do território
guineense pelos portugueses. Em 1918, já se havia instalado em Bolama (capital
na época) uma secretaria de negócios indígenas, com finalidade de aumentar a
produção e a mão de obra barata. Segundo Peter Mendy, os europeus viam nos
africanos uma força física extraordinária e invejável. E era dessa resistência –
que os africanos possuíam de sobra – que os europeus sentiam falta (MENDY,
2012, p.18).
Vale a pena voltar ao passado colonial da Guiné-Bissau para
compreender a sua história e procurar conhecer os caminhos que levaram à
criação do PAIGC, fundado no dia 19 de setembro de 1956 por Amílcar Cabral e
mais cinco dos seus companheiros de luta. Em 1925, a Guiné Portuguesa era considerada
uma colônia "vazia", por diversas razões políticas e sociais
apontadas pelos portugueses, entre as quais uma infraestrutura urbana péssima,
ausência de serviços básicos nas áreas de saúde, educação ou demais aspectos
sociais. Essas eram apenas algumas das razões que levaram algumas das
autoridades coloniais se concentrarem em Cabo Verde, considerado, na época,
colônia de destaque entre as demais colônias do Império. (MENDY, 2012, p. 20). Desse
modo, os cabo-verdianos, na então Guiné Portuguesa, ocupavam postos chaves de
administração. Como nos esclarece Peter Mendy:
Em 1925, os cabo-verdianos já constituíam 27% dos administradores (o
equivalente dos chefes de circo conscription
da França colonial e, grosso modo, correspondente aos comissários distritais
coloniais responsáveis pela introdução das políticas coloniais de Portugal
(MENDY, 2012, p.20)
Continua Peter
MENDY a esclarecer o colonialismo na Guiné:
Em contato muito estreito com os colonizados, esses
funcionários coloniais exerciam poderes enormes, contra os quais os "
indígenas " não tinham recursos. Em suas áreas de jurisdição, sobretudo no
interior, onde vivia a imensa maioria dos colonizados, eram responsáveis, inter alia, pela manutenção da
"ordem e tranquilidade públicas" , pela coleta dos odiados impostos
coloniais, pelo recrutamento forçado de trabalho gratuito para construção e
manutenção de estradas , pontes e hospitais para garantir a submissão e o
respeito absoluto, os "indígenas" rebeldes eram punidos sumariamente
, sendo a palmatória a "vara corretiva" de preferência. À disposição
deles estava uma força cruel paramilitar conhecida como cipais, que prendiam e administravam as punições, e aterrorizavam a
população rural em geral (MENDY, 2012, p. 20).
O espírito de violência demonstrado nas atitudes selvagens dos cipais era uma das grandes preocupações
de Cabral. Ao combater o fascismo, ele esperava pôr fim a esse regime brutal, que
estabeleceu divisão de classe e de raça num espaço que Amílcar pretendia
unificar. Com os cabo-verdianos nas posições mais altas do serviço colonial,
estimulou-se o espírito de ódio e de indignação dos guineenses nativos, o que
mais tarde teria consequências desastrosas no país (AUGEL, 2007).
A Polícia Internacional para Defesa de Estado e os cipais castigavam a população de forma
desumana; muitas vezes, até a morte. Na época, não havia liberdade de
expressão, muito menos descanso para inúmeras horas de trabalho duro sob a
vigia de cipaios durante dia e noite.
Todo esse quadro fez com que Amílcar Cabral se empenhasse na luta pelo fim da
opressão e da tortura estabelecida no território guineense por ordem dos
colonialistas portugueses. Peter Mendy observou com maturidade esse tempo cruel
e a revolta de Amílcar:
A natureza brutal do domínio colonial português na
Guiné-Bissau, assim como em Cabo Verde, revoltou Amílcar Cabral e lhe deu uma
determinação maior para lutar pela destruição do colonialismo: ‘Vi gente morrer
de fome em Cabo Verde e vi gente morrer a pauladas na Guiné (com surras,
pontapés e trabalho forçado), entende? Essa é a razão da minha revolta’(MENDY,
2012, p. 21).
Podemos afirmar, sem nenhum exagero, que Amílcar Cabral foi um dos mais
valentes e corajosos homens de seu tempo, pela ousadia de criar um partido com
o objetivo de lutar contra o domínio imperialista, implantado há séculos.
Cabral ousou, ao criar, em 1956 (19 de setembro), o PAIGC, e ao unir dois
países para lutar por uma causa. O sistema político português havia criado, no
meio desses dois povos, o espírito de ódio. Peter Mendy discute essa divisão
durante a colonização: “A Guiné-Bissau em que Amílcar Cabral nasceu era também
um país dividido, de civilizados e não civilizados, de assimilados e de
indígenas ou gentios; um mundo dividido quanto à cor em brancos, mestiços e
negros”. (MENDY, 2012, p. 21)
Em 1953, Amílcar Lopes Cabral
foi contratado como agrônomo de segunda classe ao serviço da colônia
portuguesa. Nesse posto, teve o privilégio de viajar a diferentes regiões do
país, aproveitando essas viagens como estratégia da sua política ao combate do
fascismo no país. (MENDY, 2012, p. 24). A partir das viagens feitas aos vários
pontos do país, Cabral percebeu o nível de descontentamento da população rural
e urbana em relação à opressão colonial portuguesa. Em 1954, dois anos antes da
fundação de PAIGC, Cabral não hesitou em criar um clube de futebol que reunia
duas classes – que o colonialismo havia separado: assimilados e não
assimilados, ou gentios.
O clube foi criado com a
finalidade de incutir na mente da população a ideia de uma luta de libertação.
Logo, foi rapidamente fechado por uma ordem dos chefes coloniais, após terem
entendido a real intenção dos seus responsáveis. O que levou Amílcar a ser expulso
imediatamente do país, tendo o direito de visitar os familiares apenas uma vez
por ano: “Cabral, evidentemente, foi impedido de obter residência permanente na
Guiné, e só teve autorização para visitar a mãe e família uma vez por ano” (MENDY,
2012, p.25).
Numa de suas viagens de volta à
Guiné Bissau, Cabral terminou por fundar o PAIGC, em 19 de setembro de 1956, ao
lado de alguns nomes, que abraçavam a mesma visão, como Aristides Pereira, Luís
Cabral, Júlio de Almeida, Fernando Fortes e Elisée Turpin. O PAIGC foi um
partido de grande relevância para a história e a política da Guiné-Bissau,
tendo lutado arduamente para independência de dois países. Como bem lembra
Peter Mendy, foi durante uma dessas visitas autorizadas à Guiné Portuguesa que
Cabral fundou o Partido Africano da Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde,
PAIGC (MENDY, 2012, p. 25).
A criação do partido foi um
êxito para Amílcar Cabral, assim como para os demais companheiros que
partilhavam o mesmo espírito revolucionário. Porém, Cabral, como mentor de
ideias libertárias, tinha pela frente vários desafios capazes de dificultar as
suas ideias políticas. Havia problemas étnicos e de classe entre os nativos
guineenses e um grupo menor de cabo-verdianos, o que se constituía como um
grande quebra-cabeça para Cabral. Os cabo-verdianos eram a minoria branca aos
olhos dos colonos; eram vistos como ‘civilizados’. Do outro lado, havia uma
maioria negra – que os colonos chamavam de ‘gentios’. Como sublinhou Mendy:
Na década de 1950, a
chamada população “civilizada” contava 8.320 indivíduos - mero 1,6% da
população total. Eram racialmente identificados como brancos, 27%; mestiços
(cuja imensa maioria era composta de cabo-verdianos), 55%; e negros, 18%.
Simplesmente com uma pena, as autoridades de Lisboa decretavam “não
civilizadas” as populações indígenas da Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, mas
não de cabo verde (MENDY, 2012, p. 21).
Cabral tinha percebido a demora
em mobilizar o povo para pegar nas armas para lutar em defesa da sua cidadania
e bem-estar de todos eles. O massacre de Pindjiguiti – que aconteceu a 3 de
agosto de 1959, impulsionou e despertou a população a por fim à violência e à
barbaridade impostas àquela colônia lusitana. No ano 1959, já mencionado, dia 3
de agosto, os estivadores e os marinheiros de porto de Pindjiguiti exigiram o
aumento dos seus salários e melhores condições de vida. A resposta dos
policiais durante essa manifestação foi brutal. O autor Peter Mendy lembra esse
episódio:
No dia 3 de agosto de
1959, os descontentes estivadores e marinheiros mercantes que entraram em greve
por questões mais mundanas de aumento de salários e melhores condições de
trabalho foram obrigados a voltar ao trabalho literalmente à bala, o que matou
cerca de cinquenta grevistas e deixou um número muito maior de feridos. O
massacre de pindjiguiti, sobre o qual se fez um incrível silêncio oficial,
tornou-se um ponto crítico vital, quando o PAIGC tomou a decisão crítica de
mudar de rumo e enveredar pelo caminho da libertação nacional (MENDY, 2012, p. 27).
Continua o mesmo autor a
respeito:
O ataque à guarnição
portuguesa em Tite, no sul da Guiné-Bissau, deu início à adiada luta armada de
libertação, que foi, sem dúvida, o “o melhor momento” na história dos povos
colonizados da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Foi uma guerra em que guineenses e
cabo-verdianos, apesar dos antagonismos gerados pela condição colonial e, no
contexto de uma luta armada de libertação, da hostilidade entre eles promovida
pela mesma condição, combateram e morreram bravamente, lada a lado, contra um
inimigo armado até os dentes com as mais recentes armas convencionais e
teimosamente determinados a defender o statu
quo colonial (MENDY, 2012, p. 28).
Após a
fundação do PAIGC, Amílcar Cabral se ausentava, muitas vezes, do país em
compromissos políticos que garantissem a sustentação do Partido. Porém, essas
ausências incomodavam bastante algumas chefias militares do PAIGC, que já se
mostravam revoltadas pela forma como Cabral conduzia a luta. Contudo, ele tinha
seus motivos, pois precisava manter a cooperação com o exterior e pedir ajuda
necessária para enfrentar o inimigo. Foi numa dessas viagens, em 1956,
precisamente no mês de dezembro, que Amílcar participou ativamente na seleção
dos joves militantes angolanos do MPLA, para futuros treinamentos em diversas
áreas militares (ORAMAS, 2014, p.65). Reparemos que o herói da nacionalidade
guineense não só se preocupava com a presença europeia nos espaços coloniais
com os quais tinha ligação, mas inquietava-se com a opressão portuguesa em toda
África.
A
cooperação com os países estrangeiros, como a China, a União Soviética e a
Guiné Conacry facilitou muito a resistência do PAIGC. Os portugueses, cientes
dos seus fracassos em combater a resistência dos nativos, aplicararam a
política de aterrorizar as populações locais, tanto nas cidades, como nas zonas
rurais. Algumas dessas práticas eram detenções arbitrárias dos militantes do
PAIGC e as torturas permanentes efetuadas pela PIDE (ORAMAS, 2014, p.82).
Apesar dessas práticas de hostilidade, o PAIGC crescia e cada vez mais se
tornava um partido de força e resistência, unido no mesmo ideal da luta. Foi
nesse espírito que, em 1964, logo nos primeiros anos de luta, o PAIGC conseguiu
vencer a batalha da Ilha de Como.
Sobre esse episódio, Oscar Oramas comenta: “Em 1964, de janeiro a março, tem
lugar a batalha da Ilha de Como, constituindo a vitória uma verdadeira prova
para as forças libertadoras que tomam consciência da sua capacidade militar”
(ORAMAS, 2014, p.83). Além disso, o Partido abriu novas frentes de luta, que
vão lhe permitir alargar mais espaços de combate ao fascismo português; já em
cinco anos, o PAIGC havia dominado mais de metade da área total.
Como
dissemos anteriormente, durante o processo de luta de libertação o PAIGC
recebera ajuda das forças estrangeiras, entre elas, a China, Guiné Conacry[47], União
Soviética e a força cubana. Esta última, não só ajudara com materiais de
guerras, na alimentação e medicamentos, mas também participara, lado a lado,
nas frentes das batalhas com os combatentesdo PAIGC, facilitando ataques e reduzindo
as baixas nas retiradas do combate. Assim se expressa Oscar Oramas, ressaltando
a contribuição cubana na luta de libertação nacional:
Não
se pode negar a importante contribuição que significou a ajuda soviética, mas
deve ficar claro que jamais um soviético passou para além de Boké, na República
da Guiné, e que os únicos estrangeiros que participaram, diretamente, nas
acções da luta de libertação, ombro a ombro com os guerrilheiros guineenses,
foram os cubanos (ORAMAS, 2014, p. 116).
A luta de independência da
Guiné-Bissau e Cabo Verde teve início a 23 de janeiro de 1963. Foram onze anos
de luta armada para conquista da tão sonhada independência. O PAIGC recebeu
apoio moral, assim como apoio logístico e de armamentos da parte dos países
socialistas, principalmente da antiga União Soviética e de Cuba. A luta foi
sangrenta.
Amílcar Lopes Cabral,
protagonista de toda história de luta e do seu partido, não comemorou junto com
os companheiros a liberdade dos povos de Guiné-Bissau e de Cabo Verde. O líder
guineense morreu no dia 20 de janeiro de 1973. Depois da sua morte, Luís
Almeida Cabral, primo de sangue, assumiu a liderança do PAIGC. Após a
independência do país, ele se tornou o primeiro presidente. O espírito
revolucionário de Cabral, sem dúvida, inspirou gerações e gerações. E o seu
nome será lembrado como patrimônio da nação guineense “a vida de Amílcar já se
tornara história” (LOPES, 2012, p. 10).
3.1. Poesia de combate - nomes e destaques
Durante a luta
armada, a poesia serviu para amenizar a dor e resistir à opressão colonial.
Nesse período, destacamos os seguintes nomes: Amílcar Lopes Cabral, Vasco
Cabral e Antônio Baticã Ferreira, pela ousadia que tiveram em expressar seus
sentimentos de angústia, pautando como melhor caminho a liberdade para um povo
oprimido.
Esses três nomes marcaram esse período de resistência à violência e
repressão social e racial. Por isso, são considerados poetas da geração de
independentistas, pela força que demonstraram nas palavras em defesa do povo
guineense. Como ressaltam Amorim & Mariana:
Depois de 1945, surge na Guiné uma literatura de
combate que denunciava a dominação e a miséria a que os negros estavam
submetidos em suas terras e os incitava à libertação e a valorização da cultura
negra. Entre os escritores dessa época, destaca-se Vasco Cabral, António Baticã
Ferreira e Amílcar Cabral (AMORIM & MARIANA, 2012, p. 39).
Apesar de o país ter a sua primeira publicação literária em 1963, de
autoria de Carlos Semedo, desde 1940, despontava a poesia nos meios guineenses,
erguendo-se, já nessa década, como instrumento de resistência aos colonos
portugueses.
Como sabemos, a presença europeia na África, de modo geral, tentou
matar as tradições e costumes dos africanos, promovendo a implantação das
tradições ocidentais, entendendo que as culturas europeias seriam superiores às
do continente africanos. Mas, houve sempre resistência, na Guiné-Bissau, em um
território pequeno e uma população que não ultrapassava quinhentos mil
habitantes na época. Essa resistência dos guineenses resultou na luta armada,
que durou onze anos.
O ano de 1446 marcou o descobrimento do território guineense.
Entretanto, vale ressaltar que, antes da presença portuguesa, a Guiné-Bissau já
era território marcado com grandes diversidades étnicas e culturais de diferentes
partes da África. A colonização portuguesa na Guiné-Bissau trouxe mais uma
divisão entre os guineenses: assimilados e não assimilados. Assimilados, como
apontamos anteriormente, eram os que optavam pela cultura portuguesa, adotando
o modo de vida dos brancos, em função de certos privilégios, negando a sua
própria cultura e as suas origens. Já os não assimilados, ou indígenas em
outras expressões, eram os que não adotavam os costumes da “civilização
europeia”; eram considerados ‘gentios’.
As grandes vozes poéticas desse tempo marcaram a luta contra
qualquer tipo de opressão aos colonizadores. A maioria dos poemas tem um valor
significativo de luta, pelas figuras de linguagem que carregam. São poemas que
desejam despertar a coragem e a força de se lutar por um ideal, rompendo com o
silêncio do povo adormecido.
Vamos apresentar brevemente a valiosa contribuição poética de cada
um desses poetas combatentes – que transformaram suas palavras em armas de
combate. Como veremos adiante, os versos desses escritores tornaram claro o
quanto as palavras podem servir aos homens para reivindicar seus direitos
enquanto seres sociais. Todos os poemas dessa fase são de temáticas de luta, de
fortalecimento e de consolo. Como Cabral dizia: “O que quer o homem africano é
pensar com sua própria cabeça e andar com seus próprios pés”. Cabral
argumentava sempre nos seus discursos que o combatente não só é aquele que
pegou a arma, pois havia várias frentes de luta. A poesia era uma das formas de
lutar contra opressão colonial.
Amílcar Cabral: a voz de resistência.
Apesar de ser pouco conhecido como poeta, os versos de Cabral, além
de apresentarem temática de revolução e de cunho político, mostram que ele foi
um poeta expressivo do seu tempo. Observemos a grandeza desse autor e líder
intelectual no poema “Ilha”, datado de 1945:
Tu vives – mãe adormecida –
nua e esquecida,
seca,
fustigada pelos ventos,
ao som de músicas sem música
das águas que nos prendem…
Ilha:
teus montes e teus vales
não sentiram passar os tempos
e ficaram no mundo dos teus sonhos
– os sonhos dos teus filhos –
a clamar aos ventos que passam,
e às aves que voam, livres,
as tuas ânsias![48]
Os seus poemas paracem surgir na vontade de amenizar o sofrimento
diante da violência das autoridades portuguesas. Há de se lembrar, também, que
a palavra era o grande diferencial de Cabral no meio dos colegas. Sua poesia,
apesar de pouco conhecida, sugere o desejo de libertar almas presas, tirando-as
do fundo do abismo do jugo colonial. Assim sendo, a poesia cabralina mostra-se
como uma luz que parece querer confortar uma fase de profunda dor.
A maioria dos poemas de Amílcar Cabral nasce em contextos de náuseas
provocadas pela colonização. Neles, enfatiza-se sempre a liberdade do homem negro
no seu próprio chão. Essa temática da liberdade domina parte dos versos desse
grande poeta. Se observarmos a marca que a colonização implantou no continente
africano, podemos perceber que as poesias cabralinas foram naturalmente
humanas, revelando-nos o quanto a palavra tem força para lutar contra as
injustiças e todas as formas de discriminação vividas pelo povo guineense
durante séculos.
Cabral usou a sua voz e com ela contribuiu bastante para dar
melhores condições de vida ao seu povo. A liberdade e a revolução andam juntas,
na medida em que as duas se abraçam em único ideal. E a revolução não se faz
somente com as palavras. Na expressão de Carlos Lopes: “Liberdade, fraternidade
e igualdade são palavras vazias para as pessoas se não significam uma melhoria
real em suas vidas” (LOPES, 2012, p. 8). A poesia era fundamental para Cabral,
mas também era fundamental pegar nas armas e lutar para independência do seu
povo. A realidade dos fatos da época induzia todos a pegar em armas, para que a
liberdade tivesse significado na vida das pessoas.
A história de
Cabral uniu duas nações: a Guiné-Bissau, terra onde nasceu e viveu por mais
tempo na sua vida; e Cabo Verde, Ilha de São Vicente, onde estudou nos
primeiros anos de ensino primário e secundário. Como observa Russell Hamilton:
Os poemas do grande estadista africano e pai da
independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde, onde os seus pais nasceram, eram
essencialmente inofensivos aos olhos das autoridades colonialistas. Apesar
disso e da falta de primores estéticos, os poemas de Amílcar Cabral têm grande
valor histórico na delineação de uma literatura guineense incipiente.
(HAMILTON, 2006, p. XXIX-XXX).
Os poemas de
Amílcar Cabral expressam sentimentos de um grito coletivo apesar de, algumas
vezes, haver falta de primores estéticos, como sugere Hamilton (2006). É o que
observamos no fragmento da poesia intitulada ‘Poema’:
Quem é que não se lembra
Daquele grito que parecia trovão?!
– É que ontem
Soltei meu grito de revolta.
Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos
da Terra,
Atravessou os mares e os oceanos,
Transpôs os Himalaias de todo o Mundo,
Não respeitou fronteiras
E fez vibrar meu peito [...].[49]
Vale refletirmos, no entanto, que a poesia cabralina surge na
emergência de luta contra o regime fascista no continente africano. Nas
palavras de Mário César Lugarinho, “a poesia é um ato político que ocorre por
meio de uma ação mágica... O poeta põe-se a mercê de si e de seu grupo social”
(LUGARINHO, 2006, p.165). Logo, os seus poemas vão muito além dos seus
sentimentos pessoais, na medida em que aproximam o povo dos seus ideais
revolucionários, para uma luta em defesa da liberdade e de bem-estar dos homens.
A poesia era, para o poeta, liberdade, liberdade transformada em
palavras para confrontar o inimigo, como podemos observar no poema A minha poesia Sou, “não te escondas nas grutas de meu ser/ não fujas à vida/ quebrar as
grades invisíveis da minha prisão/abre de par em par as portas do meu ser.”[50]
A poesia seria ele, a poesia seria o seu povo, as palavras os instrumentos de
luta contra injustiças e opressão social. O poeta sente forças nas palavras,
nelas sente a coragem de quebrar “as grades invisíveis da sua prisão”. A
palavra era força brutal para sarar as feridas da alma, permitindo novos
caminhos para a ‘caravana passar’, e sonhar na certeza da independência do seu
país. A indignação observada configura-se em projeto literário circunstancial,
dando representatividade a várias vozes em uma só fala, como percebemos no
poema No fundo de mim mesmo:
No fundo de mim mesmo
eu sinto qualquer coisa que fere minha carne,
que me dilacera e tortura …
… qualquer coisa estranha (talvez seja ilusão),
qualquer coisa estranha que eu tenho não sei onde
que faz sangrar meu corpo,
que faz sangrar também
a Humanidade inteira!
Sangue.
Sangue escaldante pingando gota a gota
no íntimo de mim mesmo,
na taça inesgotável das minhas esperanças!
Luta tremenda, esta luta do Homem:
E beberei de novo – sempre, sempre, sempre -
este sangue não sangue, que escorre do meu corpo,
este sangue invisível – que é talvez
a Vida![51]
Paulo Freire,
grande intelectual brasileiro, conhecedor com muita profundeza das realidades
históricas e sociais guineenses, afirma no seu livro Pedagogia da autonomia: saberes Necessários à Prática Educativa. “Qualquer discriminação é imoral e lutar
contra ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a
enfrentar. A boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa
possibilidade e nesse dever de brigar” (FREIRE, Paulo, 2008, p. 59).
Esse texto se enquadra muito bem com a visão crítica e
revolucionária de Amílcar Cabral. Ele era ciente dos condicionamentos a
enfrentar, contra um sistema em domínio de tudo. Mas a sua alma tinha sede de
lutar a favor de justiça e de direitos igualitários para todo continente
africano. Cabral vê o seu tempo e nele aposta na esperança de dias melhores. Como
bem afirma Lugarinho: ” a poesia é magia, língua, utopia, mito, estética e
política” (LUGARTINHO, 2006, p.165).
Hoje,
infelizmente, o cenário político e social guineense apresenta uma discórdia
absoluta. Diante disso, pensamos nos poemas que acabamos de citar e no seu
valor de despertarem as consciências e nos levarem a refletir sobre a
importância da solidariedade na construção social.
Vasco Cabral: o poeta da
primavera.
Dificilmente fazer um panorama sobre o percurso da literatura da
Guiné-Bissau sem no qual não passar pela obra literária de Vasco Cabral, um
poeta que pertenceu a mais de dois períodos literários guineenses, um poeta
cuja coragem ultrapassa as fronteiras.
Depois da independência do país, Vasco Cabral assumiu a pasta de
Ministro da Economia e das Finanças. Ele, também, foi fundador da União dos
Escritores Guineenses. Possui poemas publicados nas diversas antologias do país
e no exterior. É autor da famosa obra A
Luta é minha primavera. Apesar de ter o mesmo sobrenome de Amílcar Cabral,
não há nenhum laço de parentesco entre esses dois revolucionários. O sobrenome
Cabral é uma mera coincidência. Como observa Hamilton:
Vasco Cabral (n.1926), um co-militante mas não um
parente de Amílcar Cabral, também escreveu, nos anos cinquenta e sessenta,
vários poemas, abertamente combativos, que ficaram inéditos até depois da
independência, quando quase todos saíram impressos num volume com o sugestivo
título de A luta é a minha primavera. (1981) (RUSSEL, 2006, p. XXX).
Vasco Cabral nasceu em 23 de agosto de 1926, em Farim, Guiné-Bissau,
e faleceu em 24 de agosto de 2015. Entre
os poetas do seu tempo, foi quem mais se destacou, tendo em conta a sua ousadia
nas palavras e a sua postura política revolucionária. Vasco Cabral, assim como
Amílcar Cabral e António Baticã Ferreira reevindificaram os direitos do homem
negro e a sua liberdade de expressão.
Na literatura, Vasco Cabral, revelou-se, muito cedo, como um dos
nomes de peso – que usava a poesia como instrumento de combate contra a
opressão dos homens negros na então Guiné portuguesa. Engana-se quem pensa que
o poeta só expressava o seu sentimento íntimo. Vasco deu grande a contribuição
para literatura guineense, escrevendo no seu estilo para expressar o sentimento
coletivo.
Vasco Cabral, como demais colegas de luta, embala no peito a sua dor
e a esperança de encontrar sossego para o seu povo. Apesar dos seus poemas
serem publicados só a partir dos anos 80, desde a sua prisão, em 1953, ainda
jovem, seus versos já descreviam o inconformismo com a situação colonial no
país. A maioria dos textos do autor que compõem a obra A luta é minha primavera, data dos anos 1950, quando o autor era
ainda estudante de Ciências Econômicas da Universidade Técnica de Lisboa. Após
a sua morte, foi reconhecido pelo governo Português em homenagem enviada ao seu
partido, o PAIGC, como “combatente anticolonialista e antifascista desde muito
jovem e figura destacada do povo guineense pela conquista da independência e de
edificação da República da Guiné-Bissau”.[52]
Grande parte dos poemas de Vasco Cabral tem como tema a revolta do
homem colonizado; são versos que apontam, no fundo, a esperança de dias
melhores. Os seus poemas se originam do desejo de transformar a dor nascida
pela colonização europeia na África. Esse desejo é manifestado no poema
“desabafo”, que a seguir transcrevemos:
Oh! Que bom seria transformar
Os falcões em pombas
E fazer as pombas sorrirem na Primavera
Oh! Como gostaria eu
De beijar na boca a madrugada
E afagar com os meus dedos
os cabelos do futuro
para que a paz e a liberdade
fossem universais.[53]
Ao lermos esse poema, somos obrigados a nos colocar no lugar do
poeta: sonhar e ter desejo de transformar a noite em dia – e transformar tudo
em nosso favor. “Oh! Como
gostaria eu/De beijar na boca a madrugada/E afagar com os meus dedos/os cabelos
do futuro/ Para que a paz e a liberdade/ Fossem Universais. O poeta expõe nos versos a triste condição desumana que a
colonização a todo custo insistia em cultivar, com a intenção de explorar
sempre o homem negro. Todos os versos do poema “desabafo” expressam essa
realidade vivida na colonização, que, simplesmente, levou o poeta a desejar “transformar os falcões em pombas/ E fazer as
pombas sorrirem na primavera”. Chama a nossa atenção a metáfora de
“falcões” e “pombas” nos versos desse pequeno poema.
Falcões são aves de características pequenas, geralmente de bico
curto, porém, eles possuem movimentos rápidos com facilidade de voos longos. Os
falcões são aves que gostam, por natureza, de ganhar a vida na captura dos
alimentos. As pombas, muito diferente dos falcões, são alegorias da paz. Não
têm facilidades para longos voos, porém são aves que possuem capacidade de
localizar os ninhos, além de conseguirem detectar o barulho de longa distância.
Os falcões são, pelas características apontadas, nada mais, nada
menos, que a imagem dos colonizadores na África – com espírito de prender o que
não lhes pertence. Vasco Cabral critica, nos pequenos versos, a presença
colonial na África, rejeitando a vida oprimida que a colonização implantou no
continente. No espírito poético, o poeta aspira que a paz e a liberdade sejam
universais, como apontam os últimos versos do poema.
A maioria dos poemas de Vasco Cabral é de cunho político, e neles
demonstra-se o grande incômodo com a presença portuguesa, metaforizada de
inúmeras maneiras na sua escrita, afim de desabafar a sua dor. Vejamos o poema
“Anti-delação”, transcrito abaixo:
A noite veio,
disfarçada em dia,
e ofereceu-me a luz,
diáfana como a Aurora.
Mas eu disse que não.
Depois veio a serpente
disfarçada em virgem
e ofereceu-me os seios e os
braços nus.
Mas eu disse que não.
Por fim veio Pilatos,
disfarçado em Cristo,
e numa voz humana e doce
disse: "se quiseres eu
dou-te o paraíso
mas conta a tua
história..."
Mas eu disse que não,
que não, não, não!
E continuei um Homem!
E eles continuaram
os abutres do medo e do
silêncio[54].
No poema acima, deparamos com as profundas inquietações do poeta.
Vasco Cabral, através do eu-lírico, rejeita abominavelmente a presença europeia
no território guineense, nega a luz do dia como aurora/ nega os seios e os
braços nus da serpente (serpente é um ser estranho no contexto guineense – um espírito
sagrado). Por fim, rejeita o paraíso em troca da sua história. O sujeito
poético afirma que nada substitui por amor a sua pátria amada. A rejeição passa
a servir, de certo modo, como marca da identidade e orgulho nacional.
Nesse sentido, o poeta reafirma, nos seus versos, a sua revolta
contra a ditadura fascista de Salazar. Lutar com a escrita, assim como lutar
com as armas. As formas de lutar caracterizam o sentido de vencer. Deste modo,
o poeta resiste nas palavras, também, resiste com sua ideologia revolucionária
– para que os homens sejam todos iguais. Observamos, ao longo do poema todo, as
metáforas que apontam para a mentira, o disfarce e o engano, trazidos pelo
sistema colonial. Tais práticas são patentes nas imagens da ‘noite’, de ‘Pilatos’
e da ‘serpente’, assim como a rejeição a essas práticas é demonstrada pelo eu
lírico.
De tudo que já vimos até então sobre o autor, percebemos que, muito
cedo, ele já se revelava como um dos grandes nomes do seu tempo, mostrando-se
sempre disposto a lutar contra as ideias forjadas dos colonialistas e buscando
conscientizar o povo em relação às injustiças e desgualdades. Vejamos o poema
“Progresso”, no qual partilha conosco sua visão da vida como uma batalha:
Quantas vezes eu fico meditando
à hora em que há silêncio e tudo dorme
em como a Vida é uma batalha enorme
onde se uns perdem outros vão ganhando.[55]
As palavras de Vasco Cabral apresentam-nos um comprometimento de
fidelidade com o seu povo. É como se cada verso do poeta fosse um flash
perfeito da situação de angústia vivida na época, oferecendo-nos uma imagem
extremamente profunda e viva da experiência do colonizado. Observemos as
imagens do poema “Pindjiguiti”.
3 de agosto
1959
Bissau desperta inquieta
do sono da véspera.
Sopra o vento de morte
no cais de Pindjiguiti!
E de repente
o clarão dos relâmpagos
o ribombar dos travões.
O meu povo morre massacrado
No cais de Pindjiguiti!
Um clamor de vozes
ameaças e pragas
fulmina o espaço
num coro de impotência.
O meu povo morre massacrado
no cais de Pindjiguiti![56]
Neste poema, Vasco Cabral reveste-se de fogo poético, para
libertar-se da dor profunda que se desprende dos cenários onde ocorreu o
massacre de Pindjiguiti. O poeta assume um tom de voz necessária para a
denúncia da crueldade dos colononizadores no chão guineense, manifestando a expressão
do sentimento coletiva nos versos a seguir: Um
clamor de vozes/ameaças e pragas/fulmina o espaço/ Num coro de impotência/ o
meu povo morre massacrado/No cais de pindjiguiti [...] O poeta não cala.
Como não ficou calado perante a situação em outros momentos da vida desumana –
em que corria perigo, tornando-se prisioneiro por cincos anos. Assim foi sempre
a sua poesia: “Um mar em revolta”. A revolta também se vê no poema abaixo. A
revolta no seu sentido mais amplo:
Ricaço!
Porque chamas tu
"canalha"
a essa pobre gente que
trabalha?
Canalha?
Canalha és tu!
Que não tens as amarguras
nem o scalos e as mão duras[57]
dessa gente que trabalha[58].
A voz do poeta não se calou nunca perante os fatos. Se observarmos
bem o poema ‘Pindjiguiti’, o poeta não se preocupou somente em denunciar a
repressão do colonizador. Dirigindo-se ao outro lado, evoca um sentimento de
despertar o povo – para dizer “um basta”. É o que sugerem os versos a seguir: “E
de repente/o clarão dos relâmpagos/o ribombar dos travões”.
Os versos acima apontam a conscientização do povo guineense –
principalmente dos marinheiros e estivadores do porto de Pindjiguiti, que
reivindicavam seus direitos salariais e melhores condições de vida. Os
marinheiros e estivadores rejeitaram o serviço da casa da Gouveia em uma greve
que se prolongou por muitos dias – que resultou num massacre sangrento marcado
com desgosto na história guineense. Não se sabe exatamente o número dos mortos
e feridos desse massacre. Mas estimam-se mais setenta mortos e mais de cem
feridos.
Seja como for, neste poema o colonizador transforma as águas do
Pindjiguiti em sangue – as lágrimas de muitas famílias enlutadas são vistas no
Pindjiguiti. Como descreveu Manuel Ferreira, no prefácio do livro Não Posso
Adiar a Palavra, de autoria do poeta Hélder Proença:
Na fase em que se encontra a poesia guineense
compreende-se que a urgência de fazer chegar a mensagem ao destinatário
sobreleve outras preocupações. Não tardará, porém, que aqueles poetas em quem o
grau de realização já vai além das promessas sintam a necessidade de
experimentar, de aliar à militância ideológica, à vigilância revolucionária uma
atenção mais funda à matéria de que se tece o processo comunicativo em que
estão empenhados – a linguagem. Será no entendimento de que a revolução não
passa ao lado desta, de que também ela se encontra sujeita a mutações
semelhantes às que agitam o tecido social, que de promessas se passará a
certezas. (PROENÇA, 19982, p. 9).
O poeta sugere que só a luta armada devolveria a esperança e a
liberdade ao povo guineense. Com suas palavras, Vasco Cabral apontou caminhos
para manter vivos os sonhos que, por muito tempo, foram silenciados.
António Baticã Ferreira:
poeta da memória voltada à terra natal.
António Baticã Ferreira nasceu no dia 23 de agosto de 1939, em
Canchungo, cidade que fica situada no norte do país. O poeta concluiu os
estudos secundários em França – Paris. Obteve o diploma de medicina na Suíça.
Por muito tempo, Baticã Ferreira exerceu a profissão de médico, em Portugal, na
cidade de Lisboa. O poeta saiu muito cedo da Guiné-Bissau, mas as suas poesias
revelam um profundo sentimento pela sua terra. Conta com várias publicações em
antologias francesas e portuguesas.
A inquietação em relação ao colonialismo português e a saudade da
terra natal são temáticas que norteiam a obra de António Baticã Ferreira. Os
seus versos de inquietação e de saudade revelam-se como tentativas de aproximação
do poeta da sua terra natal. Neste sentido, há que se lembrar de que tais
marcas identitárias são características das construções poéticas do autor – que
definem muito bem a experiência dos guineeense na diáspora – expressas na
maioria dos seus versos.
Não sabemos a razão de Manuel Ferreira, um dos grandes estudiosos da
literatura africana de língua portuguesa, ter escolhido António Baticã Ferreira
como único participante da antologia temática de poesia africana no seu segundo
volume. Manuel Ferreira, em um total de cento e trinta oito poetas
participantes dessa antologia, apresentou-nos apenas um único poeta guineense
(AUGEL, 2007, p.105). De fato, Baticã Ferreira foi um dos primeiros poetas a
escrever um poema para um contexto típico africano, voltando-se sempre às lembranças
da terra natal, com imagens quase sempre centradas no profundo inconformismo
com o colonialismo.
De todos os textos que compõem seu discurso poético, destacamos a
temática do espírito patriótico – apontada em vários trabalhos acadêmicos, e
vista como um intuito de se debruçar sobre a questão de identidade e da formação
da nação guineense. Essa temática espelha os sentimentos do poeta – pautando um
discurso simbólico em que a pátria se torna a razão principal dos seus escritos,
dando-nos também a entender que a liberdade é o único caminho para o homem
negro no seu continente.
Não são muitos os trabalhos, no meio acadêmico, que discutem os
poemas de António Baticã Ferreira. Porém, a grandeza do poeta não se mede
somente pela dimensão dos seus trabalhos estudados. Observamos, ainda, que seu
ativismo revolucionário contribuiu bastante para o reconhecimento do seu
espírito nacionalista.
Sempre me preocupei com autores invisíveis da literatura guineense.
Assim, comecei a me empenhar na pesquisa das obras do autor e a refletir
profundamente sobre os seus textos e as circunstâncias em que foram escritos.
Na medida em que eu aprofundava a minha pesquisa, fui percebendo naturalmente
os encantos e amarguras que tomam conta da poética de Baticã Ferreira. O
amadurecimento do poeta, o seu amor à Pátria e a sua visão crítica –
estabelecem a ponte para cada uma das poesias que, ainda que falem da saudade
da terra, trazem simbolicamente sua contribuição como um verdadeiro combatente
da liberdade da Pátria – defendendo a cidadania guineense.
António Baticã Ferreira, assim como outros poetas já mencionados no
presente capítulo, tem um lugar de destaque neste período de opressão e
tortura, pela pluralidade e importância que a sua obra adquire para esse
momento. Seu maior desejo era o de ver seu povo livre como as demais culturas
do mundo. A pátria é uma das características que influenciam o seu eu - lírico.
Como ressalta um dos poemas mais conhecidos do poeta:
Um sentimento de amor pátrio sobe no meu coração,
Em espírito demando o meu pais natal,
E lembro aquela floresta africana,
Cheia de caça e de verdura;
Lembro as suas imensas árvores gigantes,
A folhagem verde ou amarela
Que nos perfuma.
Revejo a minha infância,
Toda cheia de alegrias:
Eu corria pelo mato,
Espiava os animais selvagens,
Sem medo;
E olhava os lavradores nos campos,
E, no mar, os pescadores,
Que lutavam contra o vento, para agarrar o peixe,
E que eu, atento, seguia com o olhar:
Como gostava de os ver no oceano
Domar as vagas, que lhes queriam virar as barcas!
(Ah!, bem me lembro, bem me lembro do meu pais natal!)
( FERREIRA, 1975, p. 323).
O elemento mais importante a se destacar no poema são as figuras
relativas ao mato, ao mar e as árvores gigantes referidos no poema. Essas
figuras podem ser vistas como raízes do poeta em sua terra natal, presença
constante nos versos do autor. A memória do autor era viva; recordando-nos dos
lugares que deixou virgem, mas devastados pela presença europeia: como a
floresta cheia de caça e de verduras; a infância cheia de alegria, quando
corria pelo mato sem medo; porém, esse ‘mato’ é a metáfora do seu país
violentado por portugueses, o mato cheio das folhas das árvores que o
perfumava; e então passa a transmitir o cheiro de sangue. O poeta não pode mais
correr pelo mato: “Espiava os animais
selvagens e, no mar, ver os pescadores/. O medo dominou a memória do poeta e do seu povo. Baticã Ferreira,
através dos versos, manifesta o seu sentimento íntimo, aponta e questiona o
inconformismo com a presença colonial no seu país.
A reivindicação e o espírito patriótico assumem um lugar de destaque
nos versos de Baticã (RUSSEL, 1984, p. 217) Russel insinua que Baticã Ferreira
foi um poeta “tropical pastoril”, e as imagens retratadas em sua poesia
apresentam lugares da origem do poeta. Embarcando na ideia do autor, concordamos
que o poeta nunca deixou para trás a liberdade de sonhar com um país
independente. Se os gritos de abalos não foram suficientes, as palavras do
poeta podiam servir nas folhas brancas como a forma de gritar a favor de um
povo miserável. Como ressaltava Hélder Proença, quando escreve O meu poema deixará de ser um simples poema:
Lá onde a minha pátria chora
O meu poema fincará os pés – mesmo rijo –
Sobre a terra firme!
e deixará de ser poema
e enxugará todas as lágrimas
e transformar-se-á numa laboreda
iluminando os caminhos espinhosos. (PROENÇA, Helder,
1977, p.53)
A poesia de Baticã Ferreira segue essa mesma linha revolucionária do
poeta Hélder Proença. O poema vai acalentando a esperança de enxugar todas as
lágrimas dos rostos melancólicos, tornando-se, então, arma de resistência.
Ainda que o emprego da primeira pessoa nos leve a entender a
presença do eu – individual, quando lemos os textos de Baticã Ferreira percebemos
a presença forte do nós coletivo. Isso indica que o poeta não fala só por ele,
mas, sim, pelo povo que há séculos é silenciado. O poeta serve como porta-voz
de quem não pode falar. É a missão do poeta falar pelos outros. O seu discurso
lírico nos permite entender o quanto o poeta se disponibiliza a questionar as
tristes condições em que os guineenses viviam na então Guiné Portuguesa. Assim,
a poesia de Baticã, ainda é lida na perspectiva de um olhar intimista,
integrando-se e ecoando um grito coletivo, resistindo à dominação.
As suas poesias têm fogo – ardem com muita força e queimam, tentando
evocar sempre a esperança e uma nova maneira de encarrar o colonialismo no
continente africano. A voz do poeta continua viva, afirmando sempre a sua
identidade, enquanto proporciona um caminho da esperança, na crença de apagar a
memória de um passado e sonhar com convicção com um tempo promissor que se
avizinhava.
Assim, terminando a luta de libertação nacional, em 1973, com a
independência novas vozes começaram a surgir. Estes, em sua maioria, assistiram
a luta armada e eram ainda voltados para os mesmos ideais revolucionários. Como
afirmam Amorim & Mariana:
Após independência da Guiné, a literatura guineense
ganha novo vigor. Nessa época, surge um grupo de jovens poetas, cujas obras
manifestam um caráter social, focalizando a defesa da liberdade, a questão da
identidade nacional, entre outras coisas. Agnello Regalla, António Soares Lopes
(TonyTcheka), José Carlos Schwarz, Francisco Conduto de Pina e Felix Sigá são
alguns dos autores mais significativos desse período (AMORIM & MARIANA,
2012, p,39).
Esses jovens poetas, depois da independência do país (setembro1973),
reconhecida em 1974, questionavam nos seus textos o inconformismo da presença
europeia no país. Esses revolucionários poetas, comprometidos ainda com o
espírito de luta, publicaram em 1977, a primeira antologia poética da
Guiné-Bissau. Nessa antologia participaram 14 poetas, com 41 poemas,
infelizmente sem uma figura feminina. Entre os poetas participantes destacamos
os seguintes: Annello Augusto Regalla, (com 7 poemas: Camarada Amílcar, Aquela
lágrima de sangue, Decisão, As Ilhas, Saudade, Poema de um Assimilado e
Juventude), Morés Djassy, (com 4 poemas: Ao Camarada Neto, A morte dos
colonialistas, Somos crianças e Poema da natureza africana), Tony Davyes, (com
3 poemas: Poema, Desespero e Profanância), António Soares Lopes Júnior, ( com 4
poemas: Abusivamente, Mantenhas, A iminência do vosso fim e Pindjiguiti), Armando
Salvaterra ( com único poema intitulado: Depois de mim), Carlos de Almada, (
com 2 poemas: Canto alegre para N’ Dangú e Geba), Hélder Proença, ( com 5
poemas: Aos que tombaram no pindjiguiti, África, Mãe, Escreverei mais um poema
e O meu poema deixará de ser um simples poema), Jorge Ampa Cumulerbo, ( com 3
poemas: O julgar pertence à história, Urgente e Aos que me querem amar), José
Carlos Schwarz, ( com 3 poemas: Morte desenraizada, Cal coldade de amanhã Maria e Quebur Nobo), José Pedro Sequeira, (Com
3 poemas: Ânsia, A vida real dos homens nossos irmãos e A guerra antes do meu
filho), Justen, ( Com 4 poemas: Não podemos parar, para nós parar é morrer,
Poema, Não choro os mortos e Nós à beira-mar), Nagib Said, ( com 4 poemas:
Poema I, Poema II, Agonia dos impérios, Em gênero de homenagem à memória do
camarada Amílcar Cabral), Kôte ( com 2 poemas: Labaquinty e Descanso) e Tomás
Paquete, ( com 3 poemas: Retorno, Ao acaso ... No mar e A Soweto.
Dos 14 poetas dessa rica antologia poética, muitos deles não
continuaram a escrever, ou seja, escreviam na época, libertando o que estava
preso na garganta. Se não exageramos, não são quase conhecidos tanto no país
quanto no estrangeiro. Agnello Regalla, por exemplo, autor com mais poesias
nessa antologia, é mais conhecido no país como político – um dos membros
fundadores do Partido UM.
O único entre eles que ainda se destaca no mundo literário no país, assim
como no exterior, é Tony Tcheka. Apesar de muitos desses poetas não darem
continuidade às suas escritas, podemos dizer que impulsionaram a literatura
guineense para novos horizontes, possibilitando assim o crescimento da semente
lançada pela geração de Amílcar Cabral, Vasco Cabral e António Baticã Ferreira.
Cabe-nos, ainda, dizer que uma árvore só pode resistir aos ventos se tiver
raízes fundas. Essa observação torna-se importante, pois ressaltamos que a
literatura na Guiné-Bissau, embora tenha progredido muito tarde, em comparação
com as outras literaturas da comunidade de língua portuguesa, plantou com
cuidado suas raízes.
3.2. Golpes de Estados: visões
da pós-independência
Considero importante realizarmos aqui um breve passeio pela história
da Guiné-Bissau, uma vez que os sucessivos golpes de estado nos ajudam a
compreender o atraso no desenvolvimento da literatura no país. Por outro lado,
tais instabilidades políticas constituem-se, naturalmente, como fonte de
inspiração para os jovens escritores que surgem nas últimas décadas. Procuro,
aqui, resumir os principais conflitos que atingiram a população como um todo.
A história da Guiné-Bissau sugere-me a imagem de diversos fios, por
onde passam muitas correntes elétricas. Penso nessa imagem para ilustrar os
sucessivos golpes políticos ocorridos, após a sua independência. Contudo, é
fundamental recordarmos brevemente os momentos chave na história da
Guiné-Bissau: a chegada dos portugueses em 1446; a fundação do partido PAIGC
(1956); o massacre de Pindjiguiti (1959);
o início da luta armada – que decorreu em 23 de janeiro de 1963 – ; o
assassinato de Amílcar Cabral, em 20 de janeiro de 1973, pelos próprios
companheiros da luta; e a independência do país, em setembro 1973.
Ao conhecernos detalhadamente esses acontecimentos que antecederam a
independência, percebemos que o espírito de golpe de estado começou a partir do
mato. A insatisfação já governava as mentes dos guineenses, ainda que, na
época, lutassem pelos mesmos ideais. Havia, porém, no fundo discórdias entre
eles. Depois do assassinato de Amílcar Cabral, em janeiro de 1973, Luís Cabral,
primo de Amílcar, tomou a liderança do partido. Mais tarde, também, assumiu a
presidência da República. O seu mandato durou 7 anos. Em 1980, um golpe de
estado, orquestrado pelo Nino Vieira e demais companheiros, retirou Luís Cabral
do poder, assim como do país. Tal momento é relatado e analisado pela
pesquisadora Moema Augel:
O primeiro Presidente da República da Guiné-Bissau foi
Luís Cabral, um dos principais líderes da resistência anticolonial, chefe
militar que comandou uma parte do exército guerrilheiro, figura carismática e
de grande respeito no seio dos revolucionários. Entretanto, sua gestão foi
marcada por muita instabilidade e uma série de assassinatos de líderes antes
irmanados na luta. O país conheceu sua primeira grande crise que culminou com a
deposição do Presidente Luís Cabral, que governou até 14 de novembro de 1980,
quando um golpe de estado, tendo como justificativa salvaguardar a unidade
nacional e os ideias revolucionários, o derrubou, em nome do que foi chamado
eufemisticamente de “Movimento reajustador”, liderado pelo então primeiro
ministro João Bernardo Vieira ‘Nino Vieira’ (AUGEL, 2007, p. 62-63).
De fato, o mandato de Luís Cabral não escondeu divergências
políticas e sociais entre os guineenses e cabo-verdianos – que eram, a olhos
vistos, mais privilegiados na sociedade pelo então Presidente da República,
também, de origem cabo-verdiana. Luís Cabral, durante o seu mandato, praticava
nepotismo dentro do aparelho de Estado – e isso causou grandes problemas para
sua continuidade no cargo. Os cabo-verdianos, quase na sua maioria, ocupavam
postos de emprego privilegiados. Dessa forma, os guineenses sentiam-se cada vez
mais inferiores perante os cabo-verdianos – considerados elite. Como ressalta
Timóteo Sabá M´bundé: “No panorama político, dentro das estruturas internas do
PAIGC, o mandato de Luís Cabral não era visto com bons olhos pela elite
política guineense”. (M´BUNDE, 2018).
Os privilégios dos cabo-verdianos causavam descontentamento por
parte dos guineenses, no seio de partido e da sociedade, o que resultou no
primeiro golpe de estado, após a independência ao então presidente Luís Cabral,
justificado por conta de injustiças e discriminações raciais, como bem observa
SANGREMAN:
Nino Vieira (então Comissário Principal, equiparado a
primeiro-ministro) relacionava-se com a introdução de patentes militares n seio
das forças Armadas, em 1979. Os antigos combatentes sentiam injustiça perante o
sistema de cotas, que permitia promover jovens Cabo-verdianos recém-chegados de
Portugal ou de Cabo verde e sem nenhuma legitimidade militar a comandarem os
verdadeiros combatentes da liberdade da pátria. Quanto a Nino Vieira,
considerou não ter sido promovido de forma justa, tendo em conta o seu passado
na luta de libertação, acabando por reagir de uma forma que os juristas
qualificam como de legítima defesa (SANGREMAN, 2006, p.13 apud M´BUNDÉ, 2018, p. 73).
Da mesma forma que foi aplaudida a conquista da independência do
país, assim foi aplaudido o golpe de estado que destituiu o Luís Cabral do poder,
devido o desencanto da população pelo modo como governava. A sociedade
guineense, na época, estava cansada de ondas de discriminações raciais e de
classe – que aconteciam sucessivamente no país. Tudo isso gerava ódio e mais insatisfação com o governo de
Luís Almeida Cabral. A assunção do poder por parte de um filho nativo da terra,
João Bernardo Vieira, trouxe de volta a esperança tão sonhada do povo guineense.
Como se expressou M´BUNDÉ:
Assunção do poder pelo carismático combatente da
liberdade da pátria, João Bernardo Vieira, vulgo Nino Vieira, em 14 de novembro
de 1980, um acontecimento muito aplaudido não só por seus camaradas das armas,
mas igualmente pelo povo guineense, era apontada como um caminho meio andado
rumo à construção de uma sociedade mais inclusiva e justa (M´BUNDÉ, 2018, p.
74).
Timóteo Sabá
M´bundé dividiu o mesmo pensamento com AMPAGATUBÓ:
Quando Nino
Vieira fez o golpe de estado contra Luís Cabral em 1980, obteve o apoio das
Forças Armadas guineenses assim como de toda população em geral. Nino Vieira
não tinha só o apoio da ala do PAIGC guineenses, dos atores políticos, mas sim
de todo o povo, que estava esperançado em mudança substancial a favor da
Guiné-Bissau (AMPAGATUBÓ, 2008, p. 220 apud
M´BUNDÉ, 2018, p. 75).
João Bernardo Vieira começou a governar o país a partir de década
80. No início do seu mandato parecia ter vontade de levar o país ao caminho de
desenvolvimento. O povo estava mais esperançoso, o poder estava sob controle de
um nativo. Mas tudo era ilusão. O sonho do povo mais uma vez se afundava. Nino
Vieira começou a se apresentar como um monstro aos olhos da população. Sinais
de desconfiança e de insatisfação por parte dos colegas de luta começaram a
surgir. Vieira não conseguiu dar conta da responsabilidade de manter a economia
e dar continuidade aos projetos – que o primeiro presidente já havia começado.
Esqueceu o povo e manchou a sua imagem de luta por ter abandonado os
combatentes da pátria. Criou uma imagem única: de terror e do medo. Revelou-se
um presidente mais autoritário que Luís Cabral, implantando um sistema de
ditadura, talvez, muito pior do que o regime daquele que o procedeu. O mandato
de Nino Vieira pode ser distinguido por cinco características: abuso de poder,
falta de liberdade de expressão, tribalismo, torturas e assassinatos de quem
ousava levantar a voz. O caso de “17 de outubro de 1985” foi prova de tudo
isso. Como salienta Augel:
A primeira década desse segundo governo foi marcada
por tensões de ordem tribalista que, sem a liderança de Amílcar Cabral, se
mostram difíceis de serem contornadas. A 17 de novembro de 1986, as tensões se
concretizaram, provocando uma série de prisões e de execuções de líderes
políticos, e essas mortes ainda hoje pairam como uma sombra na história do
PAIGC e de seus governantes (AUGEL, 2007, p. 63).
Toda a crença do povo no desenvolvimento do país desabou. Todo o poder não foi suficiente para Vieira. Assim,
no seu governo apropriou-se de bens materiais da cidade e chegou a seduzir
mulheres dos colegas da luta. Em 1985, aconteceu o que podemos chamar de
chacina política. Nesse ano, foram assassinadas mais de três dezenas de pessoas,
na sua maioria da etnia balanta,
acusados de tentarem um golpe de estado: Esses intelectuais foram torturados
até a morte. Como podemos verificar nas palavras de Mbundé:
Dos executados, 39 (mais de 90%) eram oficiais
militares e intelectuais Balantas.
Essa violação dos direitos humanos de cunho étnico, ocorrida em 17 de outubro
de 1985, evidenciava o fracasso do processo de construção do Estado Nacional
guineense, pois estava em curso a edificação de uma máquina ditatorial
(M´BUNDÉ, 2018, p. 76-77).
João Bernardo
Vieira implantou no país um regime de ditadura, proibindo a liberdade de imprensa,
a liberdade de expressão e as manifestações políticas. As ondas de insatisfeitos
com o governo de Nino Vieira resultaram, na década de 90, na criação de vários
partidos políticos. A maioria deles era composta de figuras importantes que
saíram do próprio partido PAIGC. A
finalidade era derrubar o regime ditatorial do então presidente Vieira. Em
relação a esse episódio, observa M´bundé:
A perda do aliado ideológico e militar externo (antiga
União Soviética) em referência, com consequente falta de alternativas em termos
de alianças políticas no contexto internacional, constituiu o principal fator
que obrigou os agentes políticos ligados ao PAIGGC a aceitarem pronunciar-se a
favor do processo de transição do monopartidarismo para o multipartidarismo
assim como na adoção da economia do mercado na Guiné-Bissau (AMPAGATUBÓ, 2008,
p.169 apud. M´BUNDÉ, 2018, p. 77).
Nino Vieira não
só provocou divisões entre os diferentes grupos étnicos do país, mas,
sobretudo, criou grandes conflitos no seio do seu partido. Fundamenta ainda
M’bundé:
Além da questão étnica vivida no seio da sociedade
guineense, o golpe de estado de 1980 trouxe outro conflito interno dentro do
próprio PAIGC – a criação das alas dentro do partido: uma ala flexível, dos
jovens que tinham acabado de chegar dos estudos, com formação superior, e outra
ala militar, que na sua maioria era composta pelos velhos combatentes da
liberdade da pátria, os quais lutavam para preservar os privilégios herdados
durante o período do estado novo (após a independência). (CARVALHO, 2010, p.74 apud. M´BUNDÉ, 2018, p. 78-79).
Sendo assim, mais tarde, também, incitou uma grande divisão nas
Forças Armadas. Ansumane Mané – que tinha grande laço de amizade com Nino
Vieira desde o período no mato, foi demitido por este, acusado de ter comando a
venda de armas para rebeldes de Cassamansa. Foram criadas comissões nacionais e
internacionais para apurar o caso. Porém, nesse sentido, a Assembleia Nacional
Popular, por não ter encontrado nenhuma prova que incriminasse Mané no tráfico
de armas, sugeriu como solução daquele impasse o retorno do brigadeiro Ansumane
Mané ao posto de chefe de Forças Armadas. A recomendação da Assembleia Nacional
Popular, na pessoa do seu presidente Mala Bacai Sanhá, não surtiu efeito, isto
é, não foi atendida por Nino Vieira.
Havia já muito tempo que os rebeldes de Cassamansa lutavam pela
independência daquele pedaço de território que eles sentiam por direito lhes
pertencia. Esse pedaço de terra, no passado pertencia à Guiné Portuguesa – que
hoje é Guiné-Bissau. Com a conferência de Berlim, no ano 1885-86, Portugal concedeu
o território à França em troca do setor de Cacine que, por muito tempo,
pertencia à Guiné-Conacri.
Essa região que hoje é Cassamansa foi encontro de vários povos
vindos de diferentes partes da África, por exemplo, mandingas que vieram de
Gâmbia, Senegal e Guiné-Bissau. (M´BUNDÉ, 2018). Não está longe de ser verdade
que as Forças Armadas guineenses davam suporte aos Rebeldes de Cassamansa, para
manter a luta pelo território com certo interesse política. Como a corda sempre
arrebenta no lado mais fraco, o presidente da República, João Bernardo Vieira,
responsabilizou Ansumane Mané de estar envolvido no comércio de armas e o
afastou do cargo imediatamente. Como afirma Moema Augel:
O presidente guineense, Nino Vieira, decidiu afastar
do seu cargo o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, General Ansumane Mané,
sob a alegação de estar ele implicado no tráfico de armas em Casamansa. Esse
episódio não foi senão a ponta do iceberg
de um conflito interno mais profundo e bem mais alargado, reflexo de crescentes
insatisfações de ordem política, social e econômica que mereciam uma analise
mais extensa. Ansumane Mané, amigo íntimo e companheiro de armas do Presidente
Nino Vieira desde as lutas pela independência, tendo estado ao seu lado na
tomada do poder em 1980, conhecedor profundo dos segredos militares do país (e
das irregularidades da elite política e militar), não podia aceitar sem
contestar tais acusações. Diante da Comissão de Inquérito da Assembleia
Nacional Popular, recusou assumir essa responsabilidade, denunciando,
inclusive, o próprio Nino Vieira como mentor do comércio de armas com os
rebeldes (AUGEL, 2007, p. 67).
A problemática de venda de armas aos rebeldes de Casamansa, sem
dúvida, resultou no conflito militar de 1998-1999. Foram onze meses de uma
guerra bruta em uma cidade, na época, que contava com trezentos mil habitantes.
Quase noventa por cento dessas pessoas decidiram sair da cidade à procura de um
lugar mais seguro. E mais de dois mil e duzentos estrangeiros se viram
confrontado com as balas de canhões, sem saber onde refugiar-se e salvar suas
almas do perigo em que viviam. Enquanto que as tropas senegalesas torturavam e
humilhavam o povo desnecessariamente (AUGEL, 2007).
A cidade de Bissau ficou inundada de tanto sangue, por causa dos
canhões que caíam sem ter piedades sobre essas almas inocentes. Várias
tentativas de negociações de entidades religiosas e internacionais foram feitas
para cessar de fogo, mas Nino Vieira rejeitou quaisquer tipos de negociação com
a outra parte em conflito, chamando-os muitas vezes de rebeldes. Estes, por outro
lado, se denominavam “Combatentes da liberdade da pátria”.
Como a democracia é ainda uma coisa nova na África, o interesse
pessoal de cada um parece estar acima de tudo, o que fica demonstrado, muitas
vezes, nas posturas dos governantes. Na Guiné-Bissau, as discórdias entre as
posições vão ganhando espaços e as ideias do lado oposto nunca são respeitadas.
Esse fato, sem sombra de dúvida, foi e é grande causa dos conflitos no
continente africano. Cada galo quer cantar sozinho numa capoeira. No prefácio
do meu recente livro de contos autor faz algumas observações nesse sentido:
O título do livro - Cantar do Galo - é assaz sugestivo
pelo seu peso semântico. Recolhido do saber popular guineense, sua miríade de
ricos provérbios, a expressão “Cantar do Galo” alude ao universo do poder governativo
monopolizado, ou seja, uma sociedade guineense que por quase três décadas viveu
sob ditadura, que aceita que só pode haver um chefe supremo, crente de que
“dois galos não cantam na mesma capoeira”. Essa idolatria do
poder é a justificação das exonerações e golpes de que têm sido vítimas
sucessivos governos e governantes na Guiné. A (pseudo) cultura do “galo” é tão
arraigada em nossa gente que, até hoje, não poucos guineenses relembram com
nostalgia os tempos do monopartidarismo, em que um único chefe supremo da nação
cantava (mandava e desmandava) e o restante no galinheiro-sociedade só fazia
coro. Outrossim, várias mentes guineenses advogam a substituição do
semipresidencialismo pelo presidencialismo, porque este seria mais condizente
com o espírito totalitário e monopolista dos guineenses no que ao poder
concerne. Todavia, essa falácia esquece que a história guineense já
ofereceu-nos duas vezes esse foro e pudemos ver com sangue e tortura (e outras
belezas da ditadura) que a monoliderança não só é resultado de uma ideologia
totalitária, mas é igual e simultaneamente alameda do totalitarismo. Essa chaga
político-cultural da comunidade (BANORI, 2017, p. 14-15, grifos nossos).
Da mesma maneira, podemos observar esse espírito egoísta no capítulo
A Eternidade, do livro Eterna Paixão, de Abdulai Sila. Vemos
que narrador se preocupa com esse ódio semeado na alma dos guineenses ao longo
dos anos, gerando sempre divergências que causam mortes. Sila destaca essas
desavenças internas existentes na figura de dois animais domésticos da mesma
espécie, metaforizando os comportamentos de discórdia entre os políticos
guineenses pela luta constante de poder; primeiro, no seio do partido PAIGC;
posteriormente, alastrando-se no cenário da política guineense de modo geral. É
o que notamos no trecho do autor transcrito a seguir:
De um local não muito
distante, provavelmente da estrada, vinham discursos violentos de dois cães que
pareciam debater um tema muito polémico, sobre o qual tudo indicava não poder
haver unamidade. A julgar
pelo tom, um deles parecia estar mais convicto da justeza dos seus pontos de
vista do que o outro que, na incapacidade de encontrar argumentos adequados,
discursava com maior agressividade, exaltando-se cada vez mais (SILA, 2002,
p.297, grifos nossos).
João Bernardo Vieira, quando deu o golpe de estado contra Luís
Cabral, em 1980, plantou uma semente de divergências e descontentemento no seio
do partido. Em 1985, quando ele mesmo deu ordem para fuzilar os companheiros da
luta, na sua maioria da etnia balanta,
acusados de uma intentona ao golpe de estado, gerou ainda inúmeros descontentes
com o partido, assim como no país. Esse conjunto de insatisfeitos com seu
regime resultou no conflito de 7 de junho, que apenas foi dado como desculpa
para o tráfico de armas aos rebeldes de Cassamansa. Durante todo o conflito,
grande parte dos militares era de etnia balanta;
também jovens e ex-combatentes da liberdade da pátria de diferentes grupos
etnicos aderiram o movimento “Junta Militar”, liderado pelo Ansumane Mané,
demonstrando, assim, o grau de insatisfação do regime Vieira.
A guerra denominada “7 de junho” começou numa madrugada fria no
bairro de Brá, uma localidade bem próxima do aeroporto internacional Osvaldo
Vieira. A opinião pública na época espalhava rumores de que o presidente
pretendia viajar para Europa na mesma madrugada. No entanto, desconfiando de um
ataque planejado contra si, este enviou escoltas presidenciais, orientadas pelo
seu chefe de confiança Rachid Sayeg, para sondar o caminho. Sayeg, grande
militar, foi surpreendido por rebeldes que ali já estavam de vigília a
madrugada inteira, esperando o presidente. Nessa madrugada, este homem de
confiança morreu junto com um pequeno grupo de policiais, que foram ao mesmo
serviço. Alguns rumores também contam que Ansumane fugiu da ordem de prisão
decretada pelo presidente da república.
A guerra de 7 de junho se alastrou e ultrapassou fronteiras. A república
da Guiné-Conacri – que fica situada no sul do país, decidiu aderir à guerra por
intermédio de um acordo bilateral assinado no caso de invasão territorial. Nas
primeiras horas do conflito, enviaram logo militares para defender o presidente
João Bernardo Vieira. Por outro lado houve também a participação de tropas
senegalesas, em grande número, apoiando de unhas e dentes o Presidente Vieira,
através de um acordo secreto entre os dois presidentes. A participação desses
dois países ocasionou maior adesão dos jovens e dos ex-combatentes da pátria ao
movimento dos rebeldes, lutando com fervor em defesa de uma terra que custou um
mar de sangue no passado. (M´BUNDÉ, 2018).
Havia várias formas de negociação realizadas por identidades nacionais
e internacionais. Até havia sinais de cessar fogo prolongado entre as duas
partes em conflito. Como salientou M´bundé:
Após alguns “incidentes militares” as duas partes
beligerantes voltaram definitivamente às hostilidades, tendo a Junta Militar finalmente
ocupado a capital Bissau, em 7 de maio de 1999. Desse modo foi derrubado o
regime que durava quase dois decênios, tendo sido o presidente João Bernardo
Vieira exilado em Portugal. (M´BUNDÉ, 2018, p. 84).
Onze meses de guerra civil num território muito pequeno como a sua
população não foram suficientes para os guineenses, principalmente os
governantes, refletirem sobre o progresso e pela estabilidade política e
econômica desse recente país saído de uma guerra sangrenta.
Em 2003, Koumba Yalá, eleito nas urnas para presidente da República
com uma enorme distância dos seus adversários, foi deposto pelos militares
liderados por Veríssimo Seabra Correia.Yalá não completou um mandato de cinco anos,
segundo a constituição da república guineense. Ficou no poder apenas por três
anos, com perturbações políticas e nepotismo. Infelizmente, a democracia mais
uma vez não se fez valer no país.
A deposição de Yalá talvez se deva por sua divergência com o Brigadeiro
Ansumane Mané – que foi encontrado morto em Quinhamel, setor de Biombo. Alguns
críticos afirmam que a deposição aconteceu por contradições políticas e sociais
traçadas por Koumba com os militares, além dos grandes problemas sociais
herdados que Yalá não conseguiu resolver. Há que se lembrar que foi no mandato
de KoumbaYalá que, pela primeira vez na história de educação, os professores
não receberam seus salários por onze meses. Também pode-se salientar que a sua
destituição se deveu ao nepotismo durante todo seu mandato. Vários ministérios,
secretarias de estado, diretorias e cargos chaves do governo, na sua maioria,
eram ocupados por balantas e amigos
do partido de Koumba Yalá.
Tudo seguia esse ritmo, quando, em 2004, realizaram-se eleições
legislativas no país. O PAIGC, na figura de Carlos Gomes Júnior, saiu vencedor.
A eleição deu uma dose de vacina maior de credibilidade no país. Porém, no
mesmo ano, as mortes de General Veríssimo Correia Seabra e de Domingos Barros
trouxeram de novo incerteza no seio da política guineense e desconfiança por
parte do povo. A opinião pública levantou a possibilidade de que a causa da
morte dos dois grandes militares, de alta envergadura, se devia à destituição
do poder do ex-presidente Koumba Yalá, em 2003.
Como vimos antes, o PAIGC foi criado com objetivo de lutar contra o
regime ditatorial português. Mas, desde a sua criação, teve sempre divergências
e descontentes no partido:
No PAIGC, uma ala descontente com o desenrolar dos
acontecimentos políticos nas estruturas do partido e no governo começou a
mobilizar-se com vistas ao regresso de João Bernardo Vieira ao país, exilado em
Portugal desde a sua destituição, em 1999. O cenário evidenciava crise e
fragmentação do PAIGC, TENDO Carlos Gomes Júnior, que acumulava as funções de
primeiro-ministro e presidente desta agremiação, manifestado publicamente
desfavorável ao regresso do ex-presidente, cuja segurança o governo por ele
liderado não garantiria. Enquanto isso, os militares, especialmente o chefe das
Forças Armadas, foram curiosamente a favor do regresso do ex-presidente
(M´BUNDÉ, 2018, p.88).
O descontentamento de uma ala de PAIGC, liderado pelo Aristides
Gomes, uma das grandes figuras de destaque do partido, manifestou-se a favor do
regresso do ex-presidente e desempenhou grande papel para que Nino Vieira
voltasse, ciente de que Vieira era a única força capaz de derrubar Carlos Gomes
Júnior – que já se apresentava como um ídolo no partido. O povo também
desiludido com a política e má administração do país, manifestou grande
interesse na volta de João Bernardo Vieira ao país. A voz da rua, a sua
maioria, dizia: mindjor na Ninu...
(Nino era o melhor de todos)
Com ajuda máxima de Aristides Gomes e algumas figuras militares
destacadas, como, por exemplo, José Américo Bubo Na Tchuto e Tagme Na Waie,
houve grande interesse na volta do Nino. Ninguém sabe a razão desse interesse.
Apesar de esse último ter odiado o presidente Nino, por causa da tortura do
“caso de 17 de outubro”. O governo, na pessoa do seu chefe, Carlos Gomes
Júnior, não liberou o aeroporto Internacional, único do país para pouso do voo
particular de João Bernardo Vieira. Sendo assim, o chefe da marinha, Bubo Na
Tchuto, acima referido, autorizou a delegação de Nino Vieira a aterrar em um
Estádio de futebol (24 de setembro).
Em 2005, na corrida da eleição presidencial, João Bernardo Vieira,
mesmo se apresentando como um candidato independente, sem nenhum apoio
partidário, conseguiu força do povo nas urnas, saindo como vencedor apertado
numa segunda volta com Malam Bacai Sanhá. Nino Vieira não levou muito tempo num
decreto presidencial exonerando Carlos Gomes Júnior do seu cargo.
Abriu-se, assim, um ciclo de conflito
político-institucional entre o Presidente da República e o governo liderado por
Carlos Gomes Júnior, culminando com a exoneração do primeiro-ministro. Assim,
após, consultas aos partidos de oposição e militares, o presidente fez uso das
suas prerrogativas reservadas pela Constituição da República, emitindo o
decreto presidencial que destituiu o primeiro-ministro. (M´BUNDÉ, 2018, p. 90).
Em 2009, o ex-presidente foi assassinado brutalmente na sua
residência em Chão de Papel Varela. A razão de tal barbaridade justifica-se na
morte de Tagme na Waei, chefe de Forças Armadas, algumas horas antes. No país,
até os dias de hoje, ninguém foi responsabilizado por esses crimes. Vale
mencionarmos ainda os assassinatos do poeta Hélder Proença[59] e de
Baciro Dabó[60],
que aconteceram no mesmo ano (M´BUNDÉ, 2018).
A maioria dos assassinatos, tanto dos civis, quanto dos políticos, nunca
teve seus autores descobertos. O que compromete muito a existência da lei, da
democracia e o direito de ir e vir no país. A história da Guiné-Bissau é
narrada sempre por relatos de divergências, intrigas, golpes de estado, que
culminaram com derramamento de sangue. Nunca o diálogo foi pautado como caminho
para soluções de problemas políticos.
Em 2012, Carlos Gomes Júnior, um dos suspeitos pela morte de Nino
Vieira e Tagme Na Waei, sofreu um atentado pelos militares, liderado pelo
General António Indjai. O golpe foi comemorado por grande parte da população
guineense, adeptos do ex-presidente João Bernardo Vieira.
Atualmente, a Guiné-Bissau vive seus momentos marcados pela grande
incerteza quanto às metas lançadas, visando o progresso e a estabilidade
política e econômica do país. Existe um clima de ódio político, capaz de
instigar o país a futuras guerras. O povo só sabe ir às urnas, mas não sabe em
quem confiar o destino do seu amanhã...
De uma forma ou de outra, sucessivos golpes de estado, desde a morte
de Amílcar Cabral, que Peter Mendy (2012) considera o primeiro golpe de estado,
influenciaram bastante o desenvolvimento das letras e da educação desse jovem
país. Em 1980, após o golpe com a destituição do poder de Luís Cabral em favor
de Nino Vieira e a execução dos intelectuais balantas, acusados de uma intentona de golpe de estado, grande
parte dos intelectuais guineenses partiram para o exterior, descrentes do
processo de desenvolvimento da Guiné-Bissau. A Guerra civil de 1998-1999 foi
outro embaraço de desesperança desse povo. Essa guerra destruiu o país
completamente e o que restou por diante é um “desafio face aos escombros”,
deixados pela crise, como aponta Moema Parente Augel.
O povo guineense continua acreditando e sonhando com um futuro
melhor, ainda que viva muitas noites de Insônia.
CAPITULO IV
AFIRMAÇÃO DA LITERATURA GUINEENSE: FORÇA, DENÚNCIA E FRUSTRAÇÃO
4.
Filinto de Barros: a ilusão da independência em kikia Matcho
Olha,
olha, se Cabral ressuscitasse e visse o que está a acontecer com os seus
combatentes e flores da Luta, teria
fugido ou suicidava-se desta vez para sempre [...] (BARROS, 1997, p.64)
Filinto de Barros nasceu a 28
de dezembro de 1942, na cidade de Bissau. Foi um dos dirigentes fiéis do
partido PAIGC, desde 1963, e um dos grandes intelectuais, tendo ocupado vários
cargos políticos, sobretudo ministérios: o de informação e cultura, o de recursos
naturais e indústrias, o de justiça, o das finanças. Foi também embaixador da
Guiné-Bissau em Portugal. Em vida, o autor publicou vários ensaios de ordem política.
(AUGEL, 1998, 361). Faleceu em 2011, em Portugal, vítima de uma doença
prolongada.
Ao lermos as obras de
escritores guineenses, tanto no campo prosa, quanto no da poesia, percebemos quanto
estão desencantados em relação ao processo político e económico do país. Vinte
anos separam o ano da independência e o ano em que foi publicado o livro Kikia Matcho[61],
de Filinto de Barros. O livro foi escrito logo após a independência,
apresentado o país independente, mas sem expectativas de um desenvolvimento
para os seus filhos, principalmente a classe mais jovem. O que podemos perceber
ao longo da obra é a desilusão dos personagens com a situação social; desse
modo, como única solução, optam pela imigração.
A narrativa de Filinto de
Barros é rica, pois traz os problemas do passado e liga-os ao presente. A
construção do espaço e do enrendo, assim como a linguagem fazem do texto um
grito preciso e necessário. Apesar de a obra ser considerada um romance
histórico, segundo os críticos literários, o autor, ao ser questionado em
relação ao seu romance, afirma que: “Kikia Matcho é um pequeno exercício de
ficção. Nem história, nem sociologia, nem etnologia, nem política, tão somente
uma abordagem que se pretende dinâmica do processo de síntese sócio-cultural de
um povo” (BARROS, 1997, p.7).
Inocência Matta, numa entrevista concedida à Revista Crioula[62],
afirma que toda obra nasce de um sentimento individual que a torna coletiva.
Ainda que os poetas apresentassem uma literatura que tinha expressão
individual, seus discursos se estendiam para um espaço coletivo. A expressão poética
naqueles textos era de cunho revolucionário, nativista heroicisante. Contudo,
mais tarde, os autores guineenses passaram a criticar os rumos incertos que o
país seguia. Nesse sentido, continua-se a dar voz àqueles que não costumam ser
ouvidos.
A ficção torna-se uma dos mais destacados recursos para a defesa da
cidadania. Filinto de Barros viveu a luta armada do país. Além disso, era um
dos membros ativos em todo processo da mobilização, esclarecendo ao povo as
ideologias de Cabral em relação ao combante às opressões coloniais vividas por
longos séculos. No livro Kikia Matcho, Filinto de Barros questiona o
abandono e o desprezo dos combatentes da liberdade da pátria, que sonhavam e
lutaram com um país diferente daquele no qual viveram. Assim assevera Moema Augel:
O
velho N´Dingue morreu sem ver realizada a promessa feita aos antigos
combatentes de melhor pensão, de integração na sociedade; seus amigos e
camaradas também esperaram em vão, tendo como último desapontamento a ausência
dos “ comandantes” no enterro de N´Dingue. Sem dinheiro, pois a magra pensão de
Combatente não chegava para comprar um saco de arroz, sem trabalho, sem
honrarias, sem reconhecimento de espécie alguma pelo que fizeram pela pátria
durante as lutas de libertação, esses velhos guerreiros, com suas medalhas e
suas recordações, são a imagem mesmo da decadência e da desolação. Vivem na
periferia da cidade, passam os dias em cafés a lembrarem os gloriosos anos dea
LUTA ( AUGEL, 1998, 362).
A obra, que conta com cento e sessenta e três páginas, é dividida em
capítulos sem títulos escritos em português com muitas interferências na língua
crioula. Ao final, apresenta um glossário enorme de termos usados em crioulo
traduzidos em português. Em Kikia macho,
Filinto de Barros cria um espaço urbano, com personagens de diferentes níveis
sociais e classes, todos eles convivendo no mesmo espaço, seja em Bissau onde
começa a narrativa, seja em Lisboa onde a narrativa se desenrola com mais
afinco, revelando a vida difícil da imigração.
A personagem da Joana, formada como enfermeira, precisou imigrar
para exterior, a procura de uma vida melhor. Provavelmente, representa milhões
de jovens guineenses, com formação superior, que são obrigados a partir para a
Europa em busca de melhores condições de vida. Apesar de Joana ter a formação
qualificada para exercer a sua profissão, encontra-se em um estado desumano,
morando numa casa em demolição Ao ser perguntada por quanto tempo vai ficar na
situação de miséria que vivia, ela responde:
– Para te dizer a verdade, não sei.
Possivelmente até arranjar uma casa do Social. Se mudo para um quarto em Lisboa
perco todas as possibilidades de vir a ter uma casa como vocês. Não é o que
todos fazem? Sei que isto é muito duro, sobretudo no inverno, mas já foram anos
de sacrifício e não se pode perdê-los dum momento para o outro (BARROS, 1997, p.88).
O romance de Filinto de Barros lembra uma espada de dois fios. Ao
mesmo tempo em que faz denúncias da vida dura na imigração, revelada na
personagem Joana, também questiona a vida de um recém-formado no país. Trata-se
da Benaf, sobrinho de N´Dingue, que, mal chegou a Guiné-Bissau, deparou-se com
a morte do tio e foi obrigado a confrontar-se com as realidades culturais do
país, sendo obrigado a participar de cerimônias rituais de toca tchur[63].
Kikia Matcho, em língua portuguesa significa coruja. Essa ave, na cultura
tradicional guineense, tem por missão transportar notícias do mal. Sua aparição
é entendida sempre como uma mufunesa,
azar, no seio da família. Como podemos ver no romance, o animal apareceu trazendo
uma má notícia para Papai em Bissau, Joana em Lisboa e para o próprio Benaf,
que acabara de chegar à cidade de Bissau. A morte de Ndingui e o seu velório
são os pontos principais da trama romanesca e geram grandes conflitos entre os
personagens, tanto os da Guiné-Bissau, quanto os de Portugal. Por intermédio
desses personagens, o autor faz notar no espaço e no tempo o desencanto do pós-independência.
Três pontos, a meu ver, destacam-se na obra, fazendo-a uma referência
obrigatória para debruçar-se sobre a literatura bissau-guineense: as denúncias
da vida dos combatentes da liberdade da pátria, o retrato da geração pós-independência,
que apostou na imigração para melhorar a condição de vida e a solidariedade da
mana Tchabú com as vidas solidárias dos combatentes.
A promessa feita aos antigos combatentes durante a luta de
libertação nacional, infelizmente não foi cumprida. A trama do romance já
aponta, nas suas primeiras páginas, esse desencanto, assim como a
desvalorização dos combatentes. Essa desvalorização é destacada na morte de N´Dingue,
cujo nome significa (estou sozinho). N´Dingue era um combatente abandonado
durante a vida: "falaram-lhe do tio,
quando esteve de visita à terra natal, nas tabancas de Safim. Ali soube,
através dos parentes da mãe, da vida solitária que o tio levava, sujo, sempre a
cair de bêbado" (BARROS, 1997, p. 12). Após a sua morte e durante o
funeral, nenhum dos seus colegas sequer participou. Esse abandono não é somente
observado na figura pública do malogrado. Estende-se muito além, sendo visível
percebê-lo nos próprios familiares do N´Dingue. Joana, por exemplo, que vivia
longe da família, era obrigada a criar o filho que não planejou ter sozinha sem
ajuda de nenhum parente. N´Dingue, como muitos dos seus companheiros de arma,
viveu dias difíceis, frustrado e rejeitado pela sociedade, tendo optado a
refugiar-se no álcool, como um único caminho para aliviar o sofrimento e libertar-se
da solidão.
A leitura dessa obra nos convida a repensar os problemas sociopolíticos
do país. O personagem Papai, amigo do falecido N´Dingue, é responsabilizado
para prosseguir a cerimônia, porém, não sabe especificamente que cerimônia
realizar. Por outro lado, ele fica desiludido com a ausência dos companheiros
combatentes no funeral. Na Guiné-Bissau, a rádio é um dos meios de comunicação
mais usados para atingir a maioria da população. Se esse meio ainda é frequentemente
usado na atualidade, na Guiné-Bissau pós-independente era indispensável. Foi
através de uma notícia no rádio, emitida pelo comité do Partido do setor
Autónimo da cidade de Bissau, que Benaf soube da morte do tio N´Dingue.
Triste e incomodado com a notícia, precisa, contudo, acostumar-se:
"- Esses são os que preenchem a maior parte do tempo de antena. Mesmo com
a morte vais acabar por te habituar" (BARROS, 1997, 11). Benaf, sobrinho
de N´Dingue por parte da mãe, tinha acabado de chegar da Europa, cheio de
sonhos e ambições na construção de um novo país. A morte do tio pegou-o, porém,
de surpresa: sem emprego, sobretudo, tinha que confrontar-se com as realidades
tradicionais, de acordo com os rituais fúnebres da sua etnia pepel. O novo
estudante, além das preocupações financeiras para participar da cerimônia de toca tchur, teria que confrontar-se
também com as realidades que o poder público lhe reservava. Apesar de se encontrar
desempregado, sem poder participar financeiramente nos rituais de tchur, era obrigado a comparecer no dia
da cerimônia, suportando longas noites de picadas de mosquitos. Benaf estava
bem ciente dos problemas sociais da Guiné-Bissau. Joana e o Benaf, na verdade,
representam a geração logo após da independência, imersa nos muitos dilemas do dia
a dia na Guiné-Bissau.
Filinto de Barros, sabiamente e com sua própria experiência, procura
estender a sua crítica ao sistema político guineense, trazendo aspectos como a
bajulação para se conseguir um cargo no aparelho de Estado. O texto pretende
apontar aos responsáveis pelos desencantos do pós-independência, escondendo-se
atrás da ficção. Podemos perceber que a volta de Benaf ao país de origem
carrega a imagem de decepção que a maioria dos jovens com cursos superiores
vive em sistema burocrático e corrupto como o da Guiné-Bissau. Ao mesmo tempo, a
imigração de Joana para Europa revela a ilusão criada pelos jovens dessa
geração. Joana é a representação dessa
geração, que escolhe a imigração para deixar para trás as dificuldades de vida
do país. Como bem analisou Moema Augel:
Do outro lado do oceano vive a Joana, a sobrinha
emigrante, que um dia havia saído de Bissau à procura de uma vida melhor. Mas
já não alimenta nenhuma ilusão, sabendo que não passaria jamais de uma
estrangeira e não chegaria nunca a um nível social digno; quando muito
conseguiria deixar o pardieiro onde
morava, um cômodo miserável numa casa em demolição, para alcançar uma casa
social (AUGEL, 1998, p. 366-367).
Em Lisboa, Joana, mesmo com a sua formação superior em enfermagem,
não passaria de mais uma a enfrentar grandes dificuldades de sobrevivência. Numa
casa abandonada, como muitos dos emigrantes africanos, aguarda uma casa nova do
governo português. Por outro lado, é necessário destacarmos as descrições tanto
de ordem social quanto de ordem racial. O romance apresenta o jovem Mário, com
grande talento futebolístico, mas que acaba por refugiar-se nos trabalhos
pesados de obras, como forma de ganhar o seu pão de cada dia. Apesar da distância da terra natal, a
enfermeira não abriu mão de tradições dos seus ancestrais, educando o seu filho
Pedrinho nos mesmos valores culturais. O Menino Pedrinho, por sua vez, apesar
de ter nascido em Lisboa, sofre discriminação na escola por ser preto. E a própria
Joana não se livrou dessa realidade preconceituosa e dos estereótipos da sociedade
portuguesa:
Durante anos, Joana sentiu-se ferida, humilhada ,
quando ao longo da sua caminhada diária, os brancos evitaram sentar- se ao lado
dela enquanto houvesse outro lugar vago. O racismo, sobretudo o desprezo,
fazia-a ficar tensa. Queria ser como eles, dizer-lhes que ela era igual, que
era também portiguesa como eles, que estava disposta a cantar os Heróis do mar,
enfim, queria que Portugal fosse aquilo que sempre lhe ensinaram na escola
primaria: a mãe Pátria (BARROS, 1997, p. 141).
A barraca da mana Tchabú, conhecida como 'tia burin mudju', é uma grande referência de solidariedade na obra
em tese. Um espaço que servia de venda de bebidas alcoólicas e de reencontro dos
combatentes da liberdade da pátria para aliviar seus sofrimentos. Mana Tchabú
entendia-se muito bem com todos os ex-combatentes, chegando a dizer que
conhecia problemas de cada um, dando-lhes até créditos. Nessa relação íntima
com seus clientes, na maioria os antigos combatentes da liberdade da pátria, Tchabú
criou um grande vínculo com todos, tornando-se, na maioria dos casos, a
conselheira da humilhação brutal na qual viviam os próprios combatentes. Mana
Tchabú é uma guerreira, é uma representante da situação atual da maioria das
mulheres guineenses, que não perdem tempo diante da crise econômica para ajudar
os maridos em casa. A imagem da barraca, no romance de Filinto, a princípio foi
apresentanda como um lugar de se ganhar a vida e ao mesmo tempo um lugar de
solidaridade, onde os combatentes se desconectam com seus sofrimentos
encurralados.
A figura da mana Tchabú nos mostra o papel importante que as
mulheres desempenham no seio da família guineense. Esssa personagem permite-nos
imaginar Filinto de Barros inteiramente envolvido na realidade política e cultural
guineense. Também é real a sua posição e preocupação diante do processo de construção
de uma nação que os donos de poder levaram à estagnação. Apesar de ser uma obra
de estreia, Kikia matcho revela consistência literária e
um conhecimento profundo dos problemas socioculturais do chão guineense.
Assim, a obra não retrata somente momentos vividos após alguns anos
de independência. Mais do que isso, o romance demonstra o desejo de se mudar o
jogo, ou seja, de dar visibilidade aos caminhos incertos. É relevante também apontá-lo
como um elo entre o passado e o presente. É nessa linha de pensamento que
podemos compreender melhor Kikia macho,
uma obra que, do início ao fim, inquieta os leitores. A morte de Ndingue é um mistério. Mistério é
também a cerimônia ritual que devia ter sido feita, mas que ninguém soube realizar,
para descanso da alma de Ndingue no outro mundo. A trajetória de Benaf e da sua
prima Joana também constituem-se como pontos chaves para reflexão do romance.
Em suma, a obra nos oferece um testemunho vivo e cuidadoso do país anos após a
independência.
4.1.Tony Tcheka: a imaginação da pátria em Noites de insônia na terra
adormecida.
Lamento imenso se ofendo alguém, mas acho
mesmo que adormecimento não é uma figura de estilo. É real. Isto é mau, este
país precisa viver. Precisa de se reencontrar.[64]
Em comparação com
muitos escritores guineenses, Tony Tcheka já é bem conhecido e estudado em
trabalhos acadêmicos de diversas instituições brasileiras. Contudo, ainda é
pouco conhecido no exterior ou mesmo na comunidade dos países de língua
portuguesa.
António Lopes Soares
Júnior, pseudônimo de Tony Tcheka, nasceu aos 23 de dezembro de 1951, em Santa
Luzia, um dos bairros de Bissau, filho de António Soares Lopes e de Lídia
Barbosa. É jornalista, escritor e consultor internacional (media e
comunicação), ensaísta e analista social e político. Formou-se pelo IIJB, com
especialização em Políticas Editorias e Formação de Formadores. Fez ainda
cursos de Rádio, Televisão e Imprensa Escrita, no CENJOR-Lisboa. É um dos
poucos escritores guineenses que trabalha mais afincadamente no desenvolvimento
da cultura e da liberdade no exercício do jornalismo do país. É, portanto, uma
das grandes referências nessa área em sua terra[65].
De sua obra, destacam-se
os títulos, “Noites de Insónia na Terra Adormecida” (Bissau, 1996); Guiné Sabura que Dói (lançado no Brasil em 2008, na Festa Literária
Internacional de Porto das Galinhas (FLIPORTO) e em Lisboa (2009); Desesperança no Chão de Medo e Dor Lisboa
- Mala Posta/2016/. Os Media na Guiné-Bissau Faculdade de Direito em Lisboa, 2016),
um largo estudo sobre os meios de comunicação no país que percorre o período de
1879 a 2013, a que se juntam outros trabalhos na mesma área, feitos
anteriormente pelo autor. O poeta tem nas gavetas dois livros de ficção - “Quando
cravos vermelhos cruzaram o geba” e
“Bissau-Velho e Sonhos Capturados” –, além de um de poesia, Sol Noti (anoiteceu-se).
Percebemos a grande
paixão de Tcheka pela literatura e a cultura do seu país. Muito cedo o escritor
se empenhou na pesquisa, recolha e divulgação das produções literárias guineenses
na impresa local. Além de tudo isso, tem participação tanto individual quanto
coletiva nas edições das obras poéticas publicadas no seu país: da participação
coletiva, citamos as seguintes coletâneas: Mantenhas
para quem Luta (Bissau, 1977), na qual foi também co-prefaciador; Momentos Primeiros de Construção (Bissau,1978);
“Poesia Moderna Guineense”
(Lisboa-1990); Eco do Pranto (Bissau
e Lisboa-1992); Barkafon di Poesia na Kriol (Bissau-1997). Em 2010, em Lisboa,
o poeta apoiou a iniciativa de um grupo de jovens guineenses na edição da
coletânea Traços dos tempos, que prefaciou. É membro fundador da Cooperativa Corubal, vocacionada para a produção,
divulgação cultural e científica.
Muitos trabalhos seus foram publicados no
estrangeiro em diferentes obras: Anthologie
Littéraire de l´Afrique de l´Ouest
- Paris “No Ritmo dos Tantãs”-
Brasil; “Na Liberdade” (Lisboa); “Rumos dos Ventos” (Fundão-Portugal);
“Anna” (Alemanha/Livro e DVD); Poesia da Guiné-Bissau (Grã-Bretanha).
“Portuguesa-Contra Antologia” (poetas de língua portuguesa /Livro e DVD). “VERSshuggel – Contrabando de Versos –
Poesia de expressão alemã e portuguesa”. Antologia Mundial (100 poetas do
mundo). Figura no “Dicionário Temático da Lusofonia” (Lisboa) e no “Além-Mar”
(Lisboa). Atualmente, Tony Tcheka é presidente de Associação dos escritores da
Guiné-Bissau, do qual foi membro fundador.
Escolhi aqui analisar
com atenção o primeiro dos três livros de poemas de Tony Tcheka pelo seu
pioneirismo, deixando os demais para uma outra oportunidade. Trata-se de um
escritor que, apesar de ter vivido bastante tempo longe da Guiné-Bissau,
conhece bem as realidades do país. O livro foi o primeiro a ser publicado por ele,
numa iniciativa da INEP. Hoje, sem nenhuma dúvida, o autor é considerado uma
das mais importantes vozes da lírica guineense. Ao lermos seus poemas, somos
convidados a solidarizar-nos com a dor do poeta, já que seu texto dialoga
intensamente com a realidade social guineense. Como bem apontou Augel: “Mas o
poeta quer sacudir o desalento e retornar a caminhada numa postura mais
construtiva e operosa, motivado pelos companheiros, unidos numa mesma
comunidade solidária” (AUGEL, 2007, p. 255).
A cada página do livro,
somos levados a imaginar a dor do sujeito poético, o medo e as incertezas do
tempo em que se viu afundar. A obra questiona o passado para entender o
presente e, às vezes, clama o próprio presente para entender o amanhã, como
destacam os versos do “Pensar menino”: “estava/entre sono e sonho/escondido no
meu pensamento” (TCHEKA, 1996, p.113).
Noites de Insônia na terra adormecida
revela a maturidade enriquecedora do autor com o emprego das palavras,
convidando-nos a repetidas leituras em torno dos problemas sociais guineenses.
A obra mergulha na realidade e estabelece uma ponte entre a imaginação e a
sociedade que se constrói por meio das noites de insônia. Essas noites acendem o fogo, queimam com as
verdades ditas nas horas exatas, afastam o sonho, a dor, a esperança e trazem o
desencanto a quem busca sossego, mas se encontra mergulhado em mal dormidas
noites .
A obra, plena de
imagens, é um tributo ao fazer poético, mas é também um desejo de evidenciar a
dor do povo guineense. Na epígrafe do livro Noites
de Insônia na terra adormecida, Tcheka traz versos de Grabato Dias: Todo verso acaba num ponto de interrogação/
toda a poesia é um olhar para fora/através da lente da própria natureza (TCHEKA,
1996, p. 6). É nos versos desse poeta
moçambicano que residem as minhas próprias interrogações a respeito da obra.
Cada um deles propõe uma interrogação. Ao ler muitas dessas passagens, sentimo-nos
perdidos andando pelas tabancas, aldeias do nosso país, pois os versos vão e
voltam tomando seus lugares de origem.
Afinal, nem sempre os
sentimentos poéticos podem ser medidos nas palavras transcritas em uma folha de
papel. Muito do que transmite permanece indizível. Não esqueçamos que é próprio
do poeta o impalpável. Por isso, ele faz da palavra a forma concreta para
expressá-la e cicatrizar suas feridas. Nos comentários de Moema Augel, que se
responsabilizou pelo prefácio do livro, percebo, por vezes, a alma do poeta:
sua preocupação com a forma e com a linguagem, sua grande criatividade, sua
ousadia na expressão poética (AUGEL, 1996, p. 12).
Existe uma segurança
nessa voz poética, que canta, desencanta, mas parece esperar pacientemente o futuro.
Existe anseio de liberdade e esperança no amanhã – esse amanhã repetido
dezesseis vezes no livro. Um amanhã que é visto como distante, em contraste com
o sofrimento das crianças, que cada vez mais afeta as noites do sujeito
poético:
Sofro de raquitismo
por comer com os olhos
enquanto na garganta
desfilam bolas de salivas( TCHEKA, 1996, p. 117).
Esse profundo
sentimento pelo sofrimento das crianças destaca-se na obra como título de um
bloco de poemas, em que a dor se confunde com os maus-tratos das crianças da
sua terra e do continente africano. Nas palavras de Augel, patenteia-se essa
força poética: “António Soares Lopes Júnior é talvez o escritor que mais se
preocupa com o social entre os poetas guineenses. Nomeia sem subterfúgio, mas
numa linguagem refinada e metafórica, os males sociais que infelizmente
caracterizam a vida quotidiana do país” (AUGEL, 1996, p. 12-13).
O livro Noites de Insônia na terra adormecida conta ao todo com 71 poemas, divididos em cinco seções; entre elas:
kantu kriol; Poemar; Sonho caravela; Poesia brava e Canto menino. Cada uma dessas seções é aberta com uma epígrafe de
um dos versos da própria seção. Seguimos a ordem cronológica das seções, para
análise dos poemas, embora não pretendamos comentar toda a obra.
Na seção “Kantu kriol”,
sentimos que a poesia está em toda alma! A poesia é a luz e possui o poder de
libertar e iluminar os caminhos, e convidamo-nos a desfazer as incertezas no
meio de descontentamento. Kantu kriol
– que significa em língua portuguesa – canto em crioulo – é um conjunto de dez
poemas todos em crioulo, sem nenhuma tradução. A tradução, às vezes, é ingrata.
Esses cantos em crioulo podem dificultar a leitura e compreensão dos textos. As
figuras de linguagem são tipicamente guineenses. Além disso, a expressão
poética desse bloco é escrita em crioulo fundo, desconhecido para muitos novos
falantes do crioulo: Vejamos, por exemplo, o poema intitulado “Balur di kebur”[66],
que transcrevemos abaixo:
Radi
di
labradur
iabri
bariga
renkiadu
diblaña
i badjudikansera
diomi na iermon
I ton di kin ku ka amonton (
TCHEKA, 1996, p. 19).
O sujeito poético faz alusão
ao valor da colheita, destacando a cultura de lavrar a terra e de colher como
uma prática de canseira, isto é, penosa. Contudo, há uma valorização nessa
prática - que é a hora de colher (não é para os preguiçosos: i ton di kin ku ka
amonton). O poeta firma as suas palavras e busca reconstituir a imagem e
dificuldades dos homens dos campos (i badju di kansera).
No mesmo tom, o sujeito
poético retoma o tema de dificuldades no poema “noba di prasa”, novidade da cidade. Destacam-se aí imensas
dificuldades pelas quais passam as pessoas que vivem no interior: optam pela
imigração para cidade, mas a opção traz uma vida bem difícil:
Kuma
Sabi i li na prasa
Kasabi i na tabanka
Kuma
Kanta di matu
I tchur riba di kansera (TCHEKA,
1996, p. 21).
O poema indica, em
vários momentos, as imensas dificuldades da vida nas zonas rurais, e a ilusão que
as pessoas criaram, ousando uma mudança radical para buscar a melhor condição
de vida na “Praça”. Em diversas passagens do kantu kriol, encontramos as dificuldades apresentadas ora no corpo
de uma jovem ora no corpo de uma mulher. Tomemos, por exemplo, o poema: tchur di Mpinte[67]:
Mpinte tchora
Larma sekal na rostu
Mafe ka tem
Sita ka mansi [...] (TCHEKA, 1996, p.
23).
Pode-se afirmar que,
apesar de ter nascido na cidade de Bissau, o poeta parece conhecer bem a
realidade social do interior do país – e parece apontar, nos poemas, os
diversos problemas que atingem os moradores do campo. Da mesma forma que
podemos perceber, ao longo dos versos, o seu questionamento em relação ao
direito de vida do povo do campo. Tchur,
que significa na língua portuguesa choro, é o título dado ao poema. Temos aqui
uma metáfora fina, mas que pode ser compreendida facilmente dentro da cultura
guineense. O choro é ato de desgosto. Na tradição guineense, quando uma família
está enlutada, diz-se que o fulano tem choro – fulanu tene tchur. Em muitas situações, a família enlutada passa
por um longo período de tristeza, e dificilmente supera essa dor.
O poeta comparou esse
choro ao sofrimento de Mpinte, ou seja, sofrimento de muitas mulheres
guineenses, principalmente as do campo, que acordam ao cantar do galo para ir
pescar, vender algum produto na feira, pois não há nada em casa. A metáfora
usada pelo poeta em “tchur di Mpinte”, retrata dificuldades dessas mulheres do
interior, sem acesso a formação profissional e sem possibilidades de imaginar
um futuro melhor. De fato, temos um choro. Essas mulheres limitam-se a cuidar
de casa e satisfazer as vontades dos seus maridos. O último verso do poema
quase não aponta saída para a situação da Mpinte:
[...] Ke di fasi
Nina bu kurpu
Bu sufri...
Os versos finais,
contudo, parecem mostrar a solidariedade do poeta com sofrimento dessas
mulheres. A saída é: Nina bu kurpu/ bu sufri.
O sofrimento nos faz nobre, diz o ditado popular, bem conhecido no meio do povo
guineense. O poeta conhece a terra que o viu nascer, conhece as realidades
políticas do país. “si ora di riba ka ten/
kedi fasi Mpinte. O jeito é ninar o corpo no sofrimento. O sujeito poético
se identifica com os sacrifícios de mulheres guineenses.
Na mesma seção, vemos o
enaltecimento dos sentimentos amorosos. O amor e a amada fazem acender o fogo
do seu coração: em fugu di nha korson:
Fugu sindi na
larma rola i barsan pitu
murtadjadi ña sintimentu
iardiduradi sol
iabrin kamiñu na mandurgada
disabura
nsintiuna mi
suma iagu
sintadu na fonti (TCHEKA, 1996, p. 25).
Neste poema é o amor que guia o sujeito
poético, que o acompanha, nas lágrimas que rolam, abraçando o desejo do sujeito
poético. Percebe-se que o amor é outro verbo que conjuga os sentimentos
profundos do eu-lírico. Dessa forma, no poema kerensa, ele não esconde o jogo:
Abo
I moransa di ña bida
Kada fulgu di bu pitu
I un fala sabi
Kutadurmintin alma (TCHEKA, 1996, p. 31).
A alma de todo poeta é
feita para amar; é o que sentimos com a leitura do bloco de poemas “Poemar”.
Por isso, o poeta ama, ainda que sofra. Ama, quando tudo parece ter sido moído.
Os poemas reunidos nessa seção demonstram a confissão do sujeito poético:
apaixonado, encantado e mergulhado nos sentimentos do coração. O poeta se
refugia nas palavras – porque a alma é muda e diante dela nada parece
acontecer. Como mostram os versos de “ Nostalgia”:
Cinzento nicotina
Serpenteia o meu quarto
Argola o tempo que não passa
Tu não apareces
Nada acontece (TCHEKA, 1996, p. 35).
A lírica amorosa de Tony
Tcheka sinaliza verdadeiros sentimentos nostálgicos, abraçando melancolicamente
a dor causada pela ausência da sua amada. O eu – lírico pede para argolar o
tempo que não passa, porque esse tempo faz crescer a saudade e aumentar a
solidão. O sujeito poético insiste, mas não consegue dominar o tempo. O fogo de
amor ainda acende seu coração em imerecimento:
Adormeço
na luz
dos teus olhos
vejo Veneza
que não conheço (TCHEKA, 1996, p. 36).
A voz lírica é ciente
das suas Insônias. É ciente da paixão, que esse amor espalha. Contudo, não se
dispõe a romper com esses sentimentos que somente os sonhos satisfazem:
[...]
Confesso:
Não
mereço
A
ternura
Da
gôndola
Acariciando
As
águas
Onda
a onda (ib.).
O tom expressivo do
sujeito poético, de certo modo, apresenta-nos o seu sofrimento intenso com a
distância da sua amada. Mas este perde inteiramente os desejos e sonhos nos
olhos da sua musa – que lhe faz ver Veneza, aqui símbolo de algo fora da
lógica, lugar impossível de se alcançar. Sendo assim, o eu poético descarta
toda a possibilidade e energia que o contagia para derrubar os limites do
tempo. Por isso insiste em “Canção de
amor”:
Flor minada
No suor do seu corpo
Amanhã
Se tiveres tempo
E se acaso
O vento mudar
E no acaso
Houver luz
Dá-me um sorvo
Desse amor
Que fomos mitigando
Nos solavancos desta meia vida
Intensamente vivida (TCHEKA, 1996, p. 38)
O eu lírico se entrega
a toda esperança no amanhã. A esperança no vento que possa mudar ao seu favor –
dar-lhe “um sorvo desse amor”. Todos os versos desse poema não deixam escapar a
possibilidade de que as palavras, lado a lado, com coração do sujeito poético
vibrem de forma sincera; por isso, ele não quer se render, pois sabe que “O
amor e eterniza a paixão” ( TCHEKA, 1996,
p. 39).
A maioria dos versos
dessa seção parece querer seduzir-nos a cantar com o poeta no seu desabafo, na
torcida que o seu sonho torne real. Todos eles vão ganhando forças no tempo, na
medida em que o próprio poeta aceita um pouco de culpa desse sentimento que o
consome aos pedaços. É o que podemos ver no poema: Mea-Culpa:
Se me olhares
Cara a cara
e na vaga do teu olhar
os meus olhos
navegam nos teus
se a noite
não for concubina
do segredo
se o sol não surpreender a madrugada
e os sois da noite
não apunhalarem a lua
serei eu
a falar-te
seremos nós a libertarmo-nos
tu e eu [...] (TCHEKA, 1996, p.40).
É preciso não
esquecermos de apontar, nos versos acima, que o eu lírico parece ser dependente
do tempo e das circunstâncias para libertar-se da sua solidão. É ciente da real
situação da solidão. O sujeito poético quer quebrar as correntes e recomeçar a
nova vida: seremos nós a
libertarmo-nos/tu e eu. (Ibid., 1996, p. 40).
Se percebemos claramente
o sofrimento da mulher guineense, no conto Maimuna,
do livro A escola, de Domingas
Samy, o poema “a Prometida”, de Tony Tcheka, também, demonstra sua preocupação em
relação a algumas tradições culturais guineenses, como o casamento forçado, por
exemplo. A crítica feita a essa prática é demonstrada na figura da Djena,
obrigada pelos pais a se casar com um homem mais velho que ela. Djena, ciente
de sua incapacidade de impedir que a cerimônia de casamento se realizasse, decide
suicidar-se, com apenas dezessete anos:
Corpo de mulher
Inerte como o silêncio
Firme como a recusa
Repousa intacta
Num sono inviolável (TCHEKA, 1996, p. 50).
No
que se refere a essa temática, a pesquisadora Moema Augel nos oferece as
seguintes reflexões:
E assim, do romance inocente como namorado Dóli,
passou-se a tragédia bacilenta: obrigado pela força dos costumes do clã a um
casamento indesejado, não podendo unir-se a aquele que ama Djena, como fome de amor [...] e sede de ternura, refugia-se na
única saída que lhe parece possível para escapar à decisão paterna: escolhe a
morte, recusando-se a comer e a beber (TCHEKA, 1996 apud AUGEL, 1998, p. 246).
Se a dor da amada incomoda o poeta, no poema Carta ao pai amigo, observamos versos de
luto, da falta e da saudade do calor do pai, entre outros elementos tecidos no
poema que evidenciam o quadro amargo do poeta. O sujeito poético ainda sente o
tempo que não passa. E viaja nesse tempo, trazendo a memória da infância do
pai, sentindo até a saudade do calor do olhar dele. A saudade, a palavra que só
existe em língua portuguesa, faz o sujeito desenhar o tempo e o espaço da sua
infância, no seu fazer poético. E o sujeito poético canta melancolicamente:
Que saudades pai
Que nostalgia e dor
Lembrar-te
Como o tempo não passa
sem ti
Que saudades trago
do calor do teu olhar
amigo
acariciando
as minhas traquinices
Que saudade do som melódico
do teu violão...
Fecho os olhos
e vejo os teus dedos
calcando as cordas do velho banjo [...] ((TCHEKA, 1996, p.51).
Nove poemas estão
reunidos no bloco intitulado “Sonho Caravela”. A epígrafe já nos abre o caminho
para uma interpretação dos poemas que compõem essa seção:
Este estar
Assim sem estar
Faz mal-estar
Já não
caibo nesta concha (TCHEKA, 1996, p. 53).
Tais poemas remetem à
vida do poeta no estrangeiro, concretamente em Lisboa, onde esteve ainda jovem
para estudos. Além da dor da saudade da amada e do pai manifestada na seção
“Poemar”, em “Sonho Caravela”, o sujeito poético sente o peso das palavras, e
as pesa na balança para evidenciar o sofrimento do seu povo. A maioria dos
versos desse bloco assume os traços de identidade e amor do sujeito poético
pelo seu país, ainda distante dele. É possível perceber, de forma clara, a
indignação e a revolta do sujeito poético. E o poeta reafirma a sua revolta no
poema “Guiné”, que a seguir transcrevemos:
Guiné
De longe
Entre as setes
colinas
vejo-te
mulher-grande
sofredora
e meiga
Imagino-te
Suave
como quem diz amor
balbuciando temor
Sinto-te sombra minha
protegendo as minhas ibéricas noites
Esta ausência demorada
faz-me ver o Geba
subindo sobre o Tejo
Imagino-te
mulher-mãe
gente adulta
renascendo como companhia do mundo novo (TCHEKA, 1996, p. 59)
“Guiné” aponta o grande
amor que o poeta sente pela terra natal. Temos a dor e o sentimento visto no
corpo de mulher-grande, a mulher velha, metáfora de sofrimento do país:
cansada, sofrida, perdida nas noites sem esperança. Podemos ainda ressaltar,
além do sofrimento da Guiné-Bissau, visto no corpo de mulher-grande, que o sujeito poético sobe o Tejo imaginando o país,
o que poderia sugerir uma outra mãe, mulher-grande,
adulta, e que nos remete à ideia de esperança
de renascimento.
Da mesma maneira que o
poeta se desencanta com o destino do país, busca estender em toda obra o desejo
de reconstruir a nação e acreditar em um futuro melhor, como assinalam os
versos do poema “sonho emigrante”:
[...] partir e ter de voltar
rufar
como as ondas do Geba
vazar
para encher depois
Quero estar
mas cabendo na minha concha! (TCHEKA, 1996, p. 60).
. A meu ver, no poema,
temos a concha do mar ou de rio. Faz
alusão ao emigrante que quer estar no outro país, pois procura a segurança
material, entretanto quer continuar cabendo no seu próprio espaço, na sua
própria identidade guineense, nos limites estreitos, mas familiares: estando
fora, mas permanecendo ele mesmo. Aparece no poema como metáfora de um país
estrangeiro. O eu – lírico não esconde o desejo de partilhar os sentimentos da
sua saudade e ao mesmo tempo da sua tristeza, ou estranhamento com a vida de
emigração: Esse estar/sem estar/faz mal
estar/ já não/ caibo nesta concha (Ibid., 1996, p. 60). Percebemos, assim, que o sujeito
poético, mesmo desencantado com as duras realidades de emigração do seu tempo,
reafirma sempre a esperança e o amor que sente pela terra natal no poema esperança:
[...] Apenas queria
estar no regaço
da Terra-mãe
ver o sol entrelaçado
na noite
e nas paredes
da madrugada
beijar a liberdade( TCHEKA, 1996, p. 65).
A ilusão também é uma
das temáticas de Noites de insônia na terra adormecida. O poema “ilusão”
talvez remeta à própria experiência do autor durante sua vida em Lisboa. A
ilusão é um dos temas também encontrados em Kikia Matcho, romance de
Filinto de Barros. A imagem do exterior sempre cativou muitos guineenses que
vivem em situações difíceis. È possível, nos primeiros versos, perceber o grito
do eu poético: É gente nossa partindo/
desesperadamente/semana/a/semana/vôo/a/vôo (TCHEKA, 1996, p.
63). Nesses versos dramatiza-se a ilusão de deixar o país. Os
desesperados não fazem ideia da condição crítica pela qual passa um emigrante.
Com certeza, a situação política e econômica do país faz com os guineenses
fujam desesperadamente, ariscando as vidas, muitas vezes, nas travessias do
Oceano atlântico para provar vida de “tera branco”. É gente que fica
perturbada, indignada com a situação do país, querendo partir para nunca mais
voltar. A ilusão parece, sim, ser a ferida incurável dos guineenses:
[...] É gente sim
Gente apinhada
Fustigada
Gente de partida
Em Bissalanka
Ir até ao fim
Para começar a vida que nunca teve (Ibid., 1996, p.63.).
Tony Tcheka cria e recria todos seus
textos a partir das muitas e diversas imagens do seu próprio país – e parece
ter pressa em dizer as verdades que precisam ser ditas. É o que constatamos na
seção “Poesia Brava”. Ouso ainda dizer que os poemas do autor são violentos, na
medida em que questionam o que os olhos e a barriga rejeitam em tom bravo,
demonstrando a insatisfação com o rumo do país. O sofrimento parece perseguir a
alma do sujeito, enquanto este vê o seu povo em paralisia, como vemos no poema Povo adormecido:
Há chuvas
que o meu povo não canta
há chuvas
que o meu povo não ri
perdeu a alma
na parede alta do macaréu
fala calado
e canta magoado
vinga-se no tambor
na palma e no caju
mas o ritmo não sai (TCHEKA, 1996, p. 71).
Nos versos acima,
observa-se que sujeito poético mostra a realidade social guineense. Ele expõe
nos versos o sossego e desassossego de um povo, que se alternam constantemente,
metaforizados na palavra ‘chuva’. A meu ver, refere-se a metáfora ao tempo de
constantes instabilidades políticas e econômicas pelas quais passa o país. Os
versos: vinga-se no tambor/ na palma de
caju/mas o ritmo não sai. [...] podem nos remeter à ideia da mágoa e do
desespero da vida pela qual o povo guineense padece. Mas como vemos, este acaba
por se entregar às bebidas alcoólicas, como o vinho de caju e de palma. E
porque não às danças, para aliviar o seu espírito e desfazer-se do sofrimento contínuo.
Contudo, não adianta nada – o ritmo não
sai. Porque os tambores e o vinho de caju não conseguem apagar as
cicatrizes da alma.
A alusão feita nos
versos acima, do canto, do choro e da fala calados reforça a conciência das
tristes condições sociais em que se encontra o povo guineense – apresentado no
poema como povo adormecido, cujo objetivo maior é refugiar-se no vinho para
esquecer a dor. Como assinala os versos a seguir de “Melodia do desespero”:
[...] A voz perde-se vazio da palavra
Sinto os meus pés cansados
e tanto
tanto
por caminhar! (TCHEKA, 1996, p.74).
Não só Tony Tcheka, mas
muitos dos escritores guineenses questionam, nos seus versos, a forma como o
país foi conduzido alguns anos após a independência. Tony Tcheka, o poeta das
horas vivas, traz um título em crioulo – ason,
mas todos os versos desse poema dançam em língua portuguesa. A palavra ason, em crioulo guineense, é figurada
para referir uma pessoa anônima, não se importando com a personalidade e a
posição social dessa pessoa. Queiramos ou não, parece ser quase impossível não
compartilharmos o que o poeta sente por seu país; mergulhados nos versos que
compõem esse poema. Percebemos que o poema cobra as promessas feitas, durante a
luta de libertação nacional, de construção de um país justo, desenvolvido e
igualitário.
Ason
Ontem em quinta fine
na noite iluminada
pelo fósforo ardendo
tudo queimado
falaste-me do amanhã
da vida sã
desenhaste a independência
com
brocados
de
seda
falaste-me em pão
para
cada
boca
justiça
para
cada
homem
liberdade para todos (TCHEKA, 1996, p. 75).
Em muitos poemas de
Tcheka, o tom de insistência em um futuro melhor aparece. No poema acima, se percebe atitude fiel e exigente
em cobrar os responsáveis da administração pública guineense em relação às
promessas feitas durante a luta de libertação nacional. A crítica se revela em causa justa diante do
sistema de administração pública falho. Por isso, o poeta cobra uma independência
apenas desenhada, fora da realidade. Nos
versos acima é evidente o sonho adiado do povo guineense.
O poeta quer ser o
‘amanhã’ nos rostos famintos das crianças e quer ser esperança’ nas dores de
muitas mulheres do seu chão, acordadas nos primeiros cantos do galo, procurando
dar sentido às suas existências. Assim, sua poesia descobre o manto e revela as
dores mais fundas que atormentam o seu povo em “Canto à Guiné”
Guiné
Sou eu
Até depois da esperança (TCHEKA, 1996, p. 80).
Essa passagem apresenta
seu amor infinito ao seu país natal. Por outro lado, no poema “Poesia brava”, o
sujeito poético admite aprender no sofrimento que seu país lhe ofereceu a
canseira.
Aprendemos no sofrimento
Das manhãzinhas de cuntango
Sem pão
Sem manteiga (TCHEKA, 1996, p. 81).
Contudo, no mesmo
poema, protesta e diz não aceitar esmolas. Os versos que a seguir transcrevemos
levam a uma profunda reflexão, uma vez que a figura do ‘velho’ ora apresentado
no poema faz alusão aos desprezos dos combatentes da liberdade da pátria: “que
brigou sem saber/ Matou sem conhecer”. O eu poético recusa uma vivência de dependência
e maus tratos; renega, categoricamente, uma vida sob injurias e discriminações;
reconhece apenas crescer na sabedoria da vida: aprendemos no sofrimento/Das manhãzinhas de cuntangu/sem pão/Sem
manteiga (Ibid., 1996, p.81). A rejeição do poema é
assumida, propondo uma reflexão sobre a sociedade guineense.
Se o poeta se
desencanta com a vida, termina voltando-se para a morte que leva os entes
queridos: “A morte não tem cor/ não sente/ nem pressente” (TCHEKA, 1996, p.
108). A morte que não sente e nem pressente levou a vida do pai e fez o amigo
poeta ‘ negar a vida’. A expressão “negar a vida” é parte do poema “ Morte de
poeta” da página 109, e faz alusão à morte repentina de José Carlos Schwarz,
aos 27 anos de idade. É ao próprio poeta que empresto a voz:
Era um amigo, um irmão, um camarada com que me
identificava em muitas coisas da vida. Solidário e fraterno com sentido crítico
apurado. No dealbar da independência passávamos muitas horas na redação do
jornal Nô Pintcha, à noite, trocando ideias e analisando o rumo do país. Lúcido
e corajoso era perfeccionista em tudo o que fazia. Era um estudioso, um jovem
bem informado, mas que queria saber sempre mais. Para ele não havia verdades
únicas, daí uma certa rebeldia que moldava a sua maneira de ser e estar. Era
também pessoa de grandes e francas gargalhadas. Gostava de viver. A sua morte
prematura foi uma grande perda para o país. Foi-me difícil aceitar o seu fim de
forma tão trágica e com tanto que ele
tinha para dar. Era o mais completo de nós.
Doeu e escrevi o que me ia na alma[68].
Cada vez que eu folheio as páginas do
bloco “Kanto menino” me vêm lembranças de minha infância. Os versos desse bloco
são denúncias em tom mais seco das realidades vividas no quotidiano de crianças
guineenses sem nome, que procuram a vida nas ruas, movidas pelo desespero de
sede e fome. Assim, são retratados o mundo e as dificuldades das crianças
guineenses:
Sofria de desejos:
Por comer com os olhos
Enquanto na barriga
Desfilam bolas de salivas (TCHEKA, 1996, p. 117).
A fome e as dificuldades das crianças
chamam muita atenção na escrita de Tony Tcheka. No bloco de “Canto menino”, o
sujeito poético faz refrão da palavra fome e chega mesmo a tomar o lugar desse
menino, desenhando não apenas o sofrimento deste, mas carregando a sua própria
dor. Vejamos o poema “Chamo-me menino”:
Sou criança pobre
de uma rua sem nome
de um bairro escuro
de covas fundas
em gargante magra
Carente de pão
e sem muita ambição
Sou filho da miséria
Escancarada
Enteado da vida (TCHEKA, 1996, p. 116).
Esses versos parecem
representar os desejos, os sonhos e todos os espaços da nação fragilizados. As
promessas de independência como ilusões que fizeram com que crescessem mais
desencanto nos homens, nas mulheres e, sobretudo, nas próprias crianças
indefesas. Não há como ignorar a voz crítica desse texto, que desenha
claramente o sofrimento dos meninos abandonados em bairros escuros, caçando com
os olhos o que a barriga não alcança. Num país como a Guiné-Bissau, a fome é
disfarçada, mas é visível para quem deseja enxergar a realidade. Contudo, os
olhos atentos também sabem distinguir a vida na sua forma de esperança. No
poema abaixo transcrito, sem sombra de dúvida, há o enaltecimento da esperança
em Piquinote:
A tua fé
Chama-se amanhã
Um amanhã qualquer
Que há-de-vir
Não importa (TCHEKA, 1996, p. p.123).
Os versos se voltam
para o futuro, e o amanhã é palavra repetida dezesseis vezes na obra. Não é à
toa que, em “tecto de silêncio”, o poeta reforça e exige uma reflexão sobre
esse ‘ amanhã’ tão esperado, indicando que o mesmo é desejado e constitui ainda
sonhos nos olhos dessas crianças apontadas:
Amputo a desgraça
E eis a graça da criança
Florescendo a vida (TCHEKA, 1996, p.125).
Os poemas de bloco Canto menino demonstram claramente a
profunda solidariedade e o amor pelas crianças. Constituem-se como um grande
gesto simbólico e de consciência para detectar os males que assolam o país. Não
é por acaso que Tony Tcheka organizou uma coletânea intitulada Eco do
Pranto: a criança na moderna poesia guineense. Nessa coletânea somos
conduzidos a enxergar o mundo com os próprios olhos de crianças e a identificar
a dor que, muitas vezes, algumas palavras de Tcheka não alcançam.
4.2. Abdulai Sila: uma visão da realidade social
guineense em Mistida
E vêm estas palavras a próposito de Abdulai Silá,
guineense de Catió, profundamente marcado pela guerra e pelas suas crueldades,
com uma vivência atenta ao mundo que o rodeia e uma procura árdua de justiça e
solidariedade humana. (CAVACAS, in: SILA, 2002, p. 7).
Abdulai Sila é engenheiro eletrotécnico, formado pela Universidade
de Dresden (1979-1985), na Alemanha. Além de exercer a função de escritor, ele
também é um investigador social. Nascido
em Catió, região sul da Guiné-Bissau, em 1 de abril de 1958. Filho de Aliu Sila
e de Aissato Baldé. Em 1970, o autor mudou-se para a capital, Bissau, a fim de
dar continuidade aos seus estudos liceais no liceu Honório Barreto, atual Kwame
Nkrumah. De 2013 a 2017 foi presidente de Associação de Escritores Guineenses.
Recentemente, o autor foi eleito
presidente do PEN Guiné-Bissau.
Devido à paixão que sentia
pela sua profissão, em 1987, junto com seu irmão, criou a SITEC, uma empresa de
informática gerida por ele. A referida empresa tem contribuído bastante para a
formação não só dos jovens de Bissau, como de outros vindos do interior do país
à procura de uma qualificação profissional.
Na entrevista conduzida por Fernanda Cavacas, Abdulai Sila conta que
a sua paixão pela literatura veio da juventude, quando, já em 1976, ainda na
escola, sua professora de Português percebeu sua habilidade e sua grande
facilidade para escrever:
Comecei a escrever na Escola. Eu devo agradecer a uma
professora que tive, uma professora de Português. Salvo erro foi em 1976,
quando aconteceu o massacre de Soweto. Nós tínhamos acabado de sair de um
período de guerra e na nossa turma achámos que devíamos render uma homenagem
àqueles jovens que tinham sido massacrados e fizemos um jornal mural. Foi assim
que tudo começou. Dividimo-nos em grupos e ao meu coube a tarefa de fazer o
editorial. Foi a minha primeira experiência – escrever o editorial. Eu tinha
vivido intensamente a guerra e tentei exprimir aqueles sentimentos... Quando
entregámos o trabalho, a professora gostou e disse-me: “ Deves continuar a
escrever”. Não me esqueço disso. A partir daí passei a sentir estímulo e
necessidade de escrever e fui escrevendo um diário porque não tinha outras
coisas para escrever. Foi assim que comecei (SILA, 2002, p. 8).
Abdulai Sila foi um dos fundadores do Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisa, denominado INEP. Também foi cofundador da primeira editora privada
do país, a Ku Si Mon[69],
na qual publicou, até o presente momento, todos os seus livros tanto de ficção
quanto de teatro, entre eles quatro romances e três dramas:
Romances: A eterna paixão (1994), A
última tragédia (1995), Mistida
(1997), Memórias Semânticas (2016).
Contos: “Reencontro[70]”,
in Tcholana, Revista de Letras, Artes e Cultura, 1, GREC, Bissau, nº 1, 1994:
12-13.
Dramas: As Orações de Mansata[71]( 2007), Dois Tiros e uma Gargalhada (2013),
Kangalutas ( 2018).
Além das obras citadas, Abdulai Sila é autor de vários artigos
científicos em revistas do país, entre eles: “Potencialidades e necessidades
energéticas da Guiné-Bissau”, in A
Guiné-Bissau a caminho do ano 2000, INEP, Bissau, Janeiro 1987.
Estratégias de
Desenvolvimento e Alternativas Tecnológicas: Um Estudo de Caso da Guiné-Bissau, in Soronda, Revista de
Estudos Guineenses, 13, INEP, Bissau, Janeiro 1992.
A Penúltima Vaga, Perspetivas do desenvolvimento das Telecomunicações na
Guiné-Bissau, Bissau, 1998.
No período antes da independência, na Guiné-Bissau, como já
mencionamos inúmeras vezes por aqui, não se registou nenhuma obra no âmbito da
prosa mais estendida. Na época colonial, sim, havia publicações desse gênero de
estrangeiros que ali viviam, como, por exemplo, a obra ficcional de cabo-verdiano
Fausto Duarte. Abdulai Sila, como consta na história literária guineense, é o
primeiro guineense a escrever um romance. Vale salientar que o primeiro livro
do autor - Sol e Suor -, escrito na
década 80, ainda não foi publicado, pois, segundo autor, contêm coisas
particulares e pessoais que preferiu não publicar. Porém, nomes de muitas
personagens e temáticas de seus romances são originários do Sol e Suor. Desde 1984, Sila tinha
escrito A última Tragédia, mas não
publicou a obra logo pois, devido ao clima político da época, tendo em conta
que o livro poderia passar pela censura, resolveu guardá-lo e esperar um
momento oportuno para sua publicação (SILA, 2002, p.9). Assim, Sila só publicou seus romances dez
anos depois: Eterna Paixão (1994), A última Tragédia (1995) e Mistida (1997), todos pela editora Ku Si Mon.
A maioria dos escritores guineenses iniciou suas atividades
literárias, escrevendo poesai, porém, Sila nunca se animou fazer versos. Como
podemos reconhecer na entrevista referida:
Sempre prosa. Nunca me passou pela cabeça escrever
poesia... Há muitos jovens- que eu saiba-que começaram por escrever poemas de
amor. Mas como disse, o meu começo foi diferente. Tudo começou com o texto que
referi e nunca me passou pela cabeça, de fato, escrever poesia... O sentido da
minha escrita continua a ser o mesmo de quando comecei a escrever (SILA, 2002,
p.8).
Não há como fazer um balanço da literatura guineense, sem mencionar
o nome de Abdulai Sila. Nos últimos vinte anos foi quem mais representou o
país, a nível nacional e internacional. Sila tem uma participação ativa e
relevante na divulgação e no sucesso da nossa literatura pelo mundo fora. No
Brasil, por exemplo, são muitos estudantes brasileiros que já defenderam teses
e dissertações com base nas suas obras. Abdulai Sila tem uma crítica realista
da situação do país, capaz de nos levar a conhecer os mais diversos aspectos da
nossa cultura e de nossa história. E procura sempre expressá-los, usando
expressões das línguas que unem o povo guineense: o português e o crioulo. Os seus
textos são elaborados com a proposta, latente ou não, de expandir a cultura
guineense e fazer denúncia dos males que afetam a sua sociedade. Suas obras,
ultimamente, vêm ganhando cada vez mais visibilidade e força no exterior.
Sila parte da vida do dia a dia dos guineenses para construir seus
enredos, e muito mais do que isso: digamos assim, que o autor tenta com seus
textos projetar uma visão do futuro, o que nos leva a reconhecer que as
questões abordadas em Mistida,
romance dos últimos anos do século XX, não diferem das dos dias atuais. Um
conhecedor da realidade social guineense sente-se inconformado em cada página
desse romance que nos permite uma reflexão proveitosa sobre os problemas que
ainda hoje atormentam o povo guineense. A sua crítica é sutil, misto de ironia
e sarcasmo, nunca deselegante, admirável e única; por isso, muitas vezes, o
comportamento das suas personagens não é fácil de compreender e sua voz o
destaca entre os escritores guineenses que optaram pelo gênero ficcional.
Os três romances publicados fizeram de Abdulai Sila o gigante da
literatura guineense, pois são retratos da nossa sociedade em que se encontram
seres calados e oprimidos, cada um com seu jeito de ser e sua história para
contar, mas todos à procura de algo melhor e maior do que o momento atual.
Essas são personagens que podemos encontrar em Mistida são vozes mudas, fragilizadas, perdidas pela tirania do
desgoverno, pela opressão da injustiça social, pelo discriminação das elites.
Almas silenciadas que procuram encontrar seu lugar. No prefácio à primeira
edição, Teresa Montenegro observa: “Mistida é uma narrativa pós-moderna que,
com os seus anti-heróis e figuras da rua, assume a precariedade do quotidiano e
dá voz aos mudos, e onde os gêneros literários tradicionais esbatem as suas
fronteiras, se entrecruzam e justapõem” (SILA, 2002, p. 328).
Abdulai Sila, hoje em dia, como escritor, conquistou um público
internacional, e continua procurando com eficácia aprofundar sua visão em
relação aos problemas do país. Outros textos já estão em preparação. A sua
representação fora do país ganha crescente repercussão, despertando o interesse
acadêmico. A tese de doutorado de Érica Cristina Bispo, intitulada: “Eternos
descompassos... Faces do trágico em Mistida”, defendida, na UFRJ, em 2013, é um
dos exemplos de estudos muito bem recebidos na Guiné-Bissau. Em 2016, foi
considerada a melhor tese de doutorado pelo INEP - Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau e será editada em Bissau. A visão crítica de
Abdulai Sila e seu estilo inconfundível ultrapassam fronteiras, ganhando cada
vez mais leitores não apenas de língua portuguesa. Sua obra tem traduções em
francês, inglês, italiano e em alemão.
A representação
da fala na escrita de Abdulai Sila apresenta no discurso ficcional um brilho
que nos conduz a uma luz muito sutil A habilidade de Sila em fazer transitar
elementos do crioulo falado na escrita transmite aos textos a vivacidade do
idioma, o que contribui para o fortalecimento da sua identidade e da cultura
local. Sila vai além da fala e também incorpora nos seus textos com muita
assiduidade torneios sintáticos” próprios da língua guineense. Como nos aponta
Moema Augel: “Esse autor também usa com frequência torneios sintáticos próprios
da língua guineense, tais como: ‘um grande problema que era preciso pensar
nele’...” (AUGEL, 2007, p.172).
A preocupação e a clarividência em relação aos problemas sociais
estão presentes em quase todos os textos do autor, que aborda metaforicamente
as muitas falhas da governança e as dificuldades sociais que o país vem
sofrendo ao longo dos anos: A pesquisadora Moema Augel resume essas
dificuldades:
As infraestruturas continuam igualmente muito
precárias. No conjunto do país, apenas cerca de 25% da população têm acesso à
água potável. Dessa percentagem, apenas 21% da população usam água canalizada
ou de fontanários públicos. Os restantes recorrem à água das fontes protegidas,
com todas as consequências que isso acarreta à saúde das populações. A rede
elétrica é insuficiente e não atinge com regularidade nem mesmo os principais
bairros da capital (AUGEL, 2007, p.75).
Desde o
primeiro romance, Sila mostra que sua literatura é engajada e tem como
finalidade a valorização dos silenciados. Essa questão é abordada com os mais
diferentes recursos.
Eterna paixão é o retrato
da história de um afro-americano, Daniel, que, após voltar à África como
emigrante, se sente africano, negando ser tratado como estrangeiro. É nesse
lugar que Daniel Baldwin encontrou seu paraíso – África – um retorno às
origens. Abdulai Sila ao trazer como protagonista um estudante afro-americano
que emigrou espontaneamente para a África talvez queira mostrar, se é que é
possível, de algum modo, quebrar aquele olhar estereotipado do Ocidente em
relação ao continente africano, que Daniel e o próprio autor acreditam na potencialidade dos africanos na
construção de uma nova África.
Woyowayan, o espaço onde decorre a parte final do romance, é
inspirado na gesta de Samori Turé, um dos líderes mais revolucionários da
história da África. Essa aldeia é citada no romance, segundo Augel:
[...] reflete tanto a visão do autor a respeito da política, da economia e da
organização social de uma comunidade, quanto igualmente revela seu posionamento
face à realidade que o rodeia, diagnosticando os males e as mazelas dessa
realidade, recusando-se a resignar. Abdulai acredita – e nos estimula a
acreditar – na possibilidade de uma transformação. Não é por acaso que o autor
escolheu uma pequena aldeia tradicional para ali fazer seu herói realizar seu
projeto de desenvolvimento, numa antecipação do que hoje em dia tantos pensam
para África: um respeito e um aproveitamento do tradicional conjugados com a
aplicação de um modelo de desenvolvimento integrado e adaptado às reais
necessidades do país (AUGEL, 1998, p. 340).
Em A última tragédia, Sila inverte um pouco
a temática. Contudo, nesse mesmo tom de
que é possível quebrar o tabu. O autor apresenta Ndani, uma adolescente dos
seus treze anos, nascida em Biombo, que tinha como destino a azar de não
conseguir realizar nada de bom em vida. Este fato foi revelado pelo djambacus, o curandeiro da sua aldeia.
Na procura de condições melhores para escapar da maldição profetizada pelo
curandeiro, Ndani tinha que arriscar a sua vida e viajar para a cidade de
Bissau, tendo conseguido um emprego como empregada doméstica numa casa
colonial. Porém, sem possuir mínimo conhecimento da língua portuguesa e dos
costumes europeus. Mas em pouco tempo, a jovem conseguiu adaptar-se às novas
realidades.
Os três espaços
apresentados no romance A última tragédia
nos mostram a personalidade forte e marcante de Ndani. O primeiro espaço
referenciado no romance é a cidade Bissau, na casa colonial, na qual chegara
sem nenhuma experiência vivida, obrigada a aderir à igreja católica, mudar de
nome e, ainda por cima, passar pela dura experiência de ser violada pela
patrão. O que o autor quer simbolizar com isso é que a colonização não só
explorou aspectos físicos do continente africano, mas violentou sua identidade,
sua cultura, suas línguas, sua religião.
A virgindade é
um dos valores que a África ainda preservou; a mulher perde respeito social
quando a perde. As mulheres africanas estão conscientes da preservação e da
importância tradicional que ela possui nesse contexto. A perda de virgindade
por parte de Ndani, a meu ver, revela a violência
brutal por parte dos europeus em África. Mais do que isso, o estupro da Ndani é
a imagem de uma África usurpada e abusada ao longo dos séculos.
O segundo
espaço apontado no romance é a estada de Ndani, ou Daniela, como foi batizada
por sua patroa, na casa do régulo de Quinhamel, levada pela família num
casamento forçado. Posteriormente, Ndani é rejeitada pelo régulo, na noite em
que este certificou-se que a sua noiva não correspondia à sua expectativa. O
Régulo, descobrindo que a noiva já havia perdido a virgindade, tomou a decisão
de abandoná-la. Se o destino do casal português naquelas terras africanas era
entendido como um azar, segundo a fala da Dona Linda, comparando a nova morada
a um inferno, por que não dizer o mesmo do destino de Ndani, que ainda não
encontrara, até o momento, nenhum sentido de vida? Numa ocasião, Ndani, recebeu
um crucifixo da patroa e foi obrigada a visitar o seu passado:
No entanto, poucos dias
depois, perdera o colar junto com o chifre durante uma briga com uma amiga.
Lembrava-se da surra que recebera do pai, que ficara furioso com aquela perda.
E agora que mais queres que eu faça? Vou-te deixar com essa maldição... Tenho
mais filhos com que me preocupar. E assim tinha feito ele, nunca mais se
ocupara dela (SILA, 2002, p. 39).
O objeto
perdido no passado tinha o poder de desalojar do corpo dela o mau espírito,
evitando a profecia de uma tragédia na sua vida vaticinada pelo curandeiro.
Será que o curandeiro tinha razão de que ela é portadora de espírito de
maldição? Os caminhos que a sua vida tomou, até aquele momento, revelava que a
empregada estava longe daquele sonho que tivera durante a noite, quando a sua madrasta
lhe falara da vida dos brancos ( SILA, 2002, p. 22).
Entretanto,
Ndani estava ao lado dos filhos do seu patrão: João, que aos quinze anos, a
mesma idade que ela, já estava quase a concluir o liceu e sonhava ser advogado.
Por outro lado, a outra filha, Mariazinha, sonhava em ser médica. E ela? Sem
estudos, trabalhando como empregada, insultada com palavras que ela mesma não
entendia, às vezes, levando bofetada quando alguma recomendação da patroa lhe
escapava (SILA, 2002, p. 31). Não era somente ela. Eram tantas ‘Marias’ citadas
no romance na mesma condição social que a dela.
O terceiro
espaço destacado na vida da Ndani é o casamento com o professor, cujo nome não
foi mencionado no romance, filho de um camponês muito conhecido na aldeia,
educado na cultura dos brancos, tendo formação religiosa como missionário,
porém, livre nos seus próprios
pensamentos. Professor, apesar de ter sido educado segundo as crenças e os
costumes europeus, não abandou a tradição local.
Nesse terceiro
espaço identificado no romance, o autor apresenta Ndani como uma mulher livre,
ela mesma escolhe o seu próprio destino, identificando-se como uma mulher
moderna, independente, dona do seu próprio nariz. Aqui percebemos que o autor,
através de uma personagem feminina, estabelece uma ponte que liga a tradição
com a modernidade, questionando, de certa forma, a tradição e os seus tabus,
recorrendo ao período colonial para confrontar as mazelas do presente.
O djambacus, o curandeiro, que profetizava
que a Ndani era portadora de mau espírito no corpo, revelando só tragédia na
sua vida, vê-se comprometido pelas boas notícias desta e da nova vida que
levava. “Vida dos brancos, que é diferente da vida dos pretos” ( SILA, 2002, p.
22) Ndani é a resistência, imagem do povo africano rebelando-se, depois de ter
sido escravizado durante longos anos. Também é a força na medida em que luta
com o que é visto como impossível, e o tornou possível. Ela é a esperança dos
dias melhores:
Gostaria de ver o rosto
daquele Djambacus, daquele mentiroso que disse que ela tinha um mau espírito no
corpo, que a sua vida não seria outra coisa senão uma sucessão de tragédias.
Queria vê-lo para lhe mostrar quão enganado estava. O sacana devia ver a vida
que ela tinha agora. Tinha a certeza absoluta que, se o fizesse, iria arranjar
uma outra forma de ganhar a vida. A vida dele é que era uma tragédia, uma
tragédia permanente até, mas não a sua (SILA, 2002, p. 41).
Antes de entrarmos na análise da obra Mistida, é interessante esclarecer que a palavra mistida tem suas raízes do verbo misti, palavra usada com grande
frequência no crioulo guineense, mas que tenha seu origem do português com
influência em língua latim, ministerii (AUGEL, 1998, p. 349). Mistida no contexto guineense pode
ganhar vários significados, entre eles enumeramos os seguintes: uma
necessidade, um desejo, um assunto a tratar, um negócio, entre outros. Tudo é mistida. Para o autor, o significado da
palavra mistida só pode ter sentido
no contexto de uma frase completa e dirigida. Sair com colegas para beber ou
fazer um negócio é também uma mistida.
Na obra em pauta, Abdulai Sila procura exprimir, através da imaginação, a dor e
a decepção que sentia ao ver como era e é governado o nosso país. Observe esses
sentimentos nas palavras do autor, numa entrevista dada a Fernanda Cavacas:
[...] Já viveu em Bissau, já viu aquilo... O
que se passa no meu país é inacreditável, ou seja, há tanta coisa que acontece,
que se a gente tenta explicar isso a pessoas que não conhecem, elas vão dizer
que “estás a mentir”. Há tanta barbaridade. Há tantas coisas que acontecem, de
fato, coisas cômicas, difíceis de acreditar, mas são coisas que acontecem. E é
nisso que a gente pega e constrói o enredo (SILA, 2002, p.13).
Para Teresa
Montenegro, no prefácio à segunda edição, a palavra mistida possui pluralidades
de significados no contexto guineense. Mistida
é luta diária para sobrevivência, da procura de algo, seja para saciar a fome,
seja para saciar as necessidades urgentes do dia. Enfim, mistida é, acima de
tudo, a meu ver, no contexto guineense, os segredos que ninguém pretende
revelar:
A ideia veiculada pela
expressão é mister – ‘ é preciso’, ‘ há
que [ fazer isto, fazer aquilo]’ – foi retida em misti com o significado de ‘ precisar, ter necessidade, de’, mas
quer por economia e/ou porque na língua em formação só se desejaria o que era
necessário, o criol acrescentou-lhe ‘
desejar, amar, querer’. Eu preciso de ti, eu amo-te, eu desejo-te, eu quero-te
é tudo n mistiu (SILA, 2002, p. 323).
A obra Mistida
é composta em dez capítulos, nos quais as histórias se juntam e se entrelaçam,
formando uma só história. Os dez capítulos narrados de formas diferentes
apresentam episódios trágicos da perda da memória. Pois mistida, segundo o autor na entrevista feita com Fernanda Cavacas,
nasceu de um roubo da memória. A busca constante dessa memória perdida, de
personagens sem identificação de idade, sexo e classe social, faz com que eles
aparecem em outras histórias, apresentando outras posturas e outro status
social, com o intuito de recuperar o cérebro roubado:
[...] a mistida nasceu de um
roubo. É por isso que, nas introduções a cada capítulo, se fala de um roubo que
não é normal. Trava-se de um roubo especial que só uma classe diminuta consegue
de facto praticar que é roubar o cérebro. Portanto, tratava-se de roubar o
cérebro a uma pessoa – e não se diz se é homem, mulher, velho, criança... É por
isso que em cada capítulo essa pessoa, a quem a memória é roubada, aparece como
um outro personagem. Um antigo combatente, uma criança, uma vendedeira, sei lá,
um funcionário, uma jovem... tudo isso representa essa pessoa a quem roubaram,
de facto, a memória. E ela esqueceu-se de quem é e em cada capítulo aparece
como uma pessoa diferente e no fim todas elas se juntam. É essa a génese da Mistida (SILA, 2002, p. 10).
“Mais do que
propriamente capítulos de um romance, os dez episódios que compõem Mistida evocam uma peça de jazz com
muito swing em que cada intérprete de
um instrumento executa de maneira pessoal e inconfundível um solo único baseado
no tema central, a mistida" [...]”, escreve Teresa Montenegro no prefácio
à primeira edição da obra em análise.
O roubo da
memória e a luta em recuperá-la estendem os conflitos do romance, apresentando
as consequências com que cada personagem depara na busca dessa memória perdida
– é a mistida que todos eles devem safar, resolver o mais rápido possível.
A obra é fruto de uma imaginação profunda, porém real, e constitui o retrato da
ilusão do pós-independência em que o autor reflete de forma sábia, apontando os
responsáveis desse descontentamento. Nessa linha, Sila fez questão de dar voz a
quem, de fato, não a possui: um antigo combatente, um professor, uma jovem, uma
idosa, entre outros, sinalizando a melhoria de vida que eles exigem.
Como referiu Moema Augel, com mais
profundidade, sobre os episódios de Mistida:
Os capítulos trazem um elo
de ligação: em todos eles, a personagem principal tem uma importante mistida a safar, isto é, uma tarefa urgente a ser cumprida, um negócio
inadiável a ser tratado, um certo e enigmático empreendimento a realizar. Em
cada capítulo interagem duas personagens, raramente mais. De caracteres
antagônicos, contraponteiam-se mas
também se completam. Quase sempre o antagonismo é resolvido, o capítulo termina
com um re-conhecimento, uma aproximação cordial das personagens ( AUGEL, 1998,
p. 348).
O enredo foi
construído na busca de algo roubado. Cada capítulo, protagonistas, seja uma mulher idosa, um comissário
político, um prisioneiro anônimo, um ex-soldado, um combatente, ou um professor
que perde o dom da palavra, cada um deles reaparece em outros capítulos com
caraterísticas diferentes, com a finalidade de recuperar esse algo perdido. No
final da obra, todos se unem, revelando claramente o triunfo do bem sobre o
mal, direcionando os caminhos que as crianças, homens e mulheres devem seguir –
o caminho da esperança que visibiliza que as coisas são possíveis de acontecer
no sentido mais humano, numa crença de que o país pode sair do ‘lixo’, mudar da
direção que ao longo dos anos tenha andado.
Assim, os dez
capítulos de Mistida resumem-se na
profunda inquietação do autor diante da realidade guineense, que é apresentada
de uma maneira figurada, mas real, constituindo-se a voz que não se quer calar
– vista em cada personagem que autoproclama os seus direitos e seu desencanto
com a situação do país.
Abdulai Sila
escreve em um tom agressivo, confrontando-se com os problemas existentes da sua
sociedade, como a marginalização dos seus cidadãos. Os dez capítulos de Mistida nos apresentam de forma
imaginária as manifestações de várias vozes, indignados com a vida miserável e
destorteada que levavam. A esperança e o desejo de um país melhor são
percebidos nos textos que compõem cada estória em cada jeito que foi contada.
Sila aposta nas palavras como a arma de mudança e de defesa contra o mau estado
em que se encontram o país. Nas narrações e diálogos propositados dos
personagens, o autor sinaliza a sua preocupação e a esperança que é possível a
reconstrução de uma nação fragilizada e dos ideais esquecidos. Esse
esquecimento é o que podemos observar nas características de maioria dos
personagens de Mistida.
Entre eles
apresentamos Madjudho, que em língua mandiga significa “escravo”. Escrava
também é a Mama Sabel, uma mulher velha encontrada num estado doentio, sem
aposentadoria, sem filhos. Apesar de todas as dificuldades, passava a maior
parte do seu tempo em um beco no escuro da noite, vendendo amendoim. Por outro
lado, temos a personagem sem nome, uma jovem bela, que chegou a esse beco
fazendo concorrência “desleal” a Mama Sabel, aplicando truques nos clientes:
Desde o primeiro dia que
começou a fazer concorrência desleal. Não deixava mais ninguém vender mancarra
naquele beco, só ela. Quando via um cliente a aproximar-se com vontade de
comprar alguma coisa, arrancava logo ao
seu encontro e dizia que a sua mancarra era mais nova e a melhor de todas, que
ainda estava quentinha, que a sua caneca era maior e muitas outras coisas
assim. Encontrava sempre uma maneira de convencer as pessoas. Mesmo aquelas que
eram seus fregueses fixos, mudaram. Nenhum deles resistiu às aldrabices dela.
Ninguém notava que a caneca que usava para medir era grande só por fora, lá dentro
estava cheia de papelão. De fato, isso demonstrava uma coisa que ela já tinha
notado com muita preocupação: o desleixo estava a tomar conta de tudo (SILA,
2002, p. 392).
A jovem se
sentia inconformada com a situação na qual vivia. Sem nenhuma qualificação
superior como as suas irmãs, ela se desenrasca em discotecas durante o período
da noite, buscando ganhar a vida do seu jeito, em vez de continuar a vender a
amendoim. Optou por prostituir-se, procurando saídas dos problemas com os quais
se depara:
Um dia Mama Sabel tinha
ficado a olhar o tempo todo. A rapariga agora não corria como dantes quando via
chegar o carro. Andava devagar, abria a porta e sentava-se à vontade. Depois
começava a conversa. Naquele dia não tirou os olhos do carro. No fim, confirmou
a suspeita: a rapariga já não vendia nada ao homem. Ia lá só para conversar e
depois ainda por cima recebia dinheiro (SILA, 2002, p. 394).
Abdulai Sila
criou seus personagens, dando-lhes voz de rebeldia e insatisfação. Todos eles,
seja de uma forma individual, seja de uma forma coletiva, protestaram contra os
princípios da desvalorização humana. O Comandante sentia-se orgulhoso quando
acariciava por tempo indeterminado a sua medalha: o único que lhe restara de
orgulho e recordação da sua participação na luta de libertação nacional. A
simbologia de acariciar a medalha e a sua progressão em brilho segundo a luz do
sol permite-nos imaginar a estratégia do autor em apontar o desejo e a sede de
justiça: é uma estratégia de quem lança a pedra e esconde a mão.
Vejamos um trecho do
diálogo entre o ‘desnorteado’ e o seu assistente ‘escravo’:
– Não viste a cor do sol?
– Ele está muito forte.
– Não me faças rir, Madjudho.
– Juro que está tudo igual aos outros dias,
Comandante. Tudo na mesma... Mas se quiseres volto para ver
novamente.
– Mas que ignorância! Não disseste que estavas a
querer conhecer a vida? E depois de tanto tempo ainda não és capaz de entender
que este sol está quase a cair?
– A cair a esta hora?
– E para sempre!
– Não estou a entender...
– Tenta... A
ver se descobre o outro sol, aquele que brilhará para nós. Para todos
nós... (SILA, 2002, p. 342).
O sol em Mistida é a metáfora do poder
fragilizado. Em vários momentos, o sol aparece forte “ igual outros dias”, mas
é um sol em ruína. O sol a cair é a simbologia do fim de um regime autocrático,
implantado, não só na Guiné-Bissau, porém, na maioria dos países africanos. O
Comandante desnorteado deseja outro sol, um sol que brilha para todos...
Algumas leituras feitas por críticos literários apontam o romance Mistida como uma visão apocalíptica do
futuro, alusão à da guerra civil que aconteceu em 1998, como assinalou Abdulai
Sila numa entrevista concedida ao Joaquim Eduardo Bessa da Costa Leite (BESSA,
2014, p. 267). De fato, é possível aceitarmos essa ideia, pois a obra tem a ver
com a situação política daquele período, apresentada de forma figurada no
livro. Assim, optamos para melhor compreensão dessa obra comentar todos os
capítulos.
O primeiro
capítulo conta a história de um antigo combatente da liberdade da pátria, que
durante a luta de libertação nacional deu a vida para o progresso do seu chão.
No desenrolar da trama, o protagonista se desespera, e sem motivos
para viver, decide fechar os olhos para não ver o estado em que se encontra o
seu país: cheio de hipocrisia e de maldade. O Comandante preferiu fechar olhos
para não ver nada. Esse Comandante, escrito com ‘C’ maiúscula, chama a atenção
de que não se trata apenas de um comandante qualquer. Mas, sim, é um Comandante
que representa tantos combatentes que viviam e vivem em situações difíceis e
afastados literalmente da sociedade. No romance, ele representa a voz
da decepção, da solidão e dos
maus-tratos dos combatentes da liberdade da pátria.
O Comandante se
revolta com a situação de opressão e solidão. Vê-se no cruzamento dos caminhos
opostos que o país tomou. Por isso, ele decidiu manter os olhos fechados,
preocupado apenas com o que ele tem de recordações e de orgulho, a medalha, que
havia resgatado de um avião que tinha abatido. Esse objeto foi uma das
lembranças boas de um bom combatente que ele tinha sido. No começo, Madjudho, o
jovem de dezessete anos que o assistia em um posto de sentinela, um lugar
pequeno que o próprio Comandante chamava de escritório, pensou que aquilo era
uma brincadeira. Além da insistência de não abandonar o posto de controle, até
que voltassem o orgulho e a dignidade no
seu país, retirando-se para um lugar afastado da cidade, o Comandante tinha
recusado categoricamente abrir os olhos:
– Comandante não vai mesmo abrir os olhos nunca
mais?
– Não vou.
– Por quê?
– Este mundo está cheio de hipocrisia, não quero
ver.
– Hipocrisia?
– E de maldade...
– Mas é o que há mais.
– Foi sempre assim na vida
– Mentira! Mas... O que é que tu sabes da vida, hem?
(SILA, 2007, p.335).
A fala do
comandante faz referência à desilusão
dos antigos combatentes que sofrem com a governança do país. Em todos os
capítulos de Mistida, como em outros
romances do autor, percebem-se cenários trágicos dentro da nossa sociedade. A
obra surge na intenção de confrontar esses episódios trágicos vigentes no país,
fazendo denúncias dos problemas sociais que ainda afetam a nossa sociedade.
No segundo
capítulo, o autor exibe uma cena de forma imaginária e fantástica: uma cela de
prisão dos políticos de diferentes status sociais. Todos percorreram diferentes
caminhos para chegar àquele lugar de sofrimento em que o tempo parecia
infinitamente longo ( SILA, 2002, p. 348). Os motivos de prisão eram diferentes;
porém, sobre todos eles pendia a mesma acusação: presos por terem denunciado o
sistema corrupto e de autoritarismo, fato ainda comum no sistema político
guineense. O protagonista, Kononton, era Comissário político que, durante o
processo da luta armada do país, empenhou-se bastante em mobilizar as pessoas a
aderir à luta contra o colonialismo. Sonhava com um país justo e igualitário.
O professor,
protagonista da estória, revolta-se com a situação do país, diferente do que
tinha prometido os seus alunos há muitos anos. Os seus alunos, após a luta
armada, procuraram-no e cobraram ao professor a promessa de um país justo, de
solidariedade e espírito de patriotismo. Kononton, diante da situação sem
resposta, decidiu ficar mudo. Esse suspense é um ato de revolução, que nos ensina
que algo deve ser feito para contestar o rumo incerto do país.
Terceiro
capítulo, Sem Sombra de dúvida, conta a estória de um homem negro, um
ex-combatente, que trabalha como guarda-noturno
numa casa colonial. A narração começa com a morte misteriosa do patrão.
Há possibilidade, segundo consta na leitura do romance, de que a causa da morte
fosse uma overdose. Ou ainda, por vingança em relação à questão racial daquele
período: o envolvimento do patrão com uma menina negra: “O único dia em que
tinha ficado zangado foi no caso daquela moça preta ainda muito nova. Isso,
sim, deu-lhe uma raiva grande e ele ficou diante do portão à espera para ver o
rosto dela (SILA, 2002, p. 364).
A estória desse
terceiro capítulo teve uma interrupção ou corte proposital na narração. O
narrador omnisciente volta ao passado em que o guarda-noturno era grande
guerrilheiro contra o regime colonial e a sua luta diária com uma assombração.
Esse corte proposital na narração, a meu ver, destaca as consequências da
guerra colonial sofridas por ex-combatentes, mesmo tendo lutado em defesa de um
propósito nacional. O guarda-noturno sofre perseguição do soldado que tinha
sido a sua primeira vítima. Como podemos observar no trecho abaixo:
Um dia, já depois do fim da
guerra, teve a impressão que durante o dia tinha sempre alguém atrás de si a
persigui-lo por todo o lado. Onde quer que fosse, estava sempre alguém a
acompanhá-lo silenciosamente. Não tinha medo de nada, por isso não ligou. Só
que depois de algum tempo começou a chatear-se com aquela perseguição. Por que
é que alguém vinha sempre atrás dele, a perder o seu tempo, se havia tanta
coisa a reconstruir no país? Tomou a decisão, tinha que acabar com aquilo
imediatamente (SILA, 2002, p. 367-368).
O quarto
capítulo narra a história de dois personagens: Nham-nham e Amambarka. Os dois
representam as figuras de governantes africanos que desconhecem as realidades
dos seus povos. Todos eles são “timbas” (animais sujos). O título faz
referência aos conflitos internos vigen no cenário político guineense. O título
já sugere a uma leitura adiantada, que facilita melhor compreensão da obra. A
proposta do autor nesse capítulo, demonstrada na figura de Nham-nham, remete a
onomatopeia bem conhecida no contexto guineense, que indica algo mastigado com
pressa: alusão aos espíritos egoístas dos líderes guineenses. Nham-nham é
imagem de uma liderança antes da abertura democrática. Nesse período o poder
era absoluto, exercido por um único mandatário. Por outro lado, o subordinado
Amambarka, a meu ver, é a figura dos conselheiros presidenciais que não emitem
opiniões contrárias, com medo de perder o emprego, agradando sempre seus chefes
nas suas ambições pessoais e inverdades:
– O vento lá fora como é que
está?
– Está como tudo na nossa terra: calmo e pacífico... normal!
– E as ruas?
– Estão cheia de gente.
– Cheias de gente?
– Não, vazias. Completamente vazias.
– Todas vazias?
– Todas !
– Diz-me a verdade, Amambarka... ( SILA, 2002, p. 381)
O quinto
capítulo narra estórias de duas personagens femininas em um beco: uma mais
velha e outra mais nova. As duas vendiam amendoim durante a noite, em busca de
saída perante a situação miserável em que se encontraram. Mama Sabel, por
exemplo, a mais velha, encontrava-se doente, com pés inchados, sem filhos e
netos e, ainda, sem uma aposentadoria. Tinha que passar a maior parte da noites
vendendo amendoim no beco, para sua própria sobrevivência. Na primeira conversa
com a menina sem nome, Mama Sabel demonstra uma postura altiva e madura, ciente da realidade social e política do
país:
– Estou farta de te avisar, Mama Sabel. Já não tens
idade para esta vida. Isto aqui não é para ti!
– E o dinheiro, minha filha... É desta vida que eu
vivo... – as palavras saíram a custo, carregadas de uma melancolia mal disfarçada.
– O dinheiro-
repetiu a rapariga, abrindo a carteira com gestos que denotavam certo
nervosismo. - O dinheiro, aqui está ele. Vale mais que toda mancarra que tens aí. Toma e vai embora
daqui. Vai para casa, Mama Sabel
– Não posso aceitar esse dinheiro...
– Não queres?
– Não posso!
– Não podes porquê? És capaz de dizer porquê? Vá, diz!
– É dinheiro sujo.
– Este dinheiro é sujo? Esse aqui? Não me faças rir,
Mama Sabel. Este dinheiro é mais limpo
que aquelas notas velhas que tens enterradas sabe Deus onde (SILA, 2002, p.388).
A rapariga sem
nome, muito contrária à visão da velha, revela uma atitude oposta em relação ao
espírito de honestidade, buscando ganhar a vida, aplicando truques nos seus clientes com a sua caneca que tinha
aparência de ser maior por fora, porém dentro estava cheia de papelão (SILA,
2002, p. 392). Além desses truques que fazia com seus clientes, a moça
prostituía-se. Em nenhum momento se importava com sua responsabilidade,
contribuindo, assim, para o desenvolvimento do país. Sila, através dessas duas
personagens, retrata de forma inteligente as desigualdades sociais existentes
no país, e mostra a maneira como a classe mais baixa se comporta diante delas.
É o que aponta a epígrafe da obra: se
fere ala, fere bonde ko fere?
O sexto capítulo
conta a estória do lixo, através da personagem, que provavelmente pelas
descrições feitas nos remete a Mama Sabel, uma das protagonistas do quinto
capítulo, já comentado aqui. Mama Sabel ficou doente por alguns dias, quando
retornou ao local de serviço, deparou-se com uma grande quantidade de lixo ao
seu redor. Vale ressaltar que a imagem
do lixo aqui mencionado é uma representação alegórica da corrupção no país. A
indignação desse desleixo que provocou a aglomeração do lixo é demonstrada na
fala da própria Mama Sabel:
– Todos os que estão aqui
sabem que fui alvo de injustiça. Este sítio aqui, eu sempre cuidei dele;
varria-o todos os dias, cuidava dele como cuido da minha casa. Estava sempre
limpo e por isso muitas vezes as crianças vinham aqui brincar. Elas corriam e
jogavam aqui durante todo o dia. Mas o que é que aconteceu depois? Vocês todos
estão a ver. Este lixo veio para aqui sem ninguém o chamar (SILA, 2002, p.
402).
O poder é o
tema desenvolvido no sétimo capítulo. Nesse capítulo, Djiba Mané, a personagem
sem nome no capítulo 5, reaparece nessa estória com outras personalidades
diferentes com as que vimos no capítulo anterior. Ela volta ao seu espaço de
serviço antigo, um night club, rejeitando categoricamente ser chamada de Djiba
Mané por suas colegas, mas, sim, Mary Jo. “Quando entrou no night club disse a
todas as amigas com quem sempre partilhava a mesma mesa que tinha mudado de
nome” ( SILA, 2002, p. 412). Sila, com a personagem “Djiba”, apresenta
elementos relacionados à identidade e ações negativas que as pessoas usam para
deter o poder. Além disso, Sila nos mostra uma personagem que por si só
conseguiu descobrir que a sabura (momento ou atividade que dá prazer ou
alegria) que o poder nos oferece é mais gostosa que o sexo. Ela vai realizar
essa invejável mistida, custe o que
custar. A referida personagem revela-nos a hipocrisia dos políticos demagogos
que jogam ao lado do povo, mas, quando chegam ao poder, dão prioridade aos
interesses pessoais.
No capítulo
oito, Abdulai Sila insiste na representação crítica do poder, por intermédio da
qual o protagonista procura colaborar para pôr fim à corrupção e ao escândalo
no país, porém é assassinado pelos seus próprios companheiros. A sua figura, a
meu ver, é representação dos bons filhos honestos da Guiné-Bissau, que lutaram
para direcionar seus pensamentos em direção ao bem comum da nação, porém,
acabaram sendo mortos pelos ‘lobos maus’, o que nos leva a concordar com o
ditado popular segundo o qual ‘a corda arrebenta sempre pelo lado mais fraco’
“– É altura de mudar algumas coisas no país... "Antes de poderem apreender
o verdadeiro significado daquelas palavras, os presentes ouviram uma rajada de
metralhadora à porta do klandô. Quando saíram, encontraram Yem-Yem no chão, com
o corpo crivado de balas” ( SILA, 2002, p. 435).
O protagonista
da estória Yem-Yem, que era um policial carrasco, reconhece suas ações
negativas de maltratar os prisioneiros e assume atitude honesta, pagando a
conta das bebidas ingeridas e o preço do copo partido. Por fim, pediu
desculpas à proprietária e às restantes
pessoas presentes no bar. Abdulai Sila, através da personagem Yem-Yem, mostra a
força da palavra e seu incômodo... Por outro lado, acredita na mudança do ser
humano. A transformação de Yem-Yem em novo homem é a imagem de uma nova era:
O homem que todos
odiavam e temiam adquirira um aspecto inofensivo. A farda fora substituída por
um bubu branco, bordado no peito com motivos de beleza extraordinária. A barba
espessa e medonha também desaparecera, deixando à vista um rosto charmoso onde
sobressaíam uns olhos grossos e brilhantes que inspiravam confiança e
tranquilidade. Quando parou de beber, ficou durante longos instantes com os
olhos agarrados ao tecto. Depois fixou-os na garrafa vazia. Era uma garrafa de
água natural, pura. Pura quase como os sentimentos que passou a ter ( SILA,
2002, p. 435).
O nono capítulo
dá voltas ao passado, contando estórias do Madjudho – um paciente visto com um
sorriso inocente, somente o que lhe restava como humano. Na tentativa de
compreender a mensagem do mar, descobre que é portador de uma doença incurável,
no entanto, não lhe custou nenhuma preocupação o diagnóstico dos médicos
“Diagnosticaram-lhe uma doença, sem cura. Quando soube, passou o resto de dia a
rir. No dia seguinte tinha nascido aquele sorriso com que premiava os médicos
todos os dias” (SILA, 2002, p. 439).
De fato, era um
sorriso puro, que acontecia naturalmente. Segundo o paciente, o vírus da doença
é o resultado dele não ter encontrado a mensagem que fora buscar na terra
longe do seu país. Abdulai Sila, nessa
passagem, nos revela o riso dos africanos perante o sofrimento e o trágico. No
mesmo capítulo, aparece uma personagem feminina, não identificada, que se
ofereceu a se solidarizar com a seu estado. Além dessa doença, Madjudho estava
sem a memória do passado. “Diziam o nome do lugar onde devia ir buscar a
mensagem. Não me lembrei. Fiquei naquele lugar apertado durante muitos dias” (SILA,
2002, p. 444). Era uma mensagem da qual as pessoas da sua terra dependiam; por
isso o protagonista não podia voltar sem ela. Tratava-se de uma mensagem de
irmandade e amizade entre as pessoas, uma mensagem de esperança e tranquilidade.
O autor faz
alusão às intrigas e desavenças entre os políticos guineenses, após a
independência, que deram origem a muitos conflitos armados no país. Um dos
exemplos é a guerra civil de 1998, entre o governo e a “Junta Militar”,
liderada pelo ex-brigadeiro Ansumane Mané. O fim da estória desenrola-se no
cemitério, numa ação fantástica em que Sila ressuscita os mortos para corrigir
a situação de uma vez por todas (SILA, 2002, p. 448). Essa imagem pode nos
levar a uma reflexão profunda sobre a realidade do país: o ato de resistência
deve sempre mover as pessoas a uma ação conjunta na luta contra a corrupção
generalizada.
Já o décimo
capítulo traz o relato do fim de uma era. Em Mistida não há uma só estória, mas, sim, um conjunto de estórias
que se cruzam entre si: todos os personagens lutam em busca de uma memória
perdida: resgate de valores perdidos. Nesse último capítulo denominado Kabantada, que significa em língua
portuguesa, "final", todos os personagens se uniram e conseguiram
derrubar o poder de Nham-nham e Amambarka. “É a vitória do bem sobre o mal, da
esperança sobre o fatalismo”, referiu o autor na entrevista anexada no final deste
trabalho. Os defuntos ajudaram os vivos a tirar o lixo do país, alegoria de
retorno do respeito, da dignidade e dos valores esquecidos, dando uma nova vida
à população local. Nesse capítulo, Abdulai Sila, como um dos seguidores de
Amílcar Cabral, assume seus ensinamentos para provar que somente com espírito
de união e amor podemos derrubar os mais fortes:
Havia muita gente e diversas
máquinas a remover o lixo. Parecia a maior festa que jamais fora organizada
naquela terra. As toneladas de lixo
acumuladas durante vários anos de sujidade e escuridão, iam sendo finalmente evacuadas.
Eram inúmeras relíquias de uma era acabada, que estavam a ser publicamente
esmagas umas contra as outras, trituradas até ficarem reduzidas a pó (SILA,
2002, p. 455).
Mesmo que a
aproximação entre os romances Terra Sonâmbula, de Mia Couto, e Mistida,
de Abdulai Sila se mostre um tanto inevitável (e válida), o diálogo entre as
duas obras possui seus próprios limites. Tanto na obra do escritor moçambicano
Mia Couto, quanto na obra de Abdulai Sila, podemos observar narrativas que
ganham diferentes vozes, através de personagens que transitam, constantemente,
pela travessia da vida e da morte, numa vivência dual, multiperspectivada,
tensa e em contínuo desconcerto.
Terra
Sonâmbula fala dos sonhos e de esperanças de um
regresso ao passado e mostra acima de tudo a força do sonhar. Já o romance de
Sila fundamenta suas raízes em um discurso dialógico e autoreflexivo,
contemplando na estrutura da obra a perda da memória, a plurissignificação e a
interação dos contrários, passando uma visão muito além do que podemos
imaginar. Segundo Augel, “em Mistida,
Abdulai Sila continua, e "com mais agressividade, sua linha de crítica
social, a dissecação dos males presentes nas sociedades africanas, com o afiado
bisturi de sua palavra, revelando uma intenção transfiguradora retratada”
(AUGEL, 2007, p. 316).
O resumo das
obras referidas não pretende fazer uma comparação mais aprofundada entre esses
dois autores e suas respectivas obras, mas, sim, mostrar que as duas têm algo
em comum. Ainda dentro da questão da narratividade, é possível perceber que a
recriação da oralidade, dentro do romance de Mia Couto, ganha importância a
cada relato, a cada fala. Historicamente, as experiências, nas culturas
africanas, eram passadas de geração em geração de forma oral. Após a
colonização, acentua-se o uso da escrita, principalmente na língua do
colonizador. Devido à importância da oralidade nas culturas africanas,
observamos essa presença na sua literatura pelos elementos da oralidade são
inseridos no texto.
Mistida, como vimos, do
primeiro ao décimo capítulo, a memória de cada personagem é narrada de forma
imaginária, sendo preciso uma boa reflexão para entender a trama ficcional
desse autor. Deste modo, concluímos nossas reflexões com um trecho de uma
entrevista realizada por mim com o autor, anexada no final deste trabalho: “se
noutras partes do mundo o escritor tem tradicionalmente o dever de ser
porta-voz dos que não tem voz, no nosso país esse dever é mais acentuado, sendo
ao mesmo tempo moral, ético e até patriótico”.
3.3 Odete Costa Semedo: a sua maneira viva de contar estórias em djênia
– Histórias e passadas que ouvi contar.
Não se pode
falar da literatura guineense sem citar Maria Odete Soares Costa Semedo, uma
mulher gigante como as asas da imaginação. Odete Semedo, como é mais conhecida
no mundo literário, nasceu em Bissau, capital da Guiné-Bissau, em 7 de novembro
de 1959. A autora fez seus estudos secundários no liceu nacional Kwame
N`krumah, em Bissau. Nos anos 1989-1990, licenciou-se em línguas e literaturas
modernas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Nova
Lisboa. É doutora em Letras (Literaturas de Língua Portuguesa), pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS), é investigadora sênior do
INEP, na Guiné-Bissau. É facilitadora de
ações de formação no domínio do género e desenvolvimento no contexto africano,
literaturas e culturas, tradição oral guineense e literaturas em língua
portuguesa.
Voltando ao
país, após anos da sua formação, Semedo foi coordenadora do projeto de Língua
Portuguesa no Ensino Secundário, diretora da Escola Normal Superior Tchico Té;
professora da mesma instituição acadêmica, diretora-geral do ensino da Guiné,
presidente da Comissão Nacional para a UNESCO. Nos anos de 1997 a 1999 e de
2004 a 2005, a autora desempenhou cargo de Ministra de Educação e Saúde,
respectivamente. Entre 2012 a 2014, foi a Reitora da Universidade Amílcar
Cabral. Odete Semedo teve participação no filme “Olhos azuis de Yonta”, do cineasta guineense Flora Gomes.
Nas últimas
eleições legislativas de 2019, Odete Costa Semedo foi eleita deputada da Nação,
pelo PAIGC, e assumiu o cargo de Ministra da Administração Territorial e Gestão
Eleitoral no novo governo do país.
Odete Semedo é
autora de diversos artigos sobre as tradições orais, de livros de poesias,
contos, e, em 2010, defendeu a sua tese de doutorado sob título: As mandjuandadi – Cantigas de mulher na
Guiné-Bissau: da tradição oral à
literatura.
Como já
demonstramos, no capítulo II, o pioneiro de estudos orais guineense foi o
cônego Marcelino Marques de Barros. Marques de Barros dedicou bastante do seu
tempo nas recolhas de cantigas, provérbios e adivinhas, com intuito de exaltar
a tradição oral guineense. Outro nome a ser destacado nesse processo de
valorização cultural é o do linguista Benjamin Pinto Bull que, em 1989,
publicou O crioulo da Guiné-Bissau:
Filosofia e sabedoria. Essa obra abraçou os mesmos princípios de Marcelino
de Barros, pautando-se no mesmo espírito de valorização da tradição cultural
guineense.
Odete Semedo é
um dos destaques nessa linha de pesquisa em prol de valorização da tradição
oral, apesar de ser mais conhecida como poeta. Desde a sua volta à
Guiné-Bissau, isto é, depois da sua formação em Lisboa, a autora tem investido
grande parte do seu tempo em pesquisar as cantigas de mandjuandadi, em muitos aspectos semelhantes às cantigas
galego-portuguesas. Ela mesma lembra a própria experiência:
Uma das experiências boas foi a realização de
trabalhos para as disciplinas, entre os quais destaco um sobre as cantigas galego-portuguesas,
que me deu gosto fazer e que me trouxe à memória as cantigas que escutava minha
mãe cantar: as cantigas de mandjuandadi. Aspectos universais como o amor, a
amizade, o escárnio que se discutia nas cantigas galegoportuguesas estão presente
nas cantigas da minha terra que as outras me traziam à memória (SEMEDO, 2010,
p. 22).
Semedo foi a
primeira mulher guineense a publicar um livro individual de poesia, Entre o ser e o amar (1996). Antes dessa
publicação, ela já havia participado com seis poemas na coletânea Kebur: Barkafon di poesia na kriol,
sendo ela e Dulce Neves as únicas mulheres participantes da obra. No livro Entre o ser e o amar, a autora mostrou
maturidade literária, com estilo próprio e pioneiro em versos em crioulo e português.
Semedo tem encantado gerações com as palavras de resistência em favor da
emancipação das mulheres na sociedade guineense.
A tese
de doutoramento, As Mandjuandadi-
Cantigas de Mulher na Guiné-Bissau: da tradição oral à literatura,
confirmou o quanto a autora, desde muito cedo, interessou em preservar a
memória coletiva, através da tradição oral. Quando lançou a voz interrogativa e
indecisa, não sabendo em que língua escrever, para contar histórias de homens e
de mulheres do seu chão, Odete Semedo pretendeu estabelecer duas pontes, duas
línguas, dois mundos em um só. A poetisa enfatiza e faz referências às
tradições orais - as histórias que andam de boca em boca e de geração a
geração. Referências nas quais ela pode melhor desenhar o seu mundo de pertença.
A autora é ciente da valorização da tradição oral e a necessidade de
preservação do património cultural guineense. Também é ciente das forças e do
poder da língua portuguesa para alcançar gentes de outras travessias, por isso
sentiu necessária cantar em duas línguas. Como bem observou Moema Augel:
Consciente disso, Odete Semedo faz a voz enunciadora a partir de um
locus específico que é a tradição animista guineense, a dos Mandjaco, dos
pepel, dos Balanta, da ligação metafísica não com a ancestralidade vagamente
“africana”, mas com os irans e totens, protetores das linhagens da nação
guineense ( AUGEL, 2007, p. 367).
A
conscientização das riquezas dessa tradição oral motivou Odete Semedo a
publicar, em 2000, dois volumes de histórias baseadas em tradições orais
guineenses, que afirmou ter ouvido contar pela voz dos mais velhos, e outras
criadas por ela mesma, com intuito de preservar a memória cultural. A escolha
de publicar os dois volumes: Sonéá:
histórias e passadas que ouvi contar I e Djênia: histórias e passadas que ouvi
contar II, a meu ver, tem grande importância, na medida em que possibilita
buscar no passado a nossa própria identidade, para assim compreender que a
tradição oral é um patrimônio cultural e precisa ser conservada como um dos meios
eficazes para entender a nossa existência na sociedade na qual estamos
inseridos.
Os dois volumes
revelam ao público leitor os costumes tradicionais guineenses baseados nas
vivências locais. A autora também aborda, com ironia, certo estranhamento e certas
espertezas que incomodam e confundem as comunidades rurais menos familiarizadas
com a modernidade após a independência do país.
As dez
histórias que compõem os dois volumes não prometem testemunhar verdades, e sim
registram como um pano de fundo uma mentalidade corrente em certos ambientes,
quando alguém procura livrar-se da responsabilidade da autoria da notícia dada,
ou uma passada, começando a narração com a expressão "ouvi contar". A
autora assim explica esse costume:
A expressão ouvi contar traduz um pouco a tão cultivada cultura
guineense de N obi kuma – ouvi dizer –, em que jamais se sabe a origem daquilo
que alguém diz ter ouvido. Porque, no fundo, quem diz ter ouvido dizer, ter
ouvido contar, é na maioria dos casos o autor da passada, mas que, no entretanto, não quer assumir a
responsabilidade ou as consequências que a repercussão dessa passada pode vir a ter. E os mais
ve-lhosdizem: Nobi! I ermondi ˂˂ bota
verdi p apanha maduru>> – Ouvi
dizer! É irmão de <<plantar verde para colher maduro.>>. (SEMEDO,
2000, p.15).
Sendo assim,
Semedo, embarcando nessa habilidade dos guineenses, não assume a autoria dessas
histórias, esquivando-se das possíveis repercussões das mesmas. Daí, ela
assegura ter-se inspirado nas histórias que teve oportunidade de ouvir em
criança, narrativas que buscam nos despertar para o mundo tradicional; o que é
posto a prova com o termo “ouvi contar”, expresso inclusive no título da obra,
revela-se como uma estratégia da
narradora para fugir das repercussões da sua própria fala.
Todas as
histórias de dois volumes voltam-se para a dualidade do universo tradicional e
moderno guineense, buscando recuperar os valores tradicionais, que oscilam,
cada vez mais, com a interferência do mundo ocidental e natural evolução dos
tempos, também, questionando a tradição e as realidades do dia a dia dos
guineenses. Na primeira página do segundo volume, autora convoca-nos a penetrar
no fundo de todas as histórias contadas, compartilhar o silêncio e a dor ali
presentes. É a própria Odete que levanta a voz:
Nestas folhas...
Silêncio falante
Choro cantado
De pastros misteriosos,
Que mais poderá ser uma
história,
Senão um instrumento
fenomenal de comunicação?![72]
Em Djênia - histórias e passadas que ouvi contar II são histórias baseadas na cultura guineense, onde podemos encontrar
práticas rituais, lendas e superstições do povo da Guiné-Bissau. Cada história
narrada, a meu ver, apresenta um confronto entre a tradição e a realidade da
modernização. Odete Semedo, conhecedora da sua própria cultura, é testemunha
viva dessas duas manifestações em um espaço em que a tradição constitui
elemento chave da vivência do seu povo. Por isso, Semedo recorre ao pretexto de
ter ouvido contar essas histórias, a fim de questionar alguns males que a
tradição ainda prega, mas o que temos são estratégias escolhidas pela autora
para não assumir a responsabilidade das suas críticas a algumas práticas
tradicionais, como por exemplo, o casamento precoce e forçado, que adiante
abordaremos.
Aconteceu em Gã-biafada é
o primeiro conto de Djênia: histórias e
passadas que ouvi contar II. Gã-biafada é um dos bairros de Bissau. Essa
área é habitada por maioria dos muçulmanos. Os costumes de casamento arranjado,
por exemplo, é muito comum nessas áreas. Constata-se que dentro da cultura
muçulmana uma menina de menor idade pode casar com um homem bem mais velho –
considerado algo normal, segundo os costumes tradicionais de grupos étnicos
muçulmanos. Essa é temática aborda logo no primeiro conto:
O pai de lamarana, como era prática nesse tempo, tinha prometido a mão
da filha a um vizinho muito mais velho do que ela. Um homem rico e poderoso,
proprietário de bolanhas e pontas. O pai de Lamarana até já tinha recebido um
adiantamento da quantia do dote que o noivo devia pagar. Como era costume nessa
altura, a noiva era a última a saber. Aliás, só depois de realizada a transação
entre o pai e o pretendente é que era dado a conhecer à noiva o seu destino.
Aconteceu que Lamarana se apaixonou por um jovem da sua idade e que se
encontrava com ele sem o conhecimento do pai (SEMEDO, 2000, p.20).
Até os dias de
hoje, na cultura tradicional guineense, os pais decidem sobre os futuros das
suas filhas em troca de bens materiais ou em benefício de um trabalho no campo
feito pelo noivo. Entretanto, no contexto guineense, de modo geral no africano,
questionar as práticas rituais é ainda visto como uma forma de desvalorizar a
cultura local.
Nos primeiros
parágrafos do conto, sentimos a indignação em relação a essas práticas. O conto
revela-nos a vida cotidiana na sociedade guineense por meio de um olhar crítico
de narrador omnisciente, Mussa, futuro noiva da Lamarana, fez questão de
apressar a data do casamento, tendo em conta os rumores que ouvia sobre sua
noiva:
O tempo passava e Lamarana tornava-se cada vez mais numa bonita e
esbelta adolescente, com os seus grandes olhos e as tranças corridas com
missangas a cair, que sempre trazia. O velho apaixonado, tendo ouvido
comentários acerca da beleza da sua pretendida, apressou o noivado (SEMEDO,
2000, p. 20).
Lamarana, com
medo de ser culpada por uma futura desgraça na família, acabou aceitando
casar-se com o velho Musa. Contudo, programava a fuga na noite de lua com Saliu
(o namorado). Na cerimônia do casamento, a noiva embebedou o noivo e fugiu com
Saliu. “Entretanto, Mussá acordou, passou a mão pela cama... e nada! Num
sobressalto, sentou-se e num só gesto se levantou. Saiu, gritou pelos criados,
mas ninguém sabia de Lamarana. Furioso, pegou numa catana bem afiada e
lançou-se pela estrada afora” [...] (SEMEDO, 2000, p. 24).
As histórias
orais guineenses são marcadas por várias versões. Nessa mesma história há duas
versões: a primeira versão mostra um fim trágico de Saliu e Lamarana. Depois de
terem fugido para o caminho de Gã-biafada, Musa, revoltado, vai atrás deles
e, ao encontrá-los na estrada, lançou mão de sua catana bem afiada, que os
atingiu no peito. (SEMEDO, 2000, p. 24-25).
É como se a
narradora fosse ciente da dor que o final da narrativa causou nos ouvintes e
procurasse dar outro final diferente para a mesma narrativa. Na segunda versão,
portanto, Saliu e Lamarana encontraram-se numa aldeia habitada por
pássaros e apenas por uma "mulher-grande". Essa os orientou no
caminho para sair daquele mundo, praticando o ritual que ela mesma lhes ensinou
(SEMEDO, 2000, p. 32).
Odete Semedo,
por meio do conto em duas versões, nos apresenta a grandeza da tradição
cultural guineense. Ao mesmo tempo, faz uma crítica aberta em relação às
práticas rituais maléficas. No
enredo, a autora, também, nos apresentou várias manifestações de lendas e
superstições guineenses. Um dos exemplos dessas manifestações é caso do
primeiro filho do régulo, que foi transformado em pássaro, por não saber
guardar o segredo contado pelo pai, apresentado na figura do jovem Kelê.
Depois de
tantos dias perdidos na aldeia, finalmente Lamarana e Saliu encontraram seu
destino, despertado pelo canto do pássaro, cumprindo o ritual que a velha lhes tinha
recomendado. Ao lermos esse primeiro conto, percebemos a tempo todo o confronto
entre a tradição e a modernidade. As duas versões da estória Aconteceu Gã-biafada, narradas a partir
da realidade cultural guineense, procuram apontar alguns aspectos da tradição
que, de certo modo, não podem ser negados. Podemos, contudo, questioná-las.
As peripécias do Doutor Amison Na Bai (que significa "eu vou sozinho") é um conto de quarenta e oito páginas, que nos faz
lembrar o conto machadiano "o alienista". A estória se desenrola na
cidade de Bissau, apresentando, de certa forma, a realidade da sociedade
guineense pós-independente em que se assiste o espetáculo da aparência como uma
das estratégias da autora para criticar a atual situação política do país.
Doutor Amison
Na bai é um retrato da sociedade moderna guineense. Bai bu riba é o espaço inventado pela autora para problematizar as
consequências crueis da modernidade. É a estória de Amison na bai e Mbin
Mansebu. Enquanto o doutor desleixado, Mbin Mansebu enfrentava uma longa fila,
acima de tudo irreconhecível, Amison Na Bai, um dos protagonistas da
estória, está ciente de que na cidade de Bai
bu riba só conseguirá se dar bem na vida com uma boa aparência. Ao chegar à
fila, Amison não hesitou em aparentar ser um Doutor, demonstrando uma postura e
a conduta de doutor, tentando, de certo modo, fazer notar a sua presença:
Dando o seu look, o cidadão baiburibense Amison na bai foi chamadoa
retirar-se de fila em caracol, para ocupar uma das longas cadeiras macias da
salita. Foi então que ouviu a conversa das funcionárias que comentavam que só
havia uma pessoa importante para ser recebida pelo senhor administrador
Cadoncítio Québom nesse dia. Tratava-se do doutorado Nbin Mansebu, pessoa de
muito respeito e grande couro intectualno território. Amison Na Bai,
aparentemente desntessado do assunto, observava as imagens de um grande jornal
que tinha entre as mãos (SEMEDO, 2000, p. 43-44).
Se a aparência física fez Amison
Na Bai ser retirado da longa fila, ganhou ainda mais admiração quando usou
termologias difíceis, num tom que só poderia ser equiparado com os doutores.
Tudo isso só fazia crescer a admiração da secretária Ivete, pronta para tomar
rápidas previdências, a fim de resolver os problemas do falso doutor. Como
demonstra o trecho que transcrevemos abaixo:
Amison Na Bai seguiu os
passos da sua acompanhante até ao gabinete do alto dirigente da Administração.
Bateu à porta delicadamente, empurrou-a e entrou. O senhor administrador, que
se encontrava sentado numa cadeira fofa atrás da secretária, levantou-se,
estendeu a mão ao suposto doutor, e mandou-o sentar à sua frente (SEMEDO, 2000,
p. 47).
A permanência
de Doutor Mbin Mansebu na fila, sem nenhum atendimento, mesmo sabendo que o seu
lugar foi usurpado, fez com que ele aprendesse que precisava mudar algo na vida
dele: (SEMEDO, 2000, p.53-54). Odete Semedo, numa linguagem simples e acessível
à realidade de bissau-guineense, mostra o quanto o comportamento de certas
pessoas e de certas circunstâncias, além do status social estão associados à
aparência física. Verificamos também, que, o homem enquanto ser social, está
sujeito à mudanças.
Ao concluirmos
a leitura do conto As peripécias do
Amison Na Bai, percebemos, na figura desse personagem, uma sociedade
fragilizada, onde seus cidadãos preocupam-se mais com o que está por fora, em
vez de identificar-se com as qualidades que estão por dentro. Amison Na Bai é a imagem de um país, que
vemos afundar a cada dia. Essa narrativa, por mais que seja longa, apresenta um
único sentido: aproximar-nos da realidade sociopolítica guineense.
Djênia, título
da terceira estória, conta a história de uma menina e de mais três pessoas que
viviam com ela: o pai, a mãe e a velha Kadama. Essa família vivia numa aldeia
sem nome, muito distante e eram muito felizes. Djênia, a protagonista, gostava
muito de ouvir estórias, quase passava seu tempo todo ouvindo a velha Kadama
Pesangue contar estórias. Ainda criança, a protagonista perdeu a mãe, tendo em
conta a maldição que ocorreu na família. Com desejo de ter uma mãe, para evitar
a solidão que a atormentava, ela pede ao pai, insistentemente, que arrume uma
mulher que lhe sirva de mãe. Djênia havia conhecido uma mulher, de nome
Andressa, na fonte aonde ia frequentemente buscar água para o banho do pai, que
passava o dia todo a trabalhar no campo. A amizade da Djênia e de Andressa, a
moça conhecida na fonte, cresceu muito, e a confiança da rapariga aumentou, ao
ponto de pedir ao pai que casasse com a nova amiga.
A “mulher
grande”, sabendo do desejo da neta e do interesse de Nsumbo, falava sempre por
via dos provérbios: “uma chuva, duas chuvas, dez chuvas, vinte chuvas, serão
suficientes para conhecer o pecador? Não! O pecador, ele mesmo não se conhece!”
(SEMEDO, 2000, p.94). Riam-se da velha, principalmente Djênia, que dizia ao pai
que a “mulher-grande” não batia bem de cabeça. Djênia não media forças nas
palavras da velha, que o ser humano mesmo não conhece a si mesmo.
Não passou
muito tempo, Andressa começa a maltratar a enteada (Djênia). Obrigava a coitada
a fazer trabalhos duros de casa, a vigiar o pé de figueira, e esta não podia
deixar que os passarinhos comessem um fruto de figueira, e fazia contas antes
de ir à fonte. Djênia, cansada de maus-tratos, rogava aos passarinhos que não
comessem os frutos. Mas seu pedido não surtia efeito:
Assim, um dia Djênia
deixou-se adormecer debaixo do pé de figueira e um passarinho malvado levou um
fruto. E ela que havia pedido aos passarinhos para não levaram os frutos, pois
sabia que caso isso viesse a acontecer o castigo não seria nada suave.
Andressa, que tinha ido à fonte tomar o seu banho habitual, voltou bem vestida
e a cantar, e foi direto ao quintal contar os figos que estavam no pé. Viu que
estava a faltar um, imediatamente mandou chamar o covador de fontes da sua
tabanca a quem pediu que cavasse uma cova debaixo do pé de figueira. E foi aí
que enterrou a Djênia viva, entre gritos e choro desesperado desta (SEMEDO,
2000, p.97).
A mulher-grande, segundo a narrativa vivia numa dependência. E o bom ditado
crioulo diz: kombersa di magru ka ta
obidu na kau di fola baka (a opinião de uma pessoa pobre não é levada em
conta). Os conselhos da “mulher-grande”, por ser pobre e dependente, eram
ignorados. Nesse conto, percebemos que a sabedoria é transmitida por vias dos
ditos populares. Durante toda a leitura, nota-se a importância da presença dos
“mais velhos” na sociedade africana. Como nos demonstra a fala prudente da
própria “mulher-grande”, após Djênia ter reconhecido seus conselhos:
E há outra coisa, Djênia: quando o pecador
ambiciona algo, faz de tudo para conseguir, tentando agradar aos que julga
serem portadores daquilo que tanto quer – porque está à procura. Quando
alcançar o seu objetivo, o comportamento pode mudar totalmente – porque já tem
o que procurava. Por isso, não te esqueças nunca de que ando à procura e já
tenho não são a mesma coisa, e provocam impulsos diferentes (SEMEDO, 2000, p.
103).
As expressões
da velha, durante toda a estória, parecem seguir uma linha filosófica. A fala
da “mulher-grande” encerra o conto, mostrando, de fato, que “os mais velhos”,
no contexto africano, são pessoas que enxergam o futuro, e falam desse futuro,
na maioria das vezes, por vias dos ditos populares. Vale aqui ressaltar a
importância que esse patrimônio cultural guineense tem para o povo.
A estória de
Djênia nos apresenta uma sociedade cheia de mistérios, sobretudo em função do
poder das palavras nesse espaço em que a oralidade é presente. Djênia
representa tantas meninas que a orfandade deixou com marcas tatuadas no corpo.
É ainda a representação de maus-tratos de tantas meninas na sociedade guineense.
Já em relação à personagem Nsumbo, a autora quis passar a ideia de que não se
pode ter pressa nas grandes decisões.
Odete Costa
Semedo, como em outros contos, enaltece a figura e a importância do “mais
velho” na sociedade africana. O poder que estes têm de revelar segredos dos
tempos futuros através das palavras. A palavra chuva citada várias vezes no
discurso da “mulher-grande” é a metáfora do tempo. E duas ou três chuvas não
são suficientes para conhecer uma pessoa. A referência da chuva era uma das
formas que a velha usou para advertir Nsumbo, para não tomar decisões
precipitadas em relação ao casamento com a Andressa. Mas os sentimentos
amorosos do Nsumbo não sabem contar “chuvas”.
Mesmo com
tantos conselhos da “mulher-grande”, por vias de ditos, Nsumbo decidiu pedir
Andressa em casamento. Se em Aconteceu em
Gã-biafada, numa das versões, Odete Semedo apresenta as consequências em
desobedecer a tradição, caso não cumprimento dos rituais, revelada nos
personagens Saliu e Lamarana (SEMEDO, 2000, p.25), em “Djênia”, a autora mostra
consequências futuras que um homem pode correr, sofrer, quando decide casar-se
com uma mulher que mal conhece.
A crença nas
superstições e lendas no continente africano é vista ainda como uma das formas
mais vivas de manter a ligação entre o passado e o presente. A valorização pela
tradição de superstições ajuda o povo africano a compreender, e ao mesmo tempo
preservar os costumes passados pelos seus ancestrais. Os africanos, de uma
forma ou outra, acreditam que os espíritos de outros mundos comunicam-se com os
espíritos vivos durante a noite. Por isso mesmo é que os sonhos ganham tantas
interpretações no mundo africano, e essas interpretações dentro da cultura
africana podem ganhar significados e influências positivas ou negativas na vida
dos indivíduos na sociedade. Sendo assim, na tradição cultural guineense, os
sonhos não são vistos como uma imaginação da existência humana, mas, sim,
cumpre-se a ideia de que os “mais velhos” são capazes de entender os mistérios
de vida.
O pequeno
conto, “Naquela noite”, escrito apenas em cinco páginas, explora o poder do
sonho no quotidiano guineense. A personagem do conto ora analisado tenta
recuperar os sonhos que teve durante a noite. Mas a memória esvazia-se das
palavras transcritas numa carta resposta de um bilhete que encontrou, por
acaso, no meio de um caderno que, folheava, na pressa de escrever algo para
passar o tempo daquela noite de insônia. O bilhete era da sua irmã, Tina,
despedindo-se desta, e dizia: “gostei do teu país, uma terra linda, pequena e
limpa”. Um abraço da tua querida amiga Rosa Vilas, de Angola” (SEMEDO, 2000,
p.108).
A personagem
angolana demonstra um amor profundo à Guiné-Bissau. Em poucas palavras ela o
expressa: "terra linda, pequena e limpa". Esse pequeno fragmento nos
leva a pensar o país, em função desta pequena afirmação. A palavra ' limpa'
pode carregar vários sentidos, que podem nos induzir a questionar a saudade do
país demonstrada na personagem angolana, tendo ela vivido apenas cinco dias por
lá. Podemos concluir que Odete Semedo sonha com um país limpo, sem lixos, sem
manchas nem sangue. E a palavra “limpa” é uma forma irônica de apresentar a
ilusão da independência.
No final do
conto, percebemos que não existiu nenhuma carta. Julgamos ser um recurso que a
autora usou para demonstrar o sonho e a esperança que cada guineense alimenta
em ver um país limpo e sem sujeira:
Sobressaltei-me com o barulho da porta. Afinal tinha
conseguido vencer a insónia e adormecido, com o caderno aberto servindo-me de
travesseiro. Abri o caderno à procura da carta que tinha escrito e... nada! Não
havia carta nenhuma. Afinal tinha sido apenas um sonho. E ficou-me a sensação
de que era uma carta bem bonita. Só que já não me lembro de nem do conteúdo do
bilhetinho. E a Rosa de Angola? Será que foi tudo um sonho? (SEMEDO, 2000, p.
110).
O conto
revela-nos, na voz narradora, o sonho de um país fragilizado. Vemos, portanto,
através dos personagens e da narração da estória, a corrupção generalizada no
cenário político guineense, que insinuou guerra civil no passado e cada vez
mais insinua golpes de Estados no país. Tudo isso aponta para a sujeira no
país, demonstrada de forma conotada no conto. A autora imagina o país nos
sonhos, questionando suas fragilidades, tentando produzir os desejos de um país
lindo e limpo entre sonhos e imaginações de uma nova Guiné-Bissau: ‘linda,
pequena e limpa’ (SEMEDO, 2000, p. 108).
Durante toda a
leitura do livro ora analisado, percebemos, também, o questionamento de alguns
rituais que, até hoje, são vistos como tradicionais, e são ainda indispensáveis
para o questionamento da cultural local, como no caso do casamento forçado e
precoce. Odete Semedo, por vias imaginárias, usa algumas metáforas difíceis para
questionar essas práticas, como podemos notar numa das versões da estória do
Saliu e Lamarana, em Aconteceu em
Gã-biafada. Também observamos a mesma crítica no livro Sonéá: histórias e passadas que ouvi contar I, em que a personagem
Sonéá é obrigada a abandonar a capital, e seguir para aldeia, para casar-se com
um homem muito mais velho (tio Kilin), respeitando, assim a voz dos pais.
(SEMEDO, 2000, p.93).
Através dos
dois volumes de contos, a autora nos mostra como a tradição ainda tem grande
influência nas vidas das pessoas. Apesar disso, em alguns contos podemos observar a visão da autora em relação
à superação desses costumes na cultura guineense. Além de criticar essa prática
do casamento na cultural local, vale destacar como a autora problematiza a burocracia
observada constantemente na administração pública guineense. Nos dois contos,
Semedo apontou grandes problemas socioculturais da Guiné-Bissau, após a
independência: o espírito burocrático, sustentando no aparelho de Estado, o que
leva as pessoas a procurarem outras saídas para seus problemas. Isso é
demonstrado na figura do Dr Amison na Bai, do conto “As Peripécias de Amison na
Bai”. A autora tenta demonstrar, através dos personagens, como essa burocracia
gera inúmeras peripécias, por parte dos cidadãos, e acaba prejudicando o
processo administrativo do país.
Qualquer
guineense que passou sua infância na Guiné-Bissau já ouviu inúmeras vezes as
estórias de Lobo e Lebre, nas quais a lebre saí sempre como a vencedora, vista,
na maioria das vezes, como a mais esperta. A estória A lebre, o lobo, o menino e o homem de pote não foge a tal proposta
que, no meu ponto de vista, assume principais características de contar e
recontar as estórias que passam de boca em boca. No conto ora analisado,
percebe-se que todos os personagens, sejam eles humanos, sejam eles animais,
usam, no mínimo, um jeito para sair da situação da fome que abalou a aldeia.
A estória se
desenrola a partir da infelicidade de um homem que tinha um terreno árido, o
que lhe impedia a produção de arroz para sustentar a sua enorme família. Diante
dessa situação, o homem decidiu cavar uma fonte. Mas, com todo o esforço feito,
após uma semana a fonte secou. O homem, apelidado na estória como ‘o homem do
pote’, ficou muito desiludido e associou tal azar a um feitiço feito por um
inimigo. Aconselhado, o homem decidiu construir um pote enorme, seguindo todas
as orientações do sábio. Uma das orientações dada era construir um enorme pote
e enchê-lo de água para a prevenção da seca que iria atingir a sua aldeia.
Diante dessa precaução, o homem passou a ser alvo de zombaria pelas outras
pessoas.
Esse conto nos
lembra da passagem bíblica, que relata a história de Noé. Este foi advertido
pelo anjo para a construção de uma arca, a fim de salvar os crentes que
confiavam nas suas profecias.
Tanto a estória da lebre, o lobo, o menino e homem de pote, quanto
a história de Noé, ainda que fossem narradas de maneiras diferentes, possuem
uma caraterística em comum: a sabedoria para vencer o tempo futuro.
A fome é um
grande pesadelo que os guineenses confrontam dia a dia no país. Grande parte da
família guineense só faz apenas uma refeição por dia, usando a expressão local:
um tiro. A seca demonstrada no conto, a meu ver, é a metáfora da fome, que faz
com que cada guineense procure dar um jeito para diminuir a canseira da vida,
mesmo que esse jeito lhe custe o perigo da morte. Como disse a lebre ao lobo: -
"Tio, sabias que depois de sabura a morte não é nada? Se papa-mel alguma
vez disse algo acertado é este dito, não concordas comigo, tio?" (SEMEDO,
2000, p.121).
Ao longo da
leitura do conto, podemos perceber a crítica da autora em relação às
desigualdades sociais no país. Como afirma a voz da lebre: "É verdade, tio
lobo, isto aqui é a cópia do mundo: uns cansados e cheios de fome e de sede,
outros a viverem com fartura. Se quiseres pertencer ao grupo dos que vivem com
a fartura é só vires ao pé de mim, tirar-me estas cordas e ficas logo no meu
lugar a comer feijão e a beber boa agua" (SEMEDO, 2000, p. 120). Tanto a
lebre quanto o lobo concordam que, depois da sabura, a morte não é nada. Foi dessa sabura que a lebre falava. Assustou o menino e lhe implorava que a
amarrasse no quintal do homem de pote cheio de frutas, para não morrer de fome.
O lobo, com a fome que sentia, por seu consentimento, não sentiu receio de ser
amarrado no lugar da lebre.
No entanto,
antes de tudo, que experimentasse a sabura,
como demonstra o trecho, que a seguir transcrevemos: "– Concordo plenamente, sobrinha
Lebre, mas se me deixasses experimentar a sabura
antes de me amarrares, aí ficava com a certeza de que se morrer, morrerei por
uma justa causa" (SEMEDO, 2000, p.121). A fala do lobo nos mostra como
todos são cúmplices de tanta corrupção no aparelho de Estado. O quintal do homem
do pote, a meu ver, representa a riqueza e o poder que, hoje em dia, todos os
políticos perseguem, custe o que custar, não se importando com a situação na
qual vive o povo. O lobo e a lebre no conto, na mesma linha de pensamento,
representam os políticos de hoje: aldrabãos (SEMEDO, 2000, p.121).
A tradição
guineense precisa ser encarada por outros olhares, com um olhar atento às
evoluções do século presente. Enxergar a dimensão e as consequências de certas
práticas no país. É possível continuar com o costume de realização de um
casamento, uma vez que seja livre e de consenso entre os cônjuges. Não podemos
desvalorizar as nossas tradições locais. Mas é necessário que enxerguemos o
quanto muitas delas têm sido prejudiciais e têm nos deixado mortos, feridos e sempre
atrasados em relação ao mundo atual. É preciso olhar para o passado com os
olhos atentos ao presente. Vale a pena preservar os valores tradicionais,
porém, em primeiro lugar, temos que pensar nas almas vivas. Basta ver onde
estamos hoje nos índices de desenvolvimento humano. Percebemos que muitas das
nossas tradições rituais locais têm contribuído bastante para o aumento da
pobreza no país. Lamentamos a falta de visão crítica social do povo guineense,
o grande analfabetismo, a miséria, o desespero dos mais jovens, a pouca
esperança de vida para homens e mulheres. Tal situação é resultado do nosso
voltar as costas ao desenvolvimento de um mundo novo. Precisamos da compreensão
de que é possível acompanhar o desenvolvimento e, ao mesmo tempo, valorizar as
nossas raízes e tradições.
3.4. Rui Jorge Semedo: a voz do novo tempo em Stera di tchur.
Rui Jorge da Conceição
Gomes Semedo é politólogo e investigador associado do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisa. Autor do artigo científico “Uma radiografia do processo
literário guineense”, publicado na Realis (Revista de Estudos Anti
Utilitaristas e Pós-Colonias vol.2, nº2 (2012). É autor de três obras poéticas,
nomeadamente, Stera di Tchur (2001), Retrato (2007) e Sem Intenção: poesia e crítica literária (2013).
Atualmente, é vice-presidente
de AEGUI, presidente da mesa de assembleia geral do PEN Guiné-Bissau, membro da
SGA e cofundador da Editora Corubal. Foi coordenador do Prêmio Literário José
Carlos Schwarz, organizado pelo Centro Cultural Brasil/Guiné-Bissau, durante
duas edições (2011 e 2012). Também foi facilitador do programa filosófico
literário “Café com Letras” e do grupo “Vida-Verso”, ambos projetos do programa
cultural do Centro Cultural Brasil/Guiné-Bissau.
Em 2009, apresentou, no
Centro Cultural da Embaixada de Portugal, uma exposição, em telas de tinta a
óleo retratando aspetos socioculturais e políticos da Guiné-Bissau e da África,
intitulada “Fora de Lugar: negação de direitos e deveres”. Desde 2010, trabalha
na ONG “Tiniguena – Esta Terra é nossa”, organização que tem sido uma
verdadeira escola de educação para cidadania ambiental, concomitantemente
desenvolvendo estudos etnográficos de resgate sobre técnicas e saberes
comunitários das populações locais das florestas de Cantanhez e das ilhas Urok,
no arquipélago dos Bijagós.
O poeta Rui Jorge Semedo é uma
revelação nos últimos tempos da poesia moderna guineense. O autor nasceu em 18
de setembro de 1973, na cidade de Bissau, Guiné-Bissau. É mestre em Ciências
Políticas pela Universidade Federal de São Carlos, com a dissertação defendida
sobre tema: PAIGC: a face do monopartidarismo na Guiné-Bissau (1974 a
1990). Além de três obras poéticas,
publicou em 2008, Ponto de Vista, um livro que contou com 50 artigos em que
autor procurou retratar, de forma mais funda, a realidade sociopolítica do seu
país até aquele presente momento.
Ressalte-se que a maioria
desses textos já haviam sido publicados nos jornais e nos sites que abordam
temáticas sobre realidade guineense, como, por exemplo, o de Fernando Casimiro,
cujo pseudônimo é Didinho. Diante da necessidade de informação da situação
política e social do país, o autor decidiu reunir esses textos em um livro, com
a intenção de divulgar a literatura guineense, expandir seus textos literários
e facilitar mais diálogos e conhecimento sobre o que se passa no seu país. É o
que depreendemos a partir da fala do próprio autor na introdução do livro
supracitado:
Portanto, a intenção de publicar essa
coletânea é de engrossar a nossa embrionária literatura com mais uma obra e,
sobretudo, tornar mais acessível meus escritos, considerando que poucas pessoas
têm acesso ao jornal impresso e à net. E o livro será simplesmente mais um outro
recurso para complementar os já existentes (SEMEDO, 2008, p. 6).
Em 2001, após dois anos de terrível guerra civil na Guiné-Bissau,
Rui Jorge Semedo publicou a sua primeira obra poética, Stera di Tchur inspirado na dura situação de miséria e lamúria que
a guerra de 7 de junho provocou durante onze meses. Em uma conversa, o autor
nos relatou como pegou a caneta e começou a expressar sentimentos da dor que
sentia por testemunhar a tragédia de uma guerra brutal, que havia assistido do
início ao fim.
A palavra Tchur significa
em língua portuguesa: choro, desgosto, ou perda irrecuperável de um elemento da
família. Ressalta-se que Stera di tchur,
na cultura tradicional pepel, é a cerimônia ritual feita depois de uma semana
de falecimento de um membro da família. A cerimônia pode-se estender dependendo
da situação financeira da família enlutada.
Como sabemos, a morte, na maioria dos países africanos, é ainda algo
que desperta muitos sentimentos em longos períodos de questionamentos a
respeito. A superação da perda humana em África passa por um longo período. Em
muitos casos, a convivência com essa realidade é caraterizada pela não
aceitação e questionamentos. É nesse sentido que a solidariedade nesse
continente se estende cada vez mais, pois durante o velório de um membro da
aldeia, toda a comunidade se solidariza, consolando a família enlutada e
ajudando nas despesas necessárias durante os dias da cerimônia.
Para os papéis, por exemplo, quando morre uma pessoa, todos os
membros da aldeia vão à casa da família enlutada para cumprimentá-la, (como se
diz em bom crioulo: falar mantenhas di tchur). O ideal é passar dia e noite com
essa família, com intuito de confortá-la da dor daqueles dias. É o que podemos
ver no romance Kikia Matcho, de
Filinto de Barros, quando Joana perde seu tio Ndingue em Bissau. Mesmo estando
distante da sua família, os colegas emigrantes vão a sua pequena moradia, em
Quinta dos Mochos, passar noite com ela e solidarizar-se com a sua perda
inestimável: “- É só por hoje, Pedrinho! Amanhã de manhã vão-se embora. Quando
morre alguém da nossa família, os amigos vêm passar a noite conosco para nos
dar força. Hoje recebi a notícia da morte do meu tio” (BARROS, 1997, p. 29).
Durante os dias de desgosto, os parentes de malogrado estendem a
esteira onde o defunto fica deitado por um tempo, até que seja realizado o
ritual, segundo a tradição. A realização dessa cerimônia permite que a alma do
defunto descanse no outro mundo. Ao ser sepultado, a esteira continua estendida
no chão por um determinado tempo, podendo durar uma semana ou duas, dependendo
dos meios financeiros da família em luto. Enquanto a esteira não é levantada em
cenas rituais, os convidados não dispersam da casa do choro.
A cerimônia de ialsa stera di
tchur, que significa levantar a esteira de choro é o momento em que a
família em luto procura se desconectar do sofrimento e da perda do falecido. Ou
seja, é um ato que marca o fim dos rituais fúnebres.
Convém salientar que esse ritual pertence tipicamente à etnia pepel.
A expressão Stera di tchur escolhida
por Rui Jorge, foi inspirada na tradição pepel, procurando enaltecer a cultura
dessa etnia e mostrar a importância desse rito tradicional em momentos de luto,
sendo aqui empregada como uma metáfora para sinalizar a grande tristeza e
sofrimento causados pela guerra de 7 de junho.
Depois da guerra civil de 7 de junho, não houve família guineense
que não tivesse estendido uma Stera di
tchur, tanto no país quanto no exterior. Esse ato justifica, a meu ver, o
título da obra, e ajuda a entender melhor os textos de desabafos do autor,
configurados em melodia de desespero e luto. Todas as famílias guineenses
sentiram na pele a dor que essa guerra provocara. Até hoje os guineenses choram
mortos desse conflito militar em que os dois lados lutaram pelo poder. Esse
episódio, também, deu ensejo a um romance da minha autoria, intitulado Numa
manhã de junho (obra inédita).
Semedo é ciente dessas lágrimas nos rostos guineenses. No poema “Condolência
às famílias”, o autor identifica-se com as lamúrias e ao mesmo tempo se mostra
solidário a elas:
De longe e sem voz
Meu coração exprimiu
Cumprimento de dor.
Cumprimentos do
consolo e esperança
Cumprimentos a família
enlutada
Cumprimentos ao povo
guineense (SEMEDO, 2001, p. 39).
Rui Jorge Semedo, como muitos dos escritores guineenses da sua
geração, registrou, com seus poemas, gritos de inconformismo e de dor,
transmitidos em tom depressivo, de um tempo amargo que os guineenses jamais
esquecerão. O livro Stera di tchur é
a primeira experiência literária do Rui Jorge Semedo. A opção por analisar,
aqui, essa obra pioneira do autor se dá tendo em conta que é um dos primeiros
livros poéticos que relatam o desencanto da guerra civil de 1998. Nele, constam
41 poemas de temáticas variáveis, descrevendo a angústia de um episódio trágico
e doloroso que os guineenses viram desenrolar-se ao longo de onze meses. A obra
é prefaciada por Leopoldo Amado, um dos grandes intelectuais guineenses.
A Guiné-Bissau viveu longos períodos de ditadura, tempos em que se
vivenciou o abuso de poder e os discursos autoritários de silenciamento. Com a
entrada de democracia na década 90, houve até diálogos entre os partidos;
contudo, assistia-se, ainda, à presença do discurso impositivo do “todo poderoso”.
Rui Jorge traz nos seus poemas questionamentos em relação a esse período.
Vejamos o poema Quem sou?:
Sou um todo poderoso
Que nunca tem piedade
Tenho aparência
De um santo
Mas no fundo
Sou um demônio
negociata
Sou uma pomba branca
Com a pele de um leão
Quem quer ser meu
amigo
Deve comprir na
íntegra
Os meus “ cinco”
mandamentos.
Adivinhem quem sou? ( SEMEDO, 2001, p. 11).
Adivinhar é imaginar um período longo de "pomba branca/ com a
pele de um leão". Adivinhar também nos obriga a pensar: “nos cincos
mandamentos de todo poderoso” (ibid). O
sujeito poético distancia-se da responsabilidade de apontar quem é “o todo
poderoso”. Entretanto, faz uma descrição que nos permite perceber que se trata
de um ditador político. O eu-lírico é consciente das realidades política do
país, angustiado e indignado com tais realidades, convidam todos a adivinhar.
Adivinhar é confrontar-se com a perda dos valores e as consequências que levam
o país a afundar. O poeta, seguro nas suas palavras, tem certeza plena do que
está sugerindo e evoca os sentimos profundos nesse poema que não ultrapassam
cincos estrofes.
A Guerra de 7 de junho comprometeu os sonhos da juventude guineense.
Queimou bibliotecas, sobretudo, queimou o que o passado registou como a nossa
história e afastou os pais dos filhos. Muitos dos jovens durante a guerra
optaram em refugiar-se no álcool para esquecer o conflito que se estendia cada
vez mais, matando a esperança e ceifando os sonhos. Muitos desses jovens
tomaram caminhos distintos. Uns viram como solução assaltos à mão armada, e
outros escolheram o caminho da prostituição. Contudo havia sonhos dos que se
viam cientistas, engenheiros e doutores: Queremos ser doutores, engenheiros/E
até mesmo cientistas.../ Mas o nosso padrasto disse-nos/ Que o melhor é
“licenciar-se” nas/Ciências de assalto à mão armada e prostituição (SEMEDO,
2001, p.12). Antes do conflito militar no país, a poetisa Odete Costa Semedo já
clamava essa incerteza dos sonhos da juventude no poema “Olhos tristes”: [...]
Teus olhos.../ Perdidos no horizonte/Espelham a dor/ De um sonho incerto/ Teus
olhos... tristes/Quase inocentes/ Buscam a razão/ Do incerto. (SEMEDO, 1996,
p.75). Após o conflito de Militar, Odete Semedo também lançou o seu segundo de
livro de poesia No Fundo do canto (2003),
fazendo também registro em versos de um momento crucial da história da
Guiné-Bissau. Tanto o poema de Rui Jorge quanto o de Odete Semedo falam
justamente dos sonhos incertos e caminhos da desilusão que a juventude
percorre.
A esperança nos dias melhores foi uma das temáticas de quase todos
os poetas guineenses. Rui Jorge não ficou de fora nessa linha temática. Podemos
constatar a temática de sofrimento e desencanto na maioria dos versos do livro Stera di tchur. No poema “Mãe
Sofredora”, o tom melancólico demonstra ciência do sofrimento dessa “mãe”,
metáfora do país desencantado com tantas aflições. O poeta desespera,
entretanto, mostrando-se solidário e depositando esperança em melhores dias por vir:
Guiné mãe!
Ainda nos teus olhos
Cheios de lágrima
Continuam a brilhar a
esperança da paz (SEMEDO, 2001, p. 13).
A ‘esperança’ nos versos acima ilumina-se intensamente e, ao mesmo
tempo, acende os caminhos incertos, demonstrando a perversidade no poema
“Esperança podres”:
Disfarçado
de veste verde-branca
Com
uma espada nas costas
Para
desedificar os intelectuais
E
arruinar as crianças ditas
As
flores da nossa luta
Razão
do nosso combate (SEMEDO, 2001, p. 23).
O poeta se mostra sensível e, ao mesmo tempo, inseguro nos dias que
se apresentam: escuro e diante dos homens que matam as ‘flores’ plantadas no
passado por Amílcar Cabral. Os versos fazem alusão à desgovernança e ao
espírito de ódio que se viu alastrar no seio da política guineense. Contudo,
não há dúvida de que o poeta, no desespero, ainda sonha com um país que tanto
deseja e sabe que só a luta traz a vitória; e é através dela que se escapa do
fardo do luto. Como destaca no poema “Que futuro mãe guineense?”:
Escapa-te mãe e luta
Luta mãe... Luta
A vida é luta (SEMEDO, 2001, p. 32).
Em vários momentos do livro o poeta aponta o
dedo aos responsáveis, como testemunho vivo de uma guerra, que ele mesmo
assistiu. O poeta assistiu trocas de tiros e lançamentos de bombas de longo
alcance, quando procurou um caminho para fugir dali. Assistiu, sobretudo, fome
nos olhos minguados de crianças inocentes e das mulheres grávidas, estas
últimas, atormentadas com tiros, muitos delas deram luz nas bolanhas[73] da nossa terra. Todas
essas trajetórias de dor e de tristezas assumem a força da realidade na voz do
poeta. Um bom ponto de partida para melhor compreensão dos relatos de
experiência vivida por Rui Jorge é o poema “Madrugada”:
O eu lírico não esconde a sua amargura e o desalento da madrugada
negra. O poema nos pede uma leitura atenta e parece nos apontar um caminho de
profunda solidão e de incertezas com as quais o sujeito poético se confronta.
O poema descreve o desgosto e a revolta da guerra, desperta a
consciência clara dessa barbaridade, ao mesmo tempo em que configura as
palavras da esperança, sonha com novos dias por vir. É o que podemos observar
em um dos trechos do mesmo:
Mas
hei-de chegar
Há
de chegar o dia
Em
que as ondas do mar
Irão
anunciar o sofrimento ( SEMEDO, 2001, p.10).
O poeta Rui Jorge Semedo, no trecho acima, assim como em muitos dos
seus poemas, não procurou apenas fazer o relato de guerra civil na Guiné-Bissau
e denunciar o sofrimento e as cicatrizes da população guineense. Cantou, nos
seus últimos versos, a esperança de reencontrar a paz diante de desassossego da
guerra:
[...]
No fundo da minha alma
Nasceu
a poesia
Que
iluminou a minha esperança (SEMEDO, 2000, p. 14).
Stera di tchur ainda que possa ser visto como obra de um principiante, destaca-se,
pelo pioneirismo, um importante testemunho poético do conflito de militar de 7
de junho. A obra busca relembrar as consequências da guerra em um país
recém-independente, que sempre buscou se firmar politicamente e economicamente,
como os demais países da África onde houve a presença europeia. O grito de
inconformismo e lamento de almas perdidas nessa guerra invade toda a obra, pois
é escrito em um tom vibrante, mostrando que a poesia é um dos instrumentos para defender nossa humanidade
Considerações finais
Guiné
a minha esperança floresce nos seus campos!Meus sonhos estão estendidos no
manto da tua amanhã! (IÉ, E. J. Pereira).
1958 foi o ano
em que a Guiné-Bissau conheceu o seu primeiro estabelecimento de ensino liceal.
Outras colônias africanas, como Cabo Verde, já possuíam escolas desde o século
XIX. A falta de uma política educativa e um conjunto de problemas internos na
esfera política e social, após a independência, atuaram na demora do processo
literário naquele país. Só em 1973, o país viu a primeira publicação literária
– Poilão, caderno de poesia. Uma modesta coletânea que reuniu poetas de
diferentes nacionalidades, entre eles: quatro portugueses, três cabo-verdianos
e quatro guineenses.
Durante o
período colonial, todas as produções poéticas de autores guineenses, como por
exemplo, Amílcar Cabral, Vasco Cabral, entre outros, foram marcadas por
sentimentos individuais, não apresentando um projeto literário articulado. De
fato, todas essas dificuldades que mencionamos acima colaboraram para que a
Guiné-Bissau fosse vista, durante muito tempo, como um “espaço vazio”.
Este trabalho
deseja mostrar que a literatura da Guiné-Bissau tem registrado novas páginas, e
os seus escritores têm assumido posturas diferenciadas, conscientes de seu
papel. Portanto, merecem leitura e estudo aprofundado, para que possamos ter
mais visibilidade em relação a essa produção, assim como acontece com as demais
literaturas da comunidade da língua portuguesa. Os caminhos que aqui se delineiam sugerem sistemas que se
articulam. Aí nascem textos já influenciados por predecessores no próprio
espaço literário guineense, atestando um caminho de afirmação e amadurecimento.
Insistimos em
reforçar que a literatura guineense está viva; vivos também são os seus
autores, que continuam, com fervor, espalhando, nos seus livros, a sua
história, a sua cultura e a suas tradições locais, contestando o julgamento
passado de que ela é incipiente e vazia. Se, no passado, os autores guineenses
tinham poucas possibilidades de publicações individuais, hoje em dia, o mercado
editorial tanto no país como no exterior, já permite que conheçamos suas obras
e seus modos de refletir o mundo.
Vale salientar
que a realidade guineense, nos dias atuais, é outra. Por isso, precisa ser
vista com outros olhos. A dramaticidade da realidade do país que vem sendo
apresentada na voz e na escrita desses escritores nos revela as mazelas da
sociedade, expondo um grande desencanto com a pós-independência, a situação
precária de ensino, o desprezo pelos antigos combatentes, a fuga excessiva dos
jovens para a Europa e, sobretudo, os grandes problemas sociais que abalam
profundamente todas as classes sociais, como observamos ao longo dos capítulos
abordados neste trabalho.
Se a literatura
se manifestou tardiamente, por outro lado, podemos dizer que muitos aspectos da
tradição oral e da história da cultura se expressam hoje na literatura
guineense, atestando sua riqueza e sua especificidade. Como assevera Odete
Costa Semedo: “A ausência de escola não minou o espaço de aprendizagem, pois
por meio da tradição oral os valores, as regras sociais e tantas outras foram
ensinadas e aprendidas” (SEMEDO, 2010, p. 353).
Procuramos
mostrar, também, ao longo deste trabalho, que as línguas guineenses permanecem
resistindo, alicerçando a cultura, a história e a identidade do nosso povo.
Nós, os guineenses, apesar de termos sido colonizados por portugueses, nunca
deixamos de falar as línguas de nossas etnias. Portanto, os elementos de
oralidade estão vivos nos textos dos escritores da Guiné-Bissau. E, ainda que
as nossas línguas apresentem mestiçagens, o importante é que o crioulo, língua
de todos, continua vivo, forte e livre. Isso não significa, em nenhum momento,
a rejeição total do português. Porém, o uso frequentemente notado do crioulo,
na fala e na escrita, tem sido uma forma de preservar a nossa identidade de
geração em geração.
Na
Guiné-Bissau, muitos esforços foram feitos, através do ensino da língua
portuguesa e seu uso tem sido obrigatório, nas escolas públicas e privadas do
país, com o intuito de dar mais credibilidade à língua europeia. Contudo, todos
os esforços têm malogrado. Até hoje a língua portuguesa só é falada por uma
minoria da população guineense, que a usa, no dia a dia, falando e escrevendo
perfeitamente.
É interessante
dizer que essa fusão entre a língua portuguesa e a língua crioula, nos textos
da maioria dos autores guineenses, aponta formas subversivas, uma mesclagem
sutil que aproxima facilmente os leitores guineenses. Além disso, a língua
crioula é bem próxima das culturas e tradições da Guiné-Bissau, sendo uma das
principais marcas da identidade nacional guineense.
As mestiçagens
linguísticas e literárias nos textos do Abdulai Sila, Odete Semedo, Tony
Tcheka, Filinto de Barros, assim como nos textos dos demais escritores
guineenses, são formas de afirmar a nação como pátria. O uso do crioulo tem
grande importância, uma vez que permite transmissões dos sentimentos profundos
que, se fossem só escritos em língua portuguesa, seriam restringidos em seus
verdadeiros sentidos. A língua portuguesa não poderia dar conta dos
significados locais que só o crioulo pode expressar.
Das afirmações
apresentadas, vale relembrar que as línguas na Guiné-Bissau, assim como em
muitos dos países africanos, andam junto com a história, a cultura e demais
tradições locais. Em todos os livros aqui analisados, percebemos que os
escritores possuem raízes profundas com a terra e um amplo conhecimento social
do país. São conservadores, na medida em que procuram preservar os usos e
costumes locais, levando o leitor, muitas vezes, a se inteirar das realidades
do dia a dia dos guineenses, tornando-o um conhecedor da cultura e história da
Guiné-Bissau.
As mestiçagens
linguísticas e literárias nos textos dos escritores guineenses são
fundamentais, pois são modos de expressar os sentimentos na escrita. Por outro
lado, são mecanismos utilizados para facilitar interpretações que a escrita
pode segregar da fala. Nos textos de Abdulai Sila, Odete Semedo, Tony Tcheka,
Filinto de Barros e Rui Jorge Semedo, percebemos que a escrita e a fala andam juntas,
tornando suas linguagens mais ricas e instigantes.
Os versos da
epígrafe assinalam uma quebra no desencanto do pós-independência, apostando que
só é possível viver, sonhar e ter sossego quando depositamos a certeza de que,
só com a esperança, os sonhos ganham sentido para a existência. Mesmo que o
desencanto permaneça como temática de escritores de nova geração e dos antigos,
a esperança preenche os espaços poéticos e ficcionais desses escritores. A
esperança nos textos dos escritores guineenses ecoa sempre, confrontando,
assim, os problemas sociais existentes.
Espero que essa
pequena longa viagem permita aos leitores conhecer melhor a história, a
literatura e a cultura do meu país. É certo que não desenvolvi aqui tudo quanto
foi traçado no sumário deste trabalho,
com o intuito de exaltar e fazer expandir a visibilidade da literatura da
Guiné-Bissau. Acredito, no entanto, que um trabalho literário nunca tem um
ponto final. Assim, esta pequena viagem se quer longa, pois deseja se estender
e ao mesmo tempo firmar longas raízes tanto na Guiné-Bissau quanto fora dela.
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ANEXOS
Entrevistas com Tony Tcheka
Eliseu
Banori: Como você vê a literatura guineense hoje em
dia?
Tony Tcheka: Não obstante a falta de apoios e de incentivos, face o volume e a
qualidade da produção literária e o aparecimento de uma nova geração com alguns
autores de valor, hoje, prevemos um futuro promissor. Desde a façanha do precursor da literatura
escrita guineense nos finais dos anos 1800 e 1900, Marcelino Marques de Barros
que foi à oralidade familiarizar-se com contos, histórias, e cantigas da
tradição oral e desenvolvendo um aturado trabalho de recolha, escrita e
divulgação em língua portuguesa, muitos ciclos foram acontecendo com o
protagonismo de outros autores em épocas tanto em estilo como em diferente
géneros. Destaca-se um período nos anos 40 e 50 uma produção interessante onde
se destacavamnomes como Fausto Duarte, autor do romance “AUÁ”, Fernanda de
Castro, Juvenal Cabral, Fernando Pais de Figueiredo, a anti-fascista Maria
Archer, o jurista Artur Augusto Silva. Não obstante as origens de cada um, a
objeto da abordagem era a Guiné e a mentalidade da época pesava… Bem mais
tarde,já na década de sessenta, surgiram outros jovens poetas e contistas,
destacando-se Atanásio Miranda, Carlos Semedo, autor do livro “Poemas”
(1963), Joaquim Moreira (Quim dinha
Rosa) Pasoal D´Artagnan, (também conhecidos em certos meios por rapaziada de
Bissau) o advogado Armando Pereira, entre outros, que ousaram desafiar o status
quo, aproveitando as páginas dos jornais Bolamanese (Bolama), Arauto
(Bissau) e a revista “Poilão” (1973), a grande referência editorial com o
patrocínio do Banco Nacional Ultramarino.
Eliseu Banori: O que seria “Noites de Insônia na Terra
Adormecida” nas suas palavras?
Tony Tcheka: Este livro resulta de uma enorme desilusão ao ver uma terra cada vez
mais destroçada e tudo por construir. Mesmo o elementar como a saúde e a
escola. O que se ensaiou nos primeiros anos dos seis anos de independência
foi-se esvaindo em nada. O livro é a dor pelos projectos esquecidos, as
traições ao pensamento de Amílcar Cabral, Domingos Ramos, Titina Silá, Canha Na
Tunguê, Pansau Na Isna, toda uma geração que se privou de tudo para lutar
contra a injustiça social e considerou pedra basilar do combate, a nossa
identidade, a nossa cultura como ademais definiu o líder do movimento de
Libertação nacional, Cabral:“a luta pela emancipação e independência é um acto
de cultura”. Sucederam-se assaltos ao poder, golpes de estado, assassinatos, prisões,
corrupção, nepotismo, compadrio e o desprezo pelo conhecimento e o saber deu-se
início a um longo período de saque, desgoverno, que dura até aos dias de hoje,
agravado pela incompetência.
Eliseu Banori: Querido Tony Tcheka, constatamos no livro Noites de Insônia na Terra Adormecida a palavra “amanhã”, repetida
dezesseis vezes. O que esse amanhã representa para autor e o seu povo – que
insistentemente o poeta insere ao longo do livro em questão. Concorda comigo
que esse amanhã “morre-se aos pedaços? ” Como diz um dos versos (do livro).
Tony Tcheka: A nossa geração e aos
vindouros foi prometida um amanhã diferente, de paz, de harmonia, de unidade e
de construção do desenvolvimento. O povo, foi mobilizado com esta bandeira.
Eram palavras-promessas que colhiam bem no fundo e no sentir do homem e da
mulher guineense. Dizia-se,vamos sacrificar hoje para termos sossego e
oportunidades para todos sem diferenças sociais e culturais. Falava-se de
eletricidade, de escolas, hospitais, fabricas, estradas para escoar os
produtos. Um amanha de respeito pelo valor do homem, da mulher, dos jovens e
das crianças. Rui tudo…Todos acabamos por morrer aos poucos vítimas de
incumprimento por parte daqueles que assaltaram o poder e esqueceram-se que havia
um amanhã a ser construído hoje – esse hoje já passado e o futuro comprometido.
A maioria da população vive abaixo do limiar da pobreza, sem esperança de
alguma melhoria, enquanto há uns quantos sobreendinheirados, desligados da realidadesocio-cultural
do país, e exibindo bens e riquezas incomensuráveis, cuja aproveniência se
desconhece. Essa gente serve-se do país ao invés de o servir com zelo, competência
e honestidade. É o primado do deixa
andar do assalto à coisa pública e da aliança com malfeitores, daí o
narcotráfico entre outras endemias sociais que asfixiam o país.
Eliseu Banori: A palavra "Geba",
assim como a palavra "amanhã", como vimos antes, é repetida diversas
vezes no livro Noites de Insônia na Terra Adormecida. Comente um pouco essa
repetição - que acho eu necessária do rio geba na obra.
Tony Tcheka: Geba por mil razões. É o nome dado à terra-berço da nossa língua
nacional o kriol. É rio que banha toda a
guiné, que a serpenteia ponta a ponta, unindo-a. Não separa, une. Deixa-se
navegar. É um rio amigo recheada de mangais o principal alimento da fauna
marítima. Aparentemente o Geba é um rio manso de águas barrentas, mas serenas.
Lá no fundo, as suas correntes são fortes e imbatíveis. Mas é esse mesmo rio
que na sua viajem pelo interior, ganha outros nomes e a uma dada altura perde a
mansidão e tranquilidade para se elevar numa enorme parede de água produzindo
um barulho ensurdecedor que entre nós se dá pelo nome de macaréu ou macaré.
Geba é uma referência um exemplo de bem servir a Guiné. Ele só pede em troca
bom tratamento, respeito e desassoreamento de quando em vez, coisas que não
têmsido feito. Veja-se o aspecto nauseabundo e miserável do cais de Pindjiguiti,
uma referência da nossa história moderna, votada também ao abandono. Até os
navios ali enterrados foram morrendo aos pedaços. É triste e doloroso o que nos
acontece.
Eliseu Banori: Os seus poemas, a maioria, nos revela a grande preocupação com os
problemas sociais guineenses. Essa preocupação é ainda o motivo de sua falta de
sono?
Tony Tcheka: O que venho dizendo responde por inteiro a essa questão.
Naturalmente que vivo preocupado com a situação. Tira-me o sono. Não posso
aceitar certos comportamentos da classe política. Evidentemente que nesta classe
há gente boa com capacidade para alavancar a economia e desenvolver a terra. Só
que não deixam conduzir os destinos da terra. Há um grupinho os sanguessugas do
poder, infiltrados no poder ou gravitando à sua volta, que não os deixam
governar. Boicotam tudo. Só querem estar e ser poder. E se não estão fazem o
que sabem melhor: desestabilizam, lideram campanhas demaldizer, mentiras, desinformação…
São peritos em propaganda gratuita e sem fundamento, sem verdade. Odeiam a
verdade e acham cada cidadão tem um preço e assim enveredam pela via da compra
de consciências. Com a pobreza e o desespero espraiando-se pelo país todo, uma responsabilidade
deles grupinhos, revela-se terreno favorável para as suas maquiavelices. Isto
tudo provoca dores, Insônia e muita revolta no interior de nós mesmos.
Eliseu Banori: Há uma enorme distância do tempo entre a publicação Noites de Insônia na Terra Adormecida (1996),
e Guiné - Sabura que dói (2008). O que tens a dizer sobre essa distância?
Tony Tcheka: Quer dizer que não há apoios às letras e às artes. Cada um faz o que
pode. Não há uma política de apoio à cultura. Não há verbas consagradas ao
incremento de atividades culturais. Hoje há duas editoras privadas sem qualquer
apoio do Estado. Faz-se o que se pode. Veja os pintores a grande qualidade que
apresentam… os músicos fazem autêntico milagre sem apoios.
Não há condições
para se viver da escrita… Temos de trabalhar duramente noutras áreas, para
garantir o pão de cada dia. Todos temos família e responsabilidades diárias com
ela. Nas horas de ócio, roubamos algum tempo à família, vencemos o cansaço físico
e espiritual para escrever. E depois editar é outra luta desigual e quase impossível. O grosso da escrita também morre nas gavetas
esquecidas.
Eliseu Banori: Moema Parente Augel, a grande estudiosa da literatura guineense e a
autora do prefácio do seu primeiro livro de poesia Noites de Insônia na Terra Adormecida (1996), afirma em DESAFIO DO
ESCOMBRO, - NAÇAO, IDENTIDADES E
PÓS-COLONIALISMO NA LITERATURA DE GUINÉ-BISSAU (2007), que “ a crítica
literária tem o poder de consagrar ou proscrever um escritor”... Segundo
constatei no livro da autora citada, em 1979, após dois anos de publicação de Mantenhas para quem Luta, Mário de
Andrade, angolano, considerado como um amante da literatura guineense, no seu segundo
volume de antologia temática de poesia africana, incluiu apenas dois poetas
guineenses: AgnelloRegalla e José Carlos Schwarz. Manuel Ferreira, também,
considerado um dos grandes estudiosos da literatura africana de língua
portuguesa, autor da antologia panorâmica da poesia africana de expressão
portuguesa, uma antologia de três volumes, cujo título é: No reino de Calibam, em que somam um total de cento e trinta e oito
poetas participantes. Ferreira só convidou um único poeta guineense: António
Baticã Ferreira. É autor da conhecida frase: “ Um Espaço vazio para literatura
guineense” (AUGEL, 2007, p.96). Convido-te a falar um pouco do silenciamento e
ausência da literatura guineense e da postura desses dois intelectuais
referidos em relação a divulgação da literatura guineense.
Tony Tcheka: O silêncio e o
desconhecimento da realidade cultural e nomeadamente literária ficou a dever-se
à realidade do regime político que vigorava. Ao contrário de outras colônias
sob o domínio colonial português, como são os casos de Angola e Cabo Verde, por
exemplo, na Guiné-Bissau, não houve movimentos literários e nem uma história de
jornalismo guineense, cujo gérmem está intimamente ligado à Luta de Libertação
Nacional. Outro ponto a reter é que como entreposto como era considerado e
tratado, só veio a conhecer uma escola com nome de Liceu nos finais de década
de 50 e só comportava o 1º ciclo e muito restritiva enquanto em Cabo Verde o
liceu Gil Eanes data de 1860. Convém notar que o estatuto de índigenato que
impunha duras restrições aos nativos, de circulação incluindo o acesso à
escola, vigorou até ao início da década de 60. Já que falou das Observações de
Moema Augel, uma conhecedora profunda da realidade guineense, ela registou que
“até ao final sessenta (século XX) o número de alunos não ultrapassava os três
por cento da população, notando-se ainda assim, uma maioria de filhos dos
chamados metropolitanos.
Logo de início desta entrevista fiz
um historial do percurso literário na nossa terra. Diz a verdade que Mario de
Andrade, foi quem nos sensibilizou e criou a possibilidade para que o livro Mantenhas
para Quem Luta fosse editado em Bissau (1979), sendo primeiro publicado na era pós independência que Andrade e outros
escreveram foi um olhar à distância, um olhar de fora de quem na altura devido
aausência de estudos e de informação, limitava-se “ao espaço vazio” como
qualificou Manuel Ferreira. Mario de Andrade, na altura cita dois autores, o
Regalla que, já nos anos de 70, tinha tido suas obras divulgadas pela
conceituada revista “AfriqueAsie” e o Zé Carlos, porque cedo se destacou na
poesia em kriol, português, francês e na música com enorme sucesso. Os demais
autores formam sendo conhecidos aos poucos e a explosão só acontece nos anos
90. Daí a surpresa de Mario de Andrade
quando, já vivendo em Bissau, a convite do Presidente Luiz Cabral, e
coordenando o Conselho Nacional de Cultura, descobriu o trabalho daqueles que
ele viria de batizar de “Meninos da Hora de Pindjiguiti”.
Eliseu Banori: Você já pensou em escrever ficção?
Tony Tcheka: Não só pensei como tenho trabalhos nesse género, embora nunca os tivesse
publicado em livro. Olhe... neste momento tenho dois livros com contos ficcionados
pronto a editar. Um leva o título “Quando Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba” e
outro, “Bissau-Velho e sonhos capturados”. Entretanto já terminei mais um de
poesia.
Eliseu Banori: Quando o poeta começou a escrever? Como você vê o papel da
Literatura na Guiné-Bissau?
Tony Tcheka: Os meus primeiros versos datam de um período entre a minha infância
e adolescência. Os primeiros passos, dei-os escrevendo versos à minha mãe e
depois às namoradas. Tudo em segredo absoluto das gavetas de conivência fácil.
Mais tarde, veio o tempo das dúvidas, da rebeldia, da observação atenta do
meio, das pessoas e os conteúdos foram mudando dando alimento à caneta e ao
papel… A literatura como em todas sociedades é uma ferramenta do saber e do
conhecimento. Ela, sob a forma de livros fornece-nos meios para viajarmos e
conhecer outras realidades e a própriahistória, sentados num banco, deitados em
casa, no campo na praia, a caminho da escola ou do trabalho… Viajamos e ficamos
a conhecer… Isso enriquece-nos. Faz-nos crescer e encurta distancias. Na Guiné
devia-se investir mais na cultura e levar o livro e os escritores à escola.
Em termos de
criadores estamos no bom caminho. Há uma nova geração exibindo pergaminhos
prometedores. Acredito nela.
Eliseu Banori: Desta
vez o poeta volta a morar em Lisboa, depois de muitos anos ausentes da Terra
dos colonos. “Já não caibo nesta concha”, revela um dos versos do poema “Sonho
emigrante”, do livro Noites de Insônia na
terra Adormecida. O poeta ainda se sente estranho num país que já viveu há
anos?
Tony Tcheka: Estou aqui temporariamente. Tinha terminado um contrato com a União Europeia,
quando recebi apoio para escrever. Não deixei a minha terra. Estou aqui a fazer
uma pausa escrevendo. Neste hiato, tive tempo e sossego para escrever dois
livros ficção e um terceiro de poesia, como já referi. Conto regressar
brevemente. A minha ligação à terra é bem forte e desde a independência, só
tinha saído uma vez, por um períodocurto mas sempre em trabalhos de
consultadoria que a isso me obrigava.
Eliseu Banori: No livro Noites de Insônia na
terra Adormecida, há dois poemas em homenagem ao José Carlos Schwarz “Morte
de Poeta” e “ Zé meu poeta”. Conte-nos pouco da sua relação com o poeta – que
muito cedo “ Negou a vida”.
Tony Tcheka: Era um amigo, um irmão, um camarada com que me identificava em
muitas coisas da vida. Solidário e fraterno com sentido crítico apurado. No
dealbar da independência passávamos muitas horas na redação do jornal “NôPintcha”,
à noite, trocando ideias e analisando o rumo do país. Lucido e corajoso era perfeccionista
em tudo o que fazia. Era um estudioso, um jovem bem informado, mas que queria
saber sempre mais. Para ele não havia verdades únicas, daí uma certa rebeldia
que moldava a sua maneira de ser e estar. Era também pessoa de grandes e
francas gargalhadas. Gostava de viver. A sua morte prematura foi uma grande
perda para o país. Foi-me difícil aceitar o seu fim de forma tão trágica e com
tanto que ele tinha para dar. Era o mais completo de nós. Doeu e escrevi o que me ia na alma.
Eliseu Banori: É grande verdade que Tony Tcheka é um dos poucos escritores a
participar em todas as antologias poéticas publicadas na Guiné-Bissau.
Percebemos que, desde a primeira participação na antologia mantenhas para quem
Luta, a maioria dos seus versos mostram os sofrimentos, desespero e
desassossego das crianças do seu chão.
Você pode nos explicar por que cita as crianças repetidas vezes nos seus
versos?
Tony Tcheka: Não me limito a citar a minha fonte inspiradora a Guiné-Bissau,
entro nela, estou com ela, ela palpita dentro de mim. E os temas que mais me
interpelam e que me são gratos, são a criança e a mulher. São aquelas que mais
sofrem com os desmandos dos senhores da terra. Veja a situação da mulher,
continua duplamente castigada, pela sociedade e pelo homem. É uma realidade que
entra pelos olhos dentro. Mas são elas que mais têm lutado pela coesão familiar
trabalhando arduamente em casa e no trabalho. Inventam o que fazer para salvar
a família, incluindo os homens… Os índices elevados da mortalidade
materno-infantil são incomodativos, a taxa do insucesso escolar… crianças
talibés, meninos de kriason… como não escrever sobre essas tragédias que nos
perseguem, 45 anos depois da proclamação da independência?
Eliseu Banori: Para terminar, gostaríamos de saber de onde vem a sua inspiração. E,
quais são seus autores preferidos? Que conselhos você daria para as novas
gerações que buscam se afirmar no mundo literário?
Tony Tcheka: É a vida que me inspira. O dia a dia, as pessoas, tudo o que é vida.
O que me rodeia o que encanta ou desencanta. Mas, sinceramente, quando escrevo
penso no meu principal destinatário o (a) guineense e os amigos da Guiné,
aqueles que a amam como se fossem filhos ali nascidos. Ao fim de muitos anos de
leitura e de descobertas, vai ficando difícil enumerar aqueles que nos
influenciaram. Agora, devo confesso que o primeiro livro que mexeu comigo e fez
soar uma espécie de campainha de alerta foi a “Trilogia da Fome” do brasileiro
Josué de Castro. Aos jovens e não só, sugiro que leiam, que leiam muito e cada
vez mais. Que ninguém se deixe enganar, porque quem não lê, não pode escrever.
Façam o favor de ler. O gosto pela escrita nasce na leitura.
Entrevista com Abdulai Sila
Eliseu Banori: A nossa literatura teve um
desenvolvimento tardio, comparada às literaturas de língua Portuguesa. Qual é a
leitura que você faz da Literatura guineense nos dias atuais?
Abdulai Sila: Depois de muitos anos de letargia, devido a factores sobejamente
conhecidos, a literatura guineense possui atualmente uma dinâmica
extraordinária. E o mais interessante é que essa mudança de paradigma está a
ser protagonizada pela juventude, o que augura não só a sustentabilidade como
uma transformação qualitativa do panorama literário. Daqui a alguns anos,
quando esses novos escritores atingirem a maturidade, teremos um cenário
completamente diferente daquele que conhecemos no passado.
Eliseu Banori: Segundo a entrevista que deu a
Fernanda Cavacas, Sol Suor foi o seu primeiro livro escrito. Por qual
motivo não o publicou?
Abdulai Sila: Acho que há aqui um mal-entendido. O que eu disse à Fernanda
Cavacas é: “Há personagens que vão
aparecendo nos vários livros e vão aparecer com maior evidência em Sol e suor”.
Por outro lado, na última página do romance Mistida é feita referência
aos dois romances que pretendia publicar a seguir, ou seja, Sol e suor e
Memórias SOManticas, cujas tramas seriam uma espécie de sequência do que
tinha sido narrado em Mistida. Isso foi em 1997. No ano seguinte, como
sabe, aconteceu uma guerra no país, que alterou a vida e os planos de toda a
gente. Assim, só quase vinte anos depois, em 2016, é que veio a ser possível
publicar o romance Memórias SOManticas. O outro, Sol e suor,
continua ainda na gaveta. Quanto ao meu primeiro livro escrito, esse vai ter
que esperar ainda muito mais…
Eliseu Banori: A década 70 representa um grande marco
para a nossa literatura. Nessa década, foi publicada a primeira coletânea de
poesia, Mantenhas para quem Luta, 1977, (uma coletânea em que a maioria
versos foram em louvor aos combatentes de liberdade de pátria) e Momentos
Primeiros da Construção, 1979. Além dessas coletâneas publicadas, também
foi publicado o primeiro livro individual de autoria guineense, do poeta
Francisco Conduto de Pina, Garandesa de no Tchon (1978). Gostaria que
comentasse essas publicações e nos desse a sua opinião sobre o poder das
palavras como uma forma de resistência.
Abdulai Sila: Esses livros têm o mérito que toda a gente lhes reconhece. O país
tinha acabado de sair de uma guerra devastadora, em que (re)construir era a
palavra de ordem principal. A literatura tinha (e continua a ter!) um papel
fundamental a desempenhar, sobretudo quando se tratava da descolonização das
mentes, promoção dos novos valores morais e sociais, consolidação do sentimento
de pertença à jovem nação, mobilização de todos as forças da sociedade para a
construção do novo Estado, num clima de paz, solidariedade e progresso.
Eliseu Banori: Segundo alguns críticos
literários, há uma demora na aparição de uma prosa tipicamente guineense. Só em
1952, foi publicado o primeiro conto de um guineense nato, de autoria de James
Pinto Bull. Em 1994, você publicou Eterna paixão, considerado o primeiro
romance guineense. Como você justifica esse surgimento tardio de produções
literárias guineenses?
Abdulai Sila: A literatura surgiu quando estiveram reunidas as condições
objetivas para ela surgir! Nem antes, nem depois. Como se costuma dizer, não se
pode fazer omeletes sem ovos… Nesse quadro, é preciso lembrar que o primeiro
liceu na então colônia só foi inaugurado em 1958! Antes dessa data não houve
uma única instituição oficial de ensino secundário, sendo provavelmente a única
colônia em África nessa condição. Isso dá uma imagem concreta do atraso a que o
país foi votado pelo colonialismo português e uma dimensão clara da política de
obscurantismo implementada pelas autoridades coloniais da altura.
Eliseu Banori: Na década de 1950, na Guiné-Bissau, não havia ainda um sistema
literário. Contudo, havia criações de cunho individualista. Gostaria que você comentasse
um pouco esse período.
Abdula Sila: É o que disse antes: não pode haver literatura sem um
desenvolvimento mínimo da literacia! Aliás, é preciso notar que, em última
instância, são os leitores que sustentam a literatura. Ora, segundo os dados
estatísticos a taxa de analfabetismo antes do início da luta armada de
libertação nacional (1963) era superior a 90%!
Eliseu Banori: Na sua obra A última tragédia, observamos a sua
preocupação com a situação feminina no país. As dificuldades vividas pela personagem
Ndani, no romance, retratam essa preocupação. Na busca de uma vida melhor, ela
vai parar na casa de um colonizador. Ali é violentada pelo patrão e tem que
aceitar, posteriormente, um casamento forcado com régulo de Quinhamel, que a
rejeitou depois por não ser virgem. Como você enxerga essa personagem, hoje em
dia? Quais as dificuldades de consolidação de espaço de mulher na sociedade
guineense, seja no mercado de trabalho, na política ou na literatura?
Abdulai Sila: A situação de discriminação em relação às mulheres é fato tão real
quanto inaceitável. Tem as suas raízes históricas, culturais, ideológicas, que
todos conhecemos. No entanto, como dizia Amílcar Cabral, não podemos falar em
libertar o país sem a libertação das nossas concidadãs. Sendo um imperativo de
justiça e uma condição para o verdadeiro desenvolvimento do país, a luta pela
igualdade e equidistância do gênero tem que ser assumida por todos, mulheres e
homens. Para a eliminação dos tabus e certos preconceitos enraizados na
tradição, a literatura tem um papel de relevo a desempenhar. Ela, a literatura,
pode e deve dar um contributo particular e inadiável, no âmbito da função que
lhe é intrínseca de moldar o imaginário colectivo e de produzir incitamento à
mudança de comportamento e atitude da parte do cidadão, individual e
colectivamente tomado.
Eliseu Banori: A literatura guineense carece de
prosadores. O que o levou a se aventurar no mundo da ficção?
Abdulai Sila: Paixão e tradição. Eu nasci e cresci num ambiente em que a
literatura oral, em particular os contos tradicionais, tem um papel crucial na
educação. Para além do aspecto lúdico, as lendas, fábulas e adivinhas
constituem-se num elemento catalisador no processo de desenvolvimento da
criatividade e da imaginação. Pena é que esse espaço de interação entre os mais
velhos e os mais novos, e de transmissão de vectores fundamentais da identidade
guineense, esteja em vias de extinção, devido em grande medida à expansão e
facilidade de acesso ao audiovisual e à ausência de uma política pública
adequada de preservação desse rico património. A paixão de escrever surgiu mais
tarde, na sequência de incidentes que aconteceram na minha vida e que me
obrigaram a procurar formas alternativas de comunicar o que me ia na alma.
Quanto à questão da aparente falta de prosadores, acho que isso não é senão uma
consequência lógica da ainda persistente incapacidade de expressão escrita por
parte de uma boa parcela da nossa população. É que o guineense é um prosador
nato, faltando somente o domínio da técnica de escrita para assistirmos a um
‘boom’ desse gênero literário no país.
Eliseu Banori: A crítica ao abuso do poder
político é um forte eixo na sua escrita. Como você enxerga a sua própria
crítica num sistema público corrupto e burocrático?
Abdulai Sila: Se noutras partes do mundo o escritor tem tradicionalmente o
dever de ser porta-voz dos que não têm voz, no nosso país esse dever é mais
acentuado, sendo ao mesmo tempo moral, ético e até patriótico. A solidariedade
e a fraternidade são valores fundamentais, intrínsecos à nossa tradição e
cultura enquanto africanos. A corrupção e a podridão dela resultante são a
negação desses valores. Há uma tendência cada vez mais acentuada, que se tem
verificado de uns tempos a essa parte, no seio da elite guineense que aponta
para uma mudança de atitude em relação ao que é tradicional, bem como adopção
de padrões de comportamento que exageradamente privilegiam o individualismo.
Isso tem incentivado a corrupção e a impunidade, obstaculizando a concretização
da legítima aspiração de todo o cidadão ao progresso e bem-estar, a uma maior
justiça social, à igualdade de oportunidades. Denunciar e combater esses males
é um dever. Lutar para a afirmação de uma nação mais harmoniosa e solidária é
uma obrigação de todo o cidadão, do escritor em primeiro lugar.
Eliseu Banori: Qual foi a sua inspiração para
a criação de Daniel, personagem do romance Eterna paixão?
Abdulai Sila: Há uma situação que a minha geração enfrenta, que é muito
difícil de explicar, e que justificou a inclusão de um personagem aparentemente
ingênuo como é o caso do Daniel nessa narrativa. Tem a ver com o fato de nós
mesmos, que tivemos o privilégio de vivenciar um momento tão transcendente da
nossa História como foi o fim do colonialismo e a proclamação da nossa
independência nacional, nós que fomos portadores de sonhos tão marcantes como a
construção de uma “nação africana forjada na luta”, como dizia Amílcar Cabral,
acabarmos por nos encontrarmos, como que por milagre ou maldição, numa situação
em que já não entendemos quase nada do que está acontecendo. Nós tínhamos tudo
para vencer, mas há muito tempo que temos estado a perder em quase todas as
frentes. Tornamo-nos de repente pequeninos e aparentemente incapazes de alterar
o curso dos acontecimentos, embora continuemos a acalentar os nossos sonhos
originais, agarrados às nossas crenças na afirmação de uma sociedade e de uma
nação nos moldes em que as concebemos desde sempre. Sonhos e crenças
inabaláveis que todavia, vistos à luz da realidade vigente, parecem uma mera
utopia. E é justamente essa utopia que encarna Daniel, um indivíduo que veio de
fora, que tem motivos de sobra para continuar, sempre, a acreditar.
Eliseu Banori: Você tem comentado, em várias
entrevistas, que o foco do livro Mistida é o roubo da memória. Nele não
há um enredo contínuo. Contudo, em cada capítulo, a protagonista reaparece, com
intuito de recuperar a memória roubada. No final do romance todos se unem. O
que significa essa junção dos personagens ao final da obra?
Abdulai Sila: É a vitória do
bem sobre o mal, da esperança sobre o fatalismo. É a confirmação de que ainda
faz sentido, apesar de todas as dificuldades e contrariedades que possam
existir, continuar a acreditar num amanhã melhor, numa sociedade onde reinem a
harmonia, a justiça e a paz social.
Eliseu Banori: Para terminar, fazemos três
perguntas: de onde vem a sua inspiração? quais são seus autores preferidos? Que
conselhos daria para as novas gerações que buscam se afirmar no mundo
literário?
Abdulai Sila: Inspiração: Vou ser muito franco e directo: não sei ao certo o que
é isso de inspiração. E eu me explico: Como disse antes, faço parte de uma
geração que cresceu agarrada a um sonho e que hoje vive uma realidade bastante
turbulenta. Apesar de tudo, continuamos mantendo firme esse sonho, crentes num
desfecho favorável. Assim, movidos por essa crença inabalável, fazemos tudo o
que está ao alcance, inclusive através da literatura, para não só manter vivo o
sonho, como fazê-lo cada dia mais contagiante, mais apetecível aos olhos dos
demais concidadãos. É, pois, nesse contexto, tentando ganhar mais combatentes
para a causa comum, que eu escrevo. Assim, porque tenho estado sempre a
escrever, saltando de um gênero literário para outro, das duas uma: ou estou
sempre inspirado ou não preciso de inspiração para escrever.
- Autores preferidos: Já li de tudo um pouco, desde clássicos russos
a celebridades latino-americanas. Mas, para ser honesto, os meus autores
preferidos, aqueles cujos livros enchem a minha biblioteca, são os autores
africanos e afro-descendentes.
- Conselhos à nova geração: leiam, leiam, leiam… Leiam sempre. Ah, e
não se esqueçam de ter sempre em mente uma lição muito importante da sabedoria
popular: “Não se deve, logo no primeiro dia que se vai à caça, pretender abater
um elefante”
Entrevista com Moema Parente Augel
Eliseu Banori: Querida Moema, eu como muitos dos guineenses que estudam literatura,
te consideramos guineense de coração. Como você vê a literatura guineense hoje
em dia?
Moema Augel: Em franco desenvolvimento, Eliseu. A
Guiné-Bissau está passando por um momento belíssimo, com uma multiplicação de
publicações, muitas delas da melhor qualidade. Além da movimentação das duas
editoras em Bissau, há autores guineenses que publicam no Brasil, em Portugal,
além do recente fenômeno dos livros eletrônicos, os conhecidos ebooks, postos
em circulação pelos próprios autores.
Eliseu Banori: Dos anos 2000 até o presente momento, surgiu uma nova geração de
poetas e escritores guineenses. Como você enxerga a escrita desses jovens que
trilham prazerosamente nos caminhos das letras?
Moema Augel: Com muita alegria e
esperança. Estão surgindo novos poetas, novos prosadores, vozes femininas estão
se fazendo ouvir, enfim, a vida cultural está cada vez mais dinâmica e
atraente. Os meios eletrônicos têm facilitado tanto a impressão, e assim também a publicação, como a divulgação de
novos títulos e faço votos que esse dinamismo instigue ainda mais esta nova
geração a dedicar-se à literatura.
Eliseu Banori: O que falta para tornar a literatura guineense mais apreciada e
estudada como as outras da sua comunidade linguística?
Moema Augel: Divulgação. É
dificílimo adquirir a produção literária guineense. As editoras têm um site, é
verdade, sei que as encomendas feitas por exemplo na Alemanha para a KU SI MON
são atendidas com prontidão, mas esse recurso não é muito conhecido. As
tiragens são limitadas, o país não dispõe de livrarias nem de organismos que se
ocupem com a divulgação e a distribuição dessas produções. Não há incentivo, a qualidade da formação escolar é
ainda muito deficiente, outro aspecto negativo. Ainda há o problema financeiro.
Para os guineenses que estudam no Brasil, por exemplo, por questões logísticas
e financeiras, é difícil comprarem livros. Cópias policopiadas circulam entre
eles, quando é possível encontrar alguma. E somente uns poucos autores se
tornam presentes, ficando uma maioria de textos de qualidade completamente ou quase
completamente ignorada, desconhecida. São algumas das razões que me ocorrem no
necessariamente curto espaço desta entrevista.
Eliseu Banori: Observamos na sua pesquisa a grande paixão pela literatura da
Guiné-Bissau e por seus autores. Em 1996, a sua valiosa contribuição nos
projetos da INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa), facilitou bastante
a divulgação dos textos inéditos. Hoje, após mais de vinte anos dessa
publicação, como você vê o fruto desse trabalho em colaboração com INEP?
Moema Augel: Desde 1993, quando
começamos a viver na Guiné-Bissau, estou profundamente envolvida com o projeto
literário desse país e desde então não parei de divulgar os autores guineenses
em artigos, em palestras e em participação em congressos. Além do livro publicado
em 1998, que encerrou a colecção Kebur, "A nova literatura da
Guiné-Bissau", publiquei no Brasil, 9 anos depois, o "Desafio do
escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na Guiné-Bissau". Sinto
que essas atividades ajudaram a desencadear um maior interesse por parte da
comunidade acadêmica no exterior e hoje em dia vejo com satisfação um número
crescente de artigos e trabalhos de mestrado e mesmo de doutorado inserindo
autores guineenses em suas análises.
Eliseu Banori: Grandes estudiosos, como Mário de Andrade e Manuel Ferreira
divulgaram poucos autores guineenses nas suas antologias publicadas após
independência do país. Concorda com a posição desses estudiosos da história das
literaturas africanas de língua
portuguesa?
Moema Augel: Na época, não havia
praticamente publicações de autores guineenses. Divulgação, nenhuma. Seu
trabalho de mestrado, Eliseu, que você acaba de concluir, virá trazer uma
contribuição importante para o conhecimento desse pouco que já existia por
volta das inquietudes libertárias da década de 1970 e mesmo antes. Vasco Cabral
tem poemas datados da década de 1950. Mas esse conhecimento e reconhecimento
estão se fazendo agora; na época dos estudiosos aos quais você se refere, o
contexto era diferente. Mesmo assim, é digno de nota que Manuel Ferreira tenha
divulgado poemas de Vasco Cabral ("Dez poemas") e de Hélder Proença
("Cinco Poemas"), já em 1979, na importante revista por ele dirigida,
"África. Literatura, Arte e Cultura", antes dos livros desses dois
autores terem saído (Cabral em 1981, Proença, em 1982). A oralidade também foi
por ele considerada, abrindo espaço nessa mesma revista para um artigo de
Teresa Montenegro e Carlos Morais, "Uma primeira interrogação em crioulo à
cultura popular oral" na Guiné-Bissau, no mesmo número (1979).
Eliseu Banori: A guerra civil de 1998-1999,
sem sombra de dúvida, destruiu tudo que havia de ‘letras’ no INEP. Como você vê
o impacto dessa destruição no processo de desenvolvimento literário guineense?
Moema Augel: Não foi uma destruição
completa, mas quase. O que de fato foi queimado pelas bombas e pela depredação
dos militares "aliados" foram os arquivos, de valor inestimável e uma
grande parte da biblioteca que guardava livros raros e insubstituíveis. No caso
da literatura, o maior acervo das publicações da nossa coleção
"Kebur" estava na Editora Escolar. Conforme fui informada, por ter
sido financiada pela Suécia, a administração teve a iniciativa de hastear a
bandeira daquele país e o prédio da Editora foi poupado, salvando assim as
publicações ali armazenadas.
Eliseu Banori: Nas décadas de 50 e 60, como se lê na história de literatura
guineense, havia poucas vozes poéticas de origem guineense. Amílcar Cabral,
Vasco Cabral e António Baticã Ferreira são referências desse tempo. Sabemos que,
na então colônia, não existiam grupos que poderiam constituir em “movimentos
literários”. Qual a sua avaliação desse período?
Moema Augel: Você se referiu muito
bem a esse período na sua dissertação de mestrado. Há poucas vozes conhecidas,
e provavelmente algumas outras que nem chegaram aos nossos ouvidos.
Compreensível pelo estado de pouco uso da escrita naquela época. Mas discordo
de se querer amenizar essa lacuna lançando mão de autores estrangeiros,
portugueses e caboverdianos sobretudo, que escreveram romances e poemas com
temáticas guineenses. Eles têm seus méritos, mas apresentam uma visão de fora,
também natural, não pertencem, a meu ver, à literatua da Guiné-Bissau.
Eliseu Banori: Mantenhas para quem luta! A
nova poesia da Guiné-Bissau (1977) foi a segunda
antologia publicada, após a independência do país (1973). Foi a primeira a
reunir somente poetas de nacionalidade guineense (14 poetas). Os temas poéticos
dessa coletânea parecem ser um embrião da literatura guineense. Manuel
Ferreira, Russel Hamilton e Fernando J.B. Martinho, autor do prefácio do livro A luta é a minha Primavera, de Vasco
Cabral, discordam em relação ao marco da literatura guineense. No entanto, suas
pesquisas parecem apontar o livro Poemas, de Carlos Semedo, como marco
da literatura guineense. O que tem a dizer sobre essas contradições entre esses
historiadores de literaturas africanas de língua portuguesa?
Moema Augel: Como publicações
impressas, em livro, alguns autores o fizeram somente depois da independência;
mas possuem textos datados de época anterior, como você documentou em seu
trabalho de mestrado. Carlos Semedo
publicou Poemas já antes da independência, em 1963, uma modesta, mas
preciosa brochura que eu não chamaria de livro ainda, como não o foram as duas
ou mesmo três primeiras antologias poéticas do país ou a "Garandessa di nô
tchon", de Conduto de Pina, de 1978, edição do autor, a primeira
publicação poética individual depois da independência. Friso, entretanto, que
essa modéstia em nada diminui a importância dessas publicações. Muito pelo
contrário.
Eliseu Banori: Hoje em dia, não podemos negar que as suas obras são grandes
referências para quem pretenda escrever sobre literatura guineense. Como você
vê o interesse em torno da literatura guineense no Brasil?
Moema Augel: Relativamente grande e
em franco crescimento. Odete Semedo foi reeditada em editoras brasileira e
portuguesa, Abdulai Sila também, e ainda com tradução em francês, inglês e
italiano do seu romance A última tragédia; ambos e também Tony Tcheka
têm sido convidados com frequência por diferentes instituições culturais;
professores de várias universidades trabalham e animam seus estudantes a
trabalharem sobre esses e outros autores guineenses, há artigos, teses e
dissertações sobre assuntos variados, não só de literatura, pelo Brasil afora,
enfim, é gratificante constatar que em quase nenhum congresso de maior extensão
a Guiné-Bissau está ausente. Recentemente foi defendida no Brasil uma tese
sobre o cineasta Flora Gomes. Se você consultar a internet, vai se admirar das
centenas de toques, referências que evidenciam a frequência e o interesse de
cada um desses autores e outros também.
Eliseu Banori: Sabemos que você morou na Guiné-Bissau por alguns anos. Só saiu de
lá às vésperas do conflito militar de 1998/1999. Qual foi o motivo da sua
visita, e quanto tempo ficou por lá?
Moema Augel: Meu marido, Johannes
Augel, da Faculdade de Sociologia de Bielefeld, Alemanha, foi convidado a
participar no INEP de um programa das igrejas evangélicas da Alemanha (hoje
"Pão para o Mundo", Brot für die Welt), direcionado para a cooperação
internacional. Fui como "acompanhante" não financiada, e me
interessei desde o início pela cultura local, procurando me informar sobre os
escritores. Não tendo encontrado quase nada disponível, apostei na certeza de
que não era possível inexistirem pessoas que escrevessem; fui procurá-las,
aleatoriamente, em locais de trabalho e fui encontrando e conhecendo pessoas
que me mostravam seus escritos, poesia e prosa, em cadernos manuscritos ou
folhas na época quase sempre datilografadas (e quase nunca digitadas em
computadores). Convencida da grande qualidade de alguns desses textos, procurei
meios para financiar algumas publicações, encontrando abertura na representação
da União Europeia em Bissau, na época dirigida pelo Delegado Riccardo Gambini;
tive também total cobertura da parte do INEP que, apesar de estar vocacionado
sobretudo para os estudos e pesquisa voltados para assuntos da sociedade e da
cultura em geral, aceitou abrir espaço ao meu projeto literário. O sucesso não
podia ter sido maior e até hoje sou imensamente grata pela confiança que ambas
as instituições depositaram em mim. Johannes Augel teve um contrato de cerca de
3 anos, do final de 1992 a 1996; meu projeto
prosseguiu e estive no país então por várias vezes por semanas ou meses até que
a Páscoa de 1998, tendo retornado "definitivamente" para Bielefeld,
com meu projeto finalizado com a publicação de oito volumes da Colecção Kebur,
poucas semanas antes do conflito que começou em maio de 1998.
Eliseu Banori: De todos os países da África de língua portuguesa, a
Guiné-Bissau foi o que mais sofreu em relação à divulgação dos seus escritores.
Lembremo-nos de que na então colônia não havia atividades literárias
desenvolvidas por guineenses, ao ponto de nascerem “movimentos literários”
guineenses, como aconteceu em Angola, Moçambique e Cabo Verde. O que mais se
manifestava eram expressões poéticas individuais dos poetas desse tempo. O que
tem a dizer sobre essas declarações?
Moema Augel: Acho que já me referi a
esse assunto aqui respondendo a outras perguntas desta entrevista.
Eliseu Banori: Nota-se, na maioria das antologias poéticas guineenses, desde 1973
até a última em 2010, pouca participação das vozes femininas, ou seja, a
presença feminina parece apagada nessas antologias. Comente a pouca
visibilidade das mulheres na literatura guineense.
Moema Augel: Na verdade, não é
somente na Guiné-Bissau que se constata o quase silenciamento das vozes
femininas, sobretudo no passado. A falta ou quase falta de escolaridade das
meninas é certamente um doloroso e frequente fator. A mentalidade ainda
predominante em muitas culturas de que o lugar da mulher é à beira do fogão,
"mulher própria só vale na porta do casamento", como escreveu Félix
Sigá em seu poema "Pasa ku mon".
Eliseu Banori: Para terminar, gostaríamos de saber de onde vem a sua inspiração.
Que conselhos você daria para as novas gerações de pesquisadores das
literaturas guineenses que buscam se afirmar no mundo literário?
Moema Augel: Não é questão de
inspiração, Eliseu. E sim de interesse, de envolvimento, da convicção que vale
a pena apostar na Guiné-Bissau, país que se tornou também meu "tchon"
emocional. Para quem pesquisa sobre o país, é necessário que procurem conhecer
o país em sua rica diversidade cultural sem a qual não é fácil compreender a
essência dos textos que são tão impregnados dessas culturas.
CRONOLOGIA CULTURAL: EDUCAÇÃO, LITERATURAS, JORNAIS; EDITORAS, CINEMA,
ARTE
1800
·
Publicação do Boletim Oficial da Guiné
Portuguesa[74].
1879
·
Fundação da primeira tipografia
do país, a Imprensa de Bolama.
1899
·
Publicação do artigo: Tradições e ethnologia. O Guinéense em
Lisboa, na Revista Lusitana, de Cônego
Marcelino Marques de Barros.
·
Publicação de artigo: Apontamentos gramaticais. O Guinéense em Lisboa, na Revista
Lusitana, de Cônego Marcelino Marques
de Barros.
1900
Publicação do livro: Litteratura
dos negros. Contos, Cantigas e
parábolas, de Cônego guineense Marcelino Marques de Barros. Primeira
coletânea da oratura guineense.
1900-1901
·
Publicação do artigo: Themas de Sintaxe. O Guinéense em Lisboa, na Revista Lusitana, de Cônego Marcelino Marques de Barros.
1902
·
Publicação do artigo: Vocabulário português-guinnénse I. O Guinéense em Lisboa, na Revista Lusitana, de Cônego Marcelino Marques de Barros.
·
Publicação do artigo: Vocabulário português-guinéense II. O Guinéense em Lisboa, na Revista Lusitana, de Cônego Marcelino Marques de Barros.
·
Publicação do artigo: Vocabulário português-guinéense – conclusão. O Guinéense
em Lisboa, na Revista Lusitana, de
Cônego Marcelino Marques de Barros.
1907
·
Publicação do artigo: Textos em prosa e verso. O Guinéense em Lisboa, na Revista Lusitana, de Cônego Marcelino Marques de Barros.
1924
·
Fundação do primeiro jornal do
país Pró Guiné.
1938
·
Publicação da História da Guiné, de João Barreto.
1946
·
Publicação do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa,
num total de 110 números, de 1946 a 1973.
1952
Publicação do primeiro conto guineense: Amor e Trabalho, de James Pinto Bull.
1958
·
Fundação de primeiro
estabelecimento de ensino secundário (Honório Barreto).
1963
·
Primeira publicação poética de
um guineense nato: Poemas, de Carlos
Semedo. Um livrinho que conta com quarenta e sete páginas.
1973
·
Publicação de Poilão, caderno de poesia. Uma modesta
coletânea que reuniu poetas de diferentes nacionalidades, entre eles: quatro
portugueses, três cabo-verdianos e quatro guineenses (Atanásio Miranda, António
Batacã Ferreira, Pascoal D´Artanag Aurigemma e Tavares Morreira).
1975
·
Fundação do primeiro jornal
logo após a independência – No Pintcha.
·
Criação do Banco Nacional.
·
Criação do Ballet Nacional.
1977
·
Publicação de Mantenhas Para quem Luta: A nova Poesia da Guiné-Bissau. Primeira
coletânea de poesias que reuniu apenas escritores nacionais. Participaram nela
os seguintes autores: Annello Augusto Regalla, Morés Djassy, Tony Davyes,
António Soares Lopes Júnior, Armando Salvaterra, Carlos de Almada, Hélder
Proença, Jorge Ampa Cumulerbo, José Carlos Schwarz, José Pedro Sequeira, Justino
Monteiro (Justen), Nagib Said e Tomás Paquete.
1978
·
Publicação de Antologia
poética: Momentos Primeiros da Construção.
Antologia dos jovens poetas. Autores participantes: Aristides Gomes; Tony
Tcheka; Hélder Proença; José Carlos; Justino Monteiro (Justen); Nagib Said;
Armando Salvaterra; Djibril Baldé; Huco; Nelson Medina; Serifo Mané; Mariana
Marques Ribeiro.
·
Publicação de Garandesa di no Tchon, primeira obra
poética de autoria de um guineense
depois da independência, de Francisco Conduto de Pina.
1979
·
Publicação da antologia Os Continuadores da Revolução ea recordação de Passado Recente. Organizada
por Mário de Andrade. Participaran os seguintes poetas: (Bacar Cassamá;
Valentin Bondy; Jorge Siuna Guad; Luís Carlos; Manuel Nassum; Malam Gomes;
Bubacar Baldé; Mussá Correia; Alberto Tambá; Djibril Seidy; Said Siad Mané;
Malam Mané; Malam Seidy; Alberto Faradai; Abdú Cassamá; Braima Biai; Romana
Dias; Agostinho Lopes; Armando Indanhy; Jorge N’Haga; Daniel Mendes; N’Hamo
Sambu; Linda Pereira.
·
Publicação do livro de
adivinhas: N´sta li, n´sta la, de Teresa
Monenegro & Carlos Moraes.
·
Publicação de Jumbai. Storias do que se passou em Bolama –
e outros locais, de Teresa Montenegro & Carlos Moraes.
1980
·
Criação da Escola de Música sob
a direção de José Carlos Schwarz.
·
Criação da primeira Escola de
Direito em Bissau.
1981
·
Publicação de A Luta é a Minha Primavera, poemas, de
Vasco Cabral. Essa obra é considerada a segunda publição individual de autoria
de um guineense nato, após a independência.
1982
·
Publicação de Não Posso Adiar a Palavra, poemas, de
Hélder Magno Proensa.
1984
·
Fundação do Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisa – INEP.
1987
·
Abertura da Biblioteca Pública
do INEP.
·
Publicação do O Longo Caminho, poemas, de Carlos
Alberto Pires da Silva.
·
Primeira rodagem do filme de
ficção guineense, Mortu Nega, de Flora
Gomes.
·
Criação da Editora Nimba sob tutela da Direção Geral da
Cultura da época.
1988
·
Inauguração da Editora Nimba.
·
Inauguração do Museu Nacional.
1989
·
Inauguração de primeira
Televisão Nacional – EAGB.
·
Publicação de O Crioulo da Guiné-Bissau: Filosofia e Sabedoria, de Benjamim Pinto
Bull.
1990
·
Publicação de Antologia poética da Guiné-Bissau.
Participaram os seguintes poetas: Amílcar Cabral; Vasco Cabral; Hélder Proença;
Agnelo Regalla; António Soares Lopes Júnior; José Carlos Schwarz; Pascoal
D’Artagnan Aurigemma; Francisco Conduto de Pina; Carlos Alberto Alves de
Almada; Jorge Cabral; Félix Sigá; Domingas Samy; Eunice Borges.
·
Publicação de A Literatura
Colonial Guineense, de Leopoldo Amado, Revista ICALP, vol. 20 e21, Julho -
Outubro de 1990
1991
·
Criação da Editora Escolar.
1992
·
Publicação de Antologia poética O eco do pranto: A criança
na Moderna poesia guineense, organizada por Tony Tcheka. Foram um total de
dez poetas, entre eles: Agnelo Augusto
Regalla; António Soares Lopes; Conduto de Pina; Félix Sigá; Hélder Proença;
Jorge Cabral; Mariana Ribeiro; Pascoal D’Artagnan Aurigemma; Vasco Cabral.
·
Primeira rodagem do filme Os olhos azuis de Yonta, de Flora Gomes.
1993
·
Publicação de A nossa Mudança, poemas, de Manuel da
Costa.
·
Publicação de A força de Vontade, contos, de Manuel da
Costa.
·
Publicação de A Escola, contos, de Domingas Samy.
·
Publicação de Tâli, contos, de Adul Carimo Só.
1994
·
Fundação da primeira Editora
privada do país – Ku Si Mon Editora.
·
Primeiro número da Revista
Tcholana. Revista de Letras, Arte e Cultura, a primeira do país (1994-1996)
·
Publicação de Eterna Paixão, de Abdulai Sila. Primeiro
romance de um guineense nato.
·
Publicação de Amor e Esperança, poemas, de Pascoal D’Artagnan Aurigemma.
1995
·
Publicação de A última Tragédia, de Abdulai Sila.
Segundo romance de um guineense nato.
·
Publicação de Uori. Storias de lama e philosophia, de Teresa
Montenegro & Carlos Moraes.
1996
·
Publicação de Kebur. Barkafon di poesia na Kriol,
primeira coletânea de poesias unicamente na língua crioula. Poetas
participantes: Atchutchi; Djibril Balde; Ernesto Dabó; Nelson Medina; Huco
Monteiro; Dulce Neves; Respício Nuno; Conduto de Pina; Armando Salvaterra; José
Carlos Schwartz; Odete Semedo; Félix Siga; Tony Tcheka. Colecção Kebur n°1.
·
Publicação de Noites de Insônia
na terra adormecida, poemas de Tony Tcheka. Colecção Kebur n°2.
•
Publicação de Entre ser e o amar, poemas, de Maria
Odete Costa Semedo. Colecção Kebur n°3.
•
Publicação de Arqueólogo da calçada, poemas, de Félix
Sigá. Colecção Kebur n°4.
•
Publicação de Djarama e outros poemas, poemas, de
Pascoal D’Artagnan Aurigemma. Colecção Kebur n°5.
·
Publicação de Um Novo amanhecer, poemas, de Julião
Soares Sousa.
·
Publicação de Mufunesa padi sabura, poemas, de Adul
Carimo Só.
1997
•
Publicação de Ora de Kanta Tchiga. José Carlos Schwarz e o Cobiana Djazz, de
Moema Parente Augel. Colecção Kebur n°6.
·
Publicação de Mistida, romance, de Abdulai Sila.
·
Publicação de Kikia Matcho, romance, de Filinto de
Barros.
·
Publicação de O Silêncio de gaivotas, poemas, de
Franscisco Conduto de Pina.
·
Publicação póstuma de E o Poeta pegou num pedaço de papel e
escreveu, poemas, de Artur Augusto da Sila, de origem cabo-verdiana.
·
Publicação de Corte Geral. Deambulações no surrealismo guineense, contos, de
Carlos Lopes.
·
Publicação de A literatura na Guiné-Bissau, de Aldonio
Gomes e Fernanda. Cavacas
1998
•
Publicação de Os marinheiros de Solidão, poemas, de
Jorge Cabral. Colecção Kebur n°7.
•
Publicação de A nova Poesia da Guiné-Bissau, de Moema
Parente Augel. Colecção Kebur n°8.
·
Publicação de Cabaz de amores, poemas, de Carlos Edmilson
Vieira.
1999
·
Publicação de Para um conhecimento de teatro africano,
ensaio, de Carlos Vaz.
·
Publicação de Tiara, romance, de Filomena Embaló,
guineense de coração.
2000
·
Publicação de Sonéá. Histórias e passadas que ouvi contar
I, contos, de Maria Odete Costa Semedo.
·
Publicação de Djênia. Histórias que ouvi contar II,
contos, de Maria Odete Costa Semedo.
·
Publicação de Contos de N´Nori, de Carlos Edmilson Vieira.
2001
·
Publicação de Olhar de Mulher, poemas, de Manuel da
Costa.
·
Publicação de Stera di Tchur, poemas, de Rui Jorge
Semedo.
·
Publicação de Guiné, poemas, de Mussa Turé.
·
Publicação de Falso plaquê, poemas, de Atchô Express.
2002
·
Publicação de Sol na
mansi, poemas, de Nelson Medina,
primeira obra poética individual na língua crioula.
·
Primeira rodagem de filme de Nha fala, de Flora Gomes.
·
Publicação de Esperança é a Última a morrer, poemas, de Emílio Lima.
·
Publicação de Os tesmunhos de Mbera, romance, de Média
Sepa Maria Ié Có.
·
Publicação de O passaporte, contos, de Armindo
Gregório Ferreira Júnior.
2003
·
Início de atividades da
primeira universidade do país – Universidade Colinas de Boé.
·
Publicação de Testemunhos de ontem, poemas, de Silvano
Gomes.
·
Publicação de No fundo do Canto, poemas, de Odete
Costa Semedo.
2004
·
Publicação de Contos do mar sem fim pela Editora Ku Si
Mon. Autores participantes: Olonkó; Julie Agossa Djomatin; Andrea Fernandes;
Uri Sissé.
·
Criação da Universidade Amílcar
Cabral
·
Publicação de Em nome de Absurdo, poemas, de Inácio
Valentim.
·
Publicação de Chuvas de lágrimas, poemas, de Tino João
Miralho.
2005
·
Publicação de Pensar de um sonho, poemas, de Onésimo
Feguerreiro.
·
Publicação de O pensador do Canapé, poemas, de Inácio
Valentim.
·
Publicação de Palavras da Alma, poemas, de Inácio
Gomes Semedo.
·
Publicação de Coração Cativo, poemas, de Filomena
Embaló.
·
Publicação de Carta aberta, contos, de Filomena
Embaló.
·
Publicação de As Chaves do Progresso, ensaio, de Plínio
Gomes dos Reis Borges.
2006
·
Publicação de Mundo kebur, poemas, de Silvano Gomes.
·
Publicação de Fogo fácil, contos, de Marinho de Pina.
·
Publicação de Kali e a Cabaça, contos infantil, do
Músico Ramiro Naka.
2007
·
Publicação do romance A última Tragédia , romance, pela Editora
Pallas, Brasil.
·
Publicação de No fundo de Canto no Brasil pela Mazza
Editora.
·
Publicação de As orações de Mansata primeira peça
teatral guineense, de Abdulai Sila.
·
Publicação de N’tchanga,
romance, de José Alberto do Rosário.
·
Publicação de A minha flor de acácia rubra, contos, de
Carlos pires da Silva.
·
Publicação de Retrato, poemas, de Rui Jorge Semedo.
·
Publicação de O Desafio do Escombro, Nação, Identidadede e Pós-Colonialismo na
Literatura da Guiné-Bissau, de Moema Parente Augel, pesquisadora da
literatura guineense.
·
Publicação de Estado da Alma, poemas, de Tomás Soares
Paquete.
·
Publicação de A Mão Direita do Diabo, romance, de Plínio
Gomes dos Reis Borges.
2008
·
Publicação de Guiné Sabura que Dói, poemas, de
Tony Tcheka.
·
Publicação de Admirável Diamante bruto, contos, de
Waldir Araújo.
·
Publicação de Bendita loucura, poemas, de Saliatú da Costa.
·
Publicação de Estátua Perdida, teatro, de Raúl Mendes.
2009
·
Publicação de No Canto Lúgubre da Verdade, poemas, de Édison Ferreira.
·
Publicação de Não me Canso de Esperar, poemas, de Roberto
Sousa Cordeiro & César Inácio Vieira.
·
Publicação de Caderno de poesias, de Jorge Otinta.
·
Publicação de Djassira do Bairro de Missira, romance,
de João de Barros.
2010
·
Publicação de Notas Tortas nas folhas Soltas, poemas, de
Emílio Lima.
·
Publicação de Infinito: Conto & poesia, de Emílio
Lima.
·
Publicação de No Compasso do primeiro passo, poemas,
de André Luís Mendes.
·
Publicação de Palavras Suspensas, poemas, de Francisco
Conduto de Pina.
·
Publicação de Traços no Tempo. Primeira antologia poética
Juvinil da Guiné-Bissau. Poetas participantes: Adão Quadé; André Mendes;
António Costa; Armando Lona; Danilson Correia; Danso Yalá; Emílio Lima;
Filomena Correia; Flaviano Mindela; Gabriel Yé; Gina Có; Irina Ramos; Jacinto
Mango; Jaime Nhaté; Lourenço da Silva; Mamadu Baldé; Marcos Djú; Maurício Mané;
Mussá Saní; Rui N’faca; Sinhote Có; Vitorino Indeque; Omarildo Silva.
·
Publicação de Noites das Lágrimas em África, de
Marcelo Aratum.
·
Publicação de Adormecer
de um Sonho, poemas, de Carlos Edmilson Vieira.
2011.
·
Publicação de Na Flor de Ser, poemas, de Emílio Lima.
·
Publicação de Em Busca do Espaço Verde, poemas, de
Eliseu Banori.
·
Publicação de Entre a Roseira e a Pólvora, o Capin, poemas,
de Saliatú da Costa.
·
Publicação de IMF No Palácio do Governador, poemas, de
Hildovil Silva & Iramã Sadjo.
·
Publicação de Mar Misto, poemas, de Ernesto Dabó.
·
Publicação de Noite das lágrimas em África, de Marcelo
Aratum.
2012
·
Publicação de O Vento Ainda Sopra, poemas, de Eliseu
Banori..
·
Publicação de Insana Rebeldia, poemas, de Edson
Pereira Incopté.
·
Publicação de L`ultime combat pour um amour anonyme,
poemas, de Lourenço da Silva.
·
Publicação de Anjo do Mal, poemas, de Plínio Gomes dos
Reis Borges.
·
Publicação de Finhani o Vagabundo apaixonado, poemas, de
Emílio Lima.
2013
·
Criação da Associação de Escritores da Guiné-Bissau, AEGUI.
·
Criação da
Cooperativa e Editora Corubal. Trata-se de
uma cooperativa de produção, de divulgação cultural e científica, iniciativa de
alguns escritores e ativistas culturais. ( Tony Tcheka, Patrícia Gomes Godinho,
Rui Jorge Semedo e Miguel de Barros).
·
Publicação de Krensa pertan pitu. Maradura di kerensas, de Huco Monteiro, 2013. Poemas, livro inteiramente em crioulo
·
Publicação de O colo. Ragaz, poemas, de Caetano Imbó,
ed. biligue.português/crioulo.
·
Publicação de Tanamu fenhi na republika di Kafumban,
de Huco Monteiro , Corubal, Também em
crioulo.
·
Publicação de Kunfentu na
bankulé. Kantigas di speransa, de Huco Monteiro. Também em crioulo.
·
Publicação de Polon Malgos, poemas, de Seravat Amil.
·
Publicação de Dois Tiros e uma Gargalhadas, teatro, de Abdulai Sila.
·
Publicação de dor e esperança, poemas, de Vasco de
Barros.
·
Publicação de Recados de Paz. Antologia poética para
paz na Guiné-Bissau.
·
Publicação de As Lágrimas de uma Mulher: Os Culpados,
romance, de Marcelo Aratum.
·
Publicação de O retorno dos “Gans”, romance, de
Fernando Perdigão.
·
Publicação de Retratos
de mulher, poemas, de Antonieta Rosa
Gomes.
·
Publicação de Rosas
da Liberdade, poemas, de Manuel da Costa
·
Publicação de Maré branca em Bulínia, romance, de Manuel da Costa
2014
·
Publicação de Ema vem todos os dias, contos, Uma
edição da Ku Si Mon Editora.
·
Publicação de Memórias Fascinantes: Relatos que traduzem o silêncio, crônicas &
poesias, de Eliseu Banori.
2015
·
Publicação de As almas em Agonia, romance, de Eliseu
Banori.
·
Publicação de O cineasta visionário, Flora Gomes, de Miguel de Barros, (org)
Bissau: Corubal, 2015.
·
Publicação de Desesperança no chão de medo e dor,
poemas, de Tony Tcheka.
·
Publicação de M’Bim o
feiticeiro, romance, de Abdelaziz dos Reis Vera Cruz.
·
Publicação de Sem poemas, de Inácio Semedo.
2016
·
Publicação de Memórias Somânticas, romance, de Abdulai
Sila.
·
Publicação de Os Media na Guiné-Bissau por António
Soares Lopes (Tony Tcheka).
2017
·
Publicação de Cantar de Galo, contos, de Eliseu
Banori.
·
Publicação de Mil pedaços de
amor, romance, de Geraldo Martins.
·
Publicação de Magarias,
poemas, de Amadu Dafé
2018
·
Publicação de Kangalutas, teatro, de Adbulai Sila.
·
Publicação de Pérola Roubada, romance, de Né Vaz
(Vanessa Margarida Buté Vaz).
·
Publicação de Olonko, poemas, de Ernesto Dabó.
·
Publicação de Escritos no Silêncio, de Carlos Vaz.
2019
·
Publicação de Desilução, de Geraldo Martins.
2020
·
Publicação de A história que a
minha não me contou e outras histórias da Guiné-Bissau, contos infanto-juvenil,
de Eliseu Banori.
[1] Há também maior dificuldade de divulgação das obras de autores
são-tomenses.
[2]Uma das linhagens da etnia papel.
[3] O Index Mundi: Guiné-Bissau Taxa de alfabetização. Disponível em:<https://www.indexmundi.com/g/g.aspx?c=pu&v=39&l=pt>. Acesso no 18.04.19.
[4] Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira. UNILAB Em NÚMEROS. Disponível
em<https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNTkzZjY2MWQtNjMzNS00MjkzLWI4YTAtOGJjY2NmNjdmNzI1IiwidCI6IjkwMjlkZGNlLWFmMTItNDJiZS04MDM3LTU4MzEzZTRkYzVkMSJ9>
. acesso no dia 2/05/19.
[5]Iniciação a vida adulta.
[6] Circuncisão à vida adulta.
[7]Conta-se 27 grupos étnicos;
porém, esse número não é unânime entre os pesquisadores da área.
[8]Em 1998, os militares rebeldes – que
pertenciam as Forças armadas do país, revoltaram-se contra o então presidente
da República, João Bernardo Vieira (Nino Vieira). Esse conflito durou onze
meses
[9]É o fruto de uma árvore africana, a sua noz
é comida inteira ou moída em pó... É uma fruta que não precisa assar para ser
comida.
[10]Mercado de Bandim (Mercado mais movimentado
da cidade de Bissau).
[11]Significa “Deus seja louvado” na língua
fula. Também é uma expressão que mostra admiração, espanto e surpresa.
[12] É um crioulo moderno, considerado
aportuguesado. Kriol fundo é um crioulo tradicional, falada ainda por mais
velhos, em dos casos nas regiões interiores do país. (AUGEL, 1998, p.36)
[13]Crioulo com vocabulários difíceis, falados
geralmente por mais velhos nos espaços menos influenciados pela escola (AUGEL,
2007, p.85)
[14]COUTO, Hildo Honório do. Provérbios crioulo-guineenses.
Disponível em < http://www.didinho.org/Arquivo/proverbioscriouloguineenses.htm >. Acesso no 08.10.18.
[15]Aquilo que é nosso tem
valor.
[16] Entrevista anexada na minha monografia de curso de especialização
em 2015, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[17]Na cultura guineense, cada cor de pano tem
um determinado significado. Há panos de pente usado para dias quentes, outros
para cerimonias de funerais, assim como, ele é usado para entrada de uma noiva
à casa nova. Porém, o pano de pente, também, é dado na cultura guineense, como
gesto de reconhecimento, a uma pessoa enlutada e para um hóspede que fez uma
ação significativa para uma família. O pano de pente, também, é dado como gesto
de gratidão ao um representante de instituições privadas quando volta ao país
de origem.
[18]Kebur significa colheita em Kriol e constituiu uma metáfora muito apreciada nos primeiros
momentos pós – independência, como um símbolo de ação e encorajamento,
mobilização e idealismo (AUGEL, 1996, p.15).
[19]Como Rui Jorge Semedo, no seu artigo: Uma
Radiografia do processo literário guineense (2012) e Odete Costa Semedo no seu
artigo: Literatura Guineense: entre a (re) criação e os atalhos da história
(2011).
[20]Indivíduo que nasceu em Bolama.
[21]Árvore de porte grande.
[22]Vamos em frente.
[23]CABRAL, Amílcar. Revista Prosa, Verso e
Arte. Poemas. Disponível em: < https://www.revistaprosaversoearte.com/amilcar-cabral-poemas/ >. Acesso em 20/01/2019.
[24]Ibid., Acesso em 20/01/2019.
[25]Como disse Antonio Candido, quando se
referiu manifestações literárias e define-as como todo o bal-balbuciar
literário de inspiração individual ou de influência em outras literaturas,
porém, não representativas a ponto de ser considerado um sistema (SEMEDO, 2011,
p.23).
[26]TOKARNIA. Mariana. In: Correio Nagô. Acesso à educação infantil
ainda é desigual no país, aponta a Secre-taria de Assuntos Estratégicos.
Disponível em: < http://correionago.com.br/portal/dialogos-presentes-cris-sales-en-trevista-poeta-cuti/>.
Acesso 28/06/2018.
[27]SEMEDO, Odete. In: Universo Cultural
Guineense. Em que língua escrever. Disponível em: < https://guinele-tras.wordpress.com/2013/08/31/odete-semedo/ >. Acesso em 28/08/2018.
[28] Adivinha, Adivinha.
[29] Adivinha certo.
[30] Há ervas na fonte.
Resposta seria ‘vagina da mulher.
[31] Eu tenho batata no quintal, mas nunca a
comi, somente as pessoas de fora podem comê-la. A resposta seria ‘minha filha’.
Essa adivinha nos prova que, no contexto africano, não é muito comum abuso de
violação sexual de um pai para com a filha.
[32] Três homens debaixo da chuva, somente um
deles ficou molhado. A resposta seria “o pênis“
[33]Jumbai é um termo crioulo que pode ser traduzido
como “convívio” e com essa escolha os autores quiseram fazer sobressair o
caráter comunitário, de interação social em que se enquadram o narrador ou a
narradora de estórias e seu público (AUGEL, 1998, p. 44)
[34] Esse provérbio já é citado
anteriormente.
[35] São grupos (redes)
de solidariedade e de convivência social que funcionam na base da classe etária
e de interesses comuns e de acordo com as normas predefinidades e aceites por
todos os membros. São várias as formas de ajuda e apoios que existem no
interior das mandjuandadis, desde a celebração de festas, casamentos,
cerimónias, apoios em caso de doença, investimento em negócio, pequenos
créditos. Este tipo de redes existe seja nas cidades seja nos campos (GOMES, 2015,
p. 35).
[36] Não podemos afirmar
categoricamente autoria dos referidos textos. Porém, tudo leva a crer que os
fundadores da editora Ku Si Mon
seriam os responsáveis por esses textos.
[37] Se não há saída, uma má saída é saída?
[38]Disponível em:<http://www.elfikurten.com.br/2015/09/amilcar-cabral.html> acesso no dia 25/03/19.
[39]Kebur significa colheita em kriol e constituiu uma metáfora muito
apreciada nos primeiros momentos pós-independência, como um símbolo de ação e
encorajamento, mobilização e idealismo. Barkafon
significa alforge, bolsa, imagem aqui usada para expressar a idéia de coleção,
coletânea (AUGEL, 1996, p. 15).
[40]Extrato de uma entrevista ao escritor guineense Tony Tcheka em fevereiro de 2019.
[41] Disponível em <http://www.buala.org/pt/a-ler/quem-foi-a-mae-de-amilcar-cabral> acesso no dia 13/02/19.
[42] Ibid.
[43] Ibid.
[44]Ibib.
[45] O São-tomense Raúl Castro, nessa altura,
presidia a Casa dos estudantes. Porém, a sua postura de liderança incomodava
bastante os membros da Casa, pois era visto como um colaboradore dos
portugeses. (ORAMAS, 2014, p. 37)
[46] Uma força cruel paramilitar,
que prendia e administrava as punições, além de aterrorizar a população rural
em geral (MENDY, 2012, p. 20).
[47] A
Guiné Conacry tem fronteira com a Guiné-Bissau. Era usada como a base de
retaguarda.
[48] Disponível em <http://www.elfikurten.com.br/2015/09/amilcar-cabral.html>.
Acesso no dia 29.01.19.
[49] Disponível em <http://www.elfikurten.com.br/2015/09/amilcar-cabral.html>. Acesso no dia 29.01.19.
[50] Ibid., Acesso em 29/01/2019.
[51] Disponível em <http://www.elfikurten.com.br/2015/09/amilcar-cabral.html>. Acesso no dia 29.01.19.
[52] Disponível em <http://triplov.com/guinea_bissau/vasco_cabral/poemas/index.htm> . Acesso em 31/01/2019.
[53]Ibib acesso no dia 31/01/2019.
[54] Disponível em http://triplov.com/guinea_bissau/vasco_cabral/poemas/index.htm.
Acesso no dia 31/01/2019.
[55] Ibid.
[56] Ibid.
[57] Ibid.
[58] Ibid.
[59] Mencionamos a obra
de Proença no capítulo II página 101.
[60] Era jornalista e político. Era homem de
confiança de ex-presidente Nino Vieira
[61] Ave de mau agoiro.
[62] Revista Crioula, Inocência Mata: a essência dos caminhos que
se entrecruzam. Diponivel em: < https://pt.scribd.com/document/133135502/Entrevista-Inocencia-Mata>. Acesso no dia 08 de junho de 2019.
[63] Cerimônias
tradicionais feita na residência do defunto, ou na residência de algum membro
familiar, onde se come e sacrificam animais: vacas, porcos e cabras, entre
outros, com a finalidade de fazer a alma de defunto descansar em paz no outro
mundo, segundo a tradição.
[64]Tony Tcheka, entrevista concedida ao Jornalista
José Sousa Dias, de Agência Lusa, em outubro de 1996 (AUGEL, 1998, p. 259).
[65] Como qualquer homem e suas ambições profissionais, Tony Tcheka, muito
cedo, desempenhou várias funções, entre elas: diretor do Jornal Nô Pintcha; diretor da RDN- Rádio
Nacional da Guiné-Bissau; secretário Executivo da UNAE- União Nacional de
Artistas e Escritores; consultor Residente da UNICEF; coordenador Nacional e
Administrador Regional do Programa e projetos da SwedishSavetheChildren–RaddaBarnen;
membro da Comissão Nacional da UNESCO; consultor da APN (ONG Norueguesa) para
Angola no “Programa WhomanCan do It“
e formação de Mulheres na Política em Cuanza Norte e de jornalistas na
perspectiva do Género em Jornalismo e Comunicação, em Luanda:
consultor-Formador da RNTC – Rádio Neerlandesa, de Animadores de Rádios
Comunitárias; perito-media do Programa da União Europeia (UE) de Apoio a Atores
Não-Estatais; coordenador da CE-CPLP, da Comissão Especializada dos Media. O
poeta, também, já atuou em várias consultorias de curta duração ao serviço de
organizações nacionais e internacionais, em África e na América latina. É
membro da Administração dos Prémios da Lusofonia.
[66] Valor da colheita.
[67] Desgosto da Mpinte
[68]Trecho de uma entrevista feira com o autor Tony Tcheka (ver anexo).
[69] Significa, em
língua crioula, com as suas próprias mãos. A Ku Si Mon Editora foi a primeira
editora privado do país, tendo publicado até o momento mais de vinte obras,
entre elas: romances, contos, ensaios e dramas.
[70] Foi
o primeiro texto literário do autor publicado.
[71] A primeira peça de teatro editada na
Guiné-Bissau, inspirada em Macbeth, de Shakespeare.
[72] Esse trecho é da página da dedicatória do primeiro volume Sonéá: histórias que ouvi contar I.
[73] Lugar alagado, que serve
para plantar arroz.
[74] Segundo Leopoldo
Amado (1990), originalmente foi criado em 1880 e, após a independência, foi
denominado oficialmente como Boletim Oficial da República da Guiné-Bissau, em
1975.