12 de novembro de 2022

COMO SER UM BOM COLONIALISTA

Há um tempo estive envolvido num filme (esperem por ele, será grande!). A cena que tínhamos que filmar não era nada simpática e mexia com os nervos como se não fosse ficção (aliás era ficcionar a realidade). Todos sabíamos que era uma coisa para um filme, mas todos, como boas pessoas que somos, não nos queríamos ver numa situação parecida. Eu, pelo menos, não me queria ver nisso, e já tinha vivido na realidade algo similar (talvez conte noutra altura).

A cena era sobre um branco num país africano que apresentava a um grupo de amigos (pretos "ocidentais') um serviçal preto africano como alguém bem amestrado. A pessoa que fazia de serviçal não era "ator" (eu também não sou, pelo menos não profissional, mas nem pensei nisso na altura), e o papel que fazia era similar a um dos seus muitos papéis na vida real: cozinhar e servir a mesa. Fez-me isso confusão, porque parecia que ele não saía do papel e tive dificuldade, eu (falando de mim), em separar os tempos entre a ficção e a realidade. Outras pessoas também se sentiam como eu, apesar do realizador nos ter preparado para a cena.

No fim, lá tivemos uma reunião com o realizador sobre a situação e sobre o incómodo em ver essa pessoa a fazer aquela cena, pelo que muitas cenas dele foram alteradas e história teve de ser suavizada, e ele teve menos participação do que o esperado. E estávamos sempre a agradecê-lo, ao "ator/serviçal", sempre que nos servia, porque nos sentíamos incomodados e queríamos mostrar que era "nosso igual", nós, pretos europeus.

Dias mais tarde, em Bissau, estava num restaurante e uma pessoa veio servir-me, disse-lhe o obrigado cortês de praxe, com direito a sorriso e tudo, e lá continuei a conversa com a pessoa com a qual estava, não senti nenhum incómodo por estar a ser servido, afinal era o "papel" dela, era um trabalho dela naquela altura, não era o que a definia. Então e o "ator/serviçal"?

Bateu-me naquele momento : "Que paternalista do caralho sou eu! Que colonialista".

Não nego que não haja exploração da imagem de pessoas, pretas africanas da África, principalmente (as redes sociais estão cheias disso), mas não era esse o caso, porque o "ator/serviçal" estava a ser pago para isso e tinha-lhe sido explicado tudo sobre o filme. O que me incomodava mesmo? O que me incomodava mesmo? O que me incomodava mesmo?

Achava-me iluminado e protetor da "ignorância" de outrem contra exploração? O que me incomodava mesmo? Achava que a dita pessoa não era inteligente o suficiente para saber o que estava a acontecer a sua volta? O que me incomodava mesmo?

O meu incómodo era porque achava que o "ator/serviçal" não estava iniciado nos caminhos do "pós-des-de-anti-colonialismo" e que estava a fazer esse papel porque não tinha escolha. Achava que ele não tinha a noção completa da situação, mas ele só não tinha "a minha" noção das coisas, tinha a dele, a sua própria perspectiva. E a verdade era que ele estava a divertir-se imenso com aquela merda, estava a gostar de participar no filme. Estava a "atuar", fazendo uma coisa que sabia fazer bem e que não se importava de fazer. E de repente vê-se numa reunião com todos a decidirem sobre a sua participação, porque "precisavamos de o proteger e à nossa consciência".

É isso ser colonialista. É pensar que tenho mais visão que o outro, que conheço melhor os meandros da exploração (ou do desenvolvimento) e por isso devo desenhar eu o caminho do outro. Mas se fizer tudo com estilo e usar termos como liberdade (de expressão, principalmente), democracia, direitos humanos, anti-isto-e-anti-aquilo, creio que serei um "bom colonialista", desde que a luta seja para não colocar o meu próprio conforto em causa, como no caso descrito. Chifres na cabeça de cavalo.

Isso lembra-me uma vez que uma conhecida ativista negra em Lisboa me mandou e a meus irmãos falarmos português, porque era desrespeitoso falar kriol numa mesa onde havia pessoas que não falavam a língua.

Na luta anti-colonial, é tão, mas tão, mas muito tão fácil ser o colonialista.

16 de maio de 2022

CARO AMIGO POLIAMORISTA (DA ETICIZAÇÃO)

Caro amigo poliamorista,

Espero que esta missiva te encontre de boa com a vida e na crista da onda, onde andas como especialista a fazer revista na tua boa lista de poliamoristas e outras em vista de te fazerem festinhas. A sério desejo mesmo que não estejas num ermo, a sentires-te enfermo, mas a curtir amores em cheio com o sucesso de envolvimentos plenos.

Caro amigo poliamorista, nós, seres humanos, somos todos falhos e metemo-nos em trabalhos, porque nunca queremos as mesmas coisas, cada um de nós poisa os seus ideais nas suas próprias notas, e é por isso que todos criamos regras e guias para as nossas vidas ou escolhemos seguir as linhas que o nosso indica como onde se respira mais sentido nesta via. Todavia, se algumas dessas regras parecem menos cegas ou são mesmo menos bestas que outras, não significa que não possam ser escrotas ou que sejam perfeitas e feitas para além da crítica. Cri e vi cá que o poliamorismo pode ser boa prática, sendo genérico, é certo; mas lá porque dizemos, às vezes histéricos, que o poliamorismo é "consentimento ético", não quer dizer que seja assim mesmo, e nem que o "consentimento ético" seja um exclusivo do poliamorismo.

É muito comum, sem freio nenhum, ver-te a chamar aos "monogâmicos" de traidores, quase como se fossem seres inferiores, que não sabem gerir os ciúmes e as dores e os ardores. E para provar quão errados são os monogâmicos, dizes que a monogamia é uma fantasia, uma construção social, logo está mal por não ser natural. Também dizes que a monogamia é da autoria do capitalismo, mas... hey... a monogamia é bem anterior ao capitalismo, pelo menos o capitalismo formal que conhecemos hoje, do qual até o diabo foge tomado de medo, e ao qual todos apontamos o dedo. E, caro amigo, o capitalismo também usa o poliamorismo, usa as não-monogamias e com todas as mordomias usa qualquer movimento capaz de aglutinamentos... o capitalismo não descura nichos, dá e tira com capricho e trata a todos como bichos.

Enfim... dizes assim e com tanta certeza: "Os animais na natureza não são monogâmicos, logo o ser humano não é feito para ser monogâmico." Bem concordo contigo, caro amigo, quando dizes que os animais não são monogâmicos...mas nem são poligâmicos... muito menos poliamoristas... todavia há espécies que só têm um parceiro e há os porreiros que não precisam de sequer do sexo e reproduzem por si e consigo mesmos, mostrando que a função do sexo talvez não seja meramente...Atenção, não estou com essa menção a dizer que a copulação serve só para reprodução, aliás nem define a reprodução, uma vez que, como acabei de dizer, há espécies que reproduzem sem foder... Largando este papo para outro espaço vou retomando: nem o ser humano é monogâmico ou poligâmico ou poliamorista, ele pode praticar tudo isso da lista, mas como espécie não o caracteriza. O ser humano não é um ser orientado apenas pelas básicas lógicas biológicas, mas faz as suas próprias, psicológicas e sociológicas. Destarte reduzir o ser humano a apenas uma camada: a animal, é negar que o pensamento e a organização social fazem parte da nossa evolução e nos ajuda com resoluções, e que foi o que nos ajudou a sobreviver a sérios novelos de desvelos, e paradoxalmente, a criar o antropoceno.

Nós deixamos de ser meramente "natural", quando começamos a criar, é só observar. Usamos óculos para melhorar os olhos, fones para ouvir melhor, adoçantes para o sabor, pacemaker para fazer bater o coração, e injeção e inoculação e vacinas para estender a vida, resistindo mais às adversidades biológicas. Transformamos e transformamos. Por exemplo, os dentes que que antes arreganhávamos para assustarmos os outros, hoje com novos modos arreganhamo-los como engodos, em sorrisos rasgados, para criar contactos. Ou por exemplo, hoje falamos tanto mesmo do problemático que é a masculinidade tóxica, da qual a gente não se quer próxima, filha da cultura do macho-alfa, e da qual se quer dar um basta, mas a natureza está cheia de exemplos de machos-alfa, o que, todavia, não nos faz falta, razão pela qual a ideia não se salva, pois não queremos descer a escarpa a louvar a cultura alfa. Em resumo: somos também construtos sociais e não mais apenas animais tintos com instintos não distintos.

Repito e remarco, a monogamia é tanto uma construção social quanto as não-monogamias. E de forma fria, também o amor é uma construção social, porque a noção do amor ou da sua demonstração também varia de sociedade para sociedade e é apreendido socialmente... Mas lá porque algo é uma construção social, não significa que seja do mal. "Não matarás! Não roubarás! Não foderás o teu vizinho... a não ser que ele peça com carinho!", são construções sociais, mas ajudam a sociedade a funcionar de forma mais capaz. 

Entendes caro amigo?, não obstante ser difundido como padrão e destruído formas de relação e de ligação, o conceito da monogamia não é problema por si mesmo e nem devia. Só quando os seus cônegos e crentes gastam fôlego e tempo e agem de modo cego a atacar as outras formas de relação, aí sim, entra a questão da problematização.

Hoje a monogamia é norma (regra, entenda-se)... as normas podem ajudar até deixarem de fazer sentido, até serem casos perdidos, ou começarem a causar mais mal do que bem, mas todos vivemos com normas, tanto que às vezes a forma como comportas com a questão do poliamor parece que não queres dar respostas, mas substituir uma norma pela outra, que ainda não tem a mesma expressão política e expressão opressora. Sim, falo de substituição e de opressão e não de alteridade, porque da forma como te vejo a policiar a poliamoridade parece-me que não queres deixar espaços para a liberdade de amar, embora seja o que andas a advogar. Caro amigo poliamorista, ama, deixa amar, deixe-se amar, sinta o amor, lambe-lhe a cor, toque-lhe o odor, olha o seu som, cheira-lhe a textura, sem gráficos complicados a qualificar os envolvimentos... aliás, não é o que pedimos aos monogamistas?

Caro amigo poliamorista, falas tanto do "consentimento etico", mas há muitas formas de relacionamentos que são éticas, como já tinha dito, e não é só o poliamorismo. A monogamia pode ser ética, a poligamia também pode ser ética, embora esteja a sua mais comum forma, a poliginia, fundamentada no poder macho (atemo-nos ao mundo humano, para evitar a cena dos alfas, embora o que não nos falta seja animalidade).

Sobre o consentimento ético, na Guiné-Bissau, a título de exemplo, é bastante comum a poliginia... o contrário não se verifica... todavia, apesar disso muitas vezes são questões acordadas, muitas vezes propostadas pela mulher, porque precisa de ajuda nos campos e na casa e no poço e nos trabalhos e nos trampos diários e no etecétera, enquanto o marido se senta o dia todo sozinho a sacudir moscas com um rabo de vaca ou a coçar os testículos numa outra tabanca. Claro que as suas circunstâncias é que as levam a isso, e se conhecessem ou vivessem noutra realidade, quereriam outra coisa com maior equidade. Apesar de tudo, algumas, dentro dessa sua prisão e da sua limitação, escolhem e consentem.

Anos antes do capitalismo pintar as sociedades guineenses, a poligamia (poliginia) já existia, e em uma dessas sociedades fala-se da existência outrora da poliandria, mas da qual nem sombra se vê hoje em dia, provavelmente resultado das evangelizações ou de outras razões. Quanto às sociedades poligínicas, o número das esposas dependia dos posses do homem, quanto mais campos e mais gados, mais esposas e mais filhos (mãos de obra). O capitalismo ainda não tinha ali chegado, a economia era centrada no sector primário e configurava e influenciava as relações ditas amorosas. Hoje ainda é a mesma coisa em todo o mundo, porque no fundo só a economia mudou, a relação do poder continuou.

Falei disto para dizer que nem a monogamia nem a poligamia são frutos imediatos do capitalismo, ou pelo menos do capitalismo formal moderno, embora, sim, sejam usados pelo capitalismo (tal e qual o poliamoriasmo). Há uma sociedade guineense que é poligínica, mas que tem mecanismos para a mulher vazar as suas frustrações com outro indivíduo masculino que lhe seja querido, não precisa do consentimento do marido, o marido pode até sentir-se traído, mas não há castigo, não há punição. E essa noção é a razão por que pode haver "consentimento" na "traição". E a chamada "traição", se calhar, não é de todo não-ético. Pessoas dormem com outras e "traem" por diferentes razões a que razão pode conhecer ou talvez não; algumas traições são necessárias pelas suas próprias razões, pode ser por sobrevivência mental ou material ou emocional ou social ou seja qual for, é preciso sempre contextualizar... a não ser que a ideia da ética seja mesmo uma forma de dogma. "Não matarás" é ético com certeza... mas... e se for em legítima defesa?

Caro amigo poliamorista, tenha isto em perspetiva, não somos e nem percebemos mais ou melhor do amor do que monoamoristas, só por sermos ou por nos dizermos poliamoristas, apenas temos um diferente entendimento. Aliás o poliamorismo pode ser tão tóxico quanto o monogamismo, porque a questão, caro amigo, não é a prática, mas quem a pratica e a forma como a ela se dedica.

Sob a capa do poliamorismo, também abrimos abismos e também temos predadores sexuais, stalkers (reais e virtuais); também passio-dependentes que usam outras gentes para a satisfação pungente dos seus vícios; 
temos visto gente com medo de compromisso que por isso transita entre corações sofridos para se abster de se comprometer com alguém, magoando antes com medo do distante; temos machos a defender a política de pénis único, com argumentos túrgidos, ciumentos como tudo, a controlar e a abusar de mulheres;  temos pessoas traumatizadas a traumatizar outras almas; temos pessoas mentirosas, traidoras e manipuladoras; temos pessoas em dezenas de relações (superficiais) sem a consideração que o amor e a afeição exigem tempo e cuidado, e que o nosso coração pode ser uma imensidão, mas o nosso tempo não (não sei o que é o amor, mas sei o que para mim não é amor); temos pessoas a usarem a questão das relações como se de uma religião se tratasse, como se de um produto se tratasse, capitalizando dela, virando gurus de tudo e mais alguma coisas e manipulando almas confusas que abismos cruzam... enfim, resumo, por não poder elencar tudo, pode te parecer absurdo, repito, mas não é sobre a prática em si, mas sobre quem a pratica. E ser poliamorista não é ser anticapitalista, é só ser poliamorista.

Usar o poliamor como uma bandeira política é parte da vida, quando uma escolha consentida e objetiva. Mas quando o poliamorismo se revolve num ativismo extremo, que quer roubar os remos e que vemos a chamar a todos os monogâmicos de cegos, de imbecis e de carneirada afogada na traição e na ilusão, que não faz mais senão traição (como se a limitação da traição seja sexual ou como se a traição seja um exclusivo do monoamorismo), aí fica difícil acreditar que o teu poliamorismo não seja só clubismo. Até entendo que recém-convertidos ao poliamorismo sejam irritantes, porque como parece que descobriram uma novas verdades,  mas antes distantes, 
sentem-se arrogantes e tornam-se mais chatos que um recém-vegano ou um recém-ateu iniciado. Mas mais chato mesmo é um récem-ateu e recém-vegano recém-convertido ao poliamorismo. Por isso, há quem te supere, caro amigo.

Caro amigo poliamorista, o consentimento, esse vem em diferentes pacotes, com diversas texturas e diversos sabores e diversos toques e diversos odores, e, olha lá, embora se creia universal, a ética, se calhar, depende de contextos. Mas o que é certo certo certo certo mesmo é que o poliamor tem tanto peso e tanto problema quanto o monoamor, não fosse o poliamor uma prática desenvolvida por seres não perfeitos e tão insatisfeitos e inquietos como os humanos. Por isso, meu caro, às vezes, o mais claro é relaxarmos apenas, aliviar as penas, abrir as pernas (ou outras cenas) e vivermos a nossa verdade, protegendo-a, é claro, de ataques bárbaros, mas sem andarmos despertos e soberbos a emular os atacantes num jogo fedorento e, com asco, nos colocando no lugar do carrasco. 

A não-monogamia não é por si só ética. Ponto.




14 de janeiro de 2022

CARO AMIGO BRANCO (DA REVERSÃO)

Caro amigo branco, posso parecer chato, mas não penses, no entanto, que sou apenas um gajo irritado e frustrado a descarregar o seu desagrado em ti, escrevendo, assim tanto, caro branco, porquanto os textos que endereço aos amigos pretos costumam ser mais extensos.. (a comparação com o preto é só para te deixar mais brando)... Dito isso, prossigo.
Caro amigo branco, para ser franco, sim, sinto-me frustrado, frustrado por não conseguir ter um intercâmbio calmo contigo quando o assunto é racismo. Mal pronuncio o termo, parece que te desperto medos, ou mexo no teu credo, pois quase recebo um decreto de degredo, pois acendo em ti um fogo com que te coloco logo em modo de guerra, com paus e pedras, a sentires-te atacado e pronto para dar o pago por te ter incomodado. Quando falo de racismo, dizes que faço extremismo e dizes que a minha conversa é uma pista de que os pretos são ainda mais racistas.
Dizes que os pretos são mais racistas, e... bem, nisso até concordo contigo, alguns são, pelo visto, mas por motivo distinto, pois está mais que visto que o preto é o objeto do racismo, e que o racismo diminui o preto no seu humanismo e o transforma num bicho ou num lixo perante a superioridade branca. A bronca é que há tanta, mas tanta gente preta que aceita essa ideia da chamada superioridade branca, e por via disso reproduz o racismo e trata outros pretos com desdém, reproduzindo o que convém para manter a superioridade do branco. Nesse caso, claro, o preto é mais racista, e mais do que isso, é burro, porque alimenta uma cena que só o prejudica. Pior racista é o auto-racista. Nisso concordo contigo, repito. Mas, caro amigo, quando vens com o termo racismo-reverso, penso aqui dentro que não estás a ser honesto, nem comigo, nem contigo...
Vá lá, calma, eu explico.
Caro amigo branco, é mais do que claro que o racismo é branco. É tão branco, tão branco, tão branco que quando és discriminado por um preto, nem o chamas de racismo, mas de racismo-reverso. Será que consideras que a discriminação preta não tem o pedigree necessário para ser racismo, mas é apenas um tipo ou uma amostra ou uma tentativa de emular a coisa? Às vezes até admiro que não o chames de afro-racismo ou etno-racismo, como fazes com tudo o resto que não está no centro do teu ocidentalismo, como por exemplo, músicas étnicas, vestimentas étnicas, etno-filosofia, afro-literatura, etno-matemática, entre outros exemplos. Sei que pareço repetitivo com isto, mas infelizmente tenho de repeti-lo tantas vezes para que o seu sentido te fique no ouvido.
Caro amigo branco, nota, por favor, nota que consideras o branco como a cor padrão, razão por que com vazão chamas a todas as outras pessoas de pessoas de cor, porque o branco não tem cor, naaaaá, não tem, não. Mas se passares pano nos teus autos, verás, no entanto, que branco é uma autodenominação. Os pretos chamam-vos de brancos, porque vocês se chamaram a si mesmos de brancos. Os pretos, podes estar certo, conhecem a cor-branca, meu caro amigo cara-pálida (como vos chamaram os "vermelhos"), e a cor branca não é nada parecida com a vossa cor-de-rosa. Se fossem os pretos a denominar-vos, e se calhar até denominaram mas vocês rejeitaram, talvez vos chamassem de "couro-de-porco" ou de "ânus-de-porco", devido a similaridade cromática... Naaaaaaaaaá, não é minha prática, longe de mim querer insultar-te, caro amigo branco (tsc, tsc, estou a piscar o olho esquerdo, meu caro).
Vocês criaram a cor para os outros, porque o branco é aquele que é por si mesmo, feito a imagem de deus, não é como o preto que, segundo a tua bíblia, é o filho amaldiçoado por Noé para ser escravo dos irmãos brancos justos e puros, essa bíblia que empunharam, junto com outras armas, e com a qual amansaram até ao sopé da sua alma os desesperados pretos, e essa bíblia que nós empunhamos agora em auto-flagelo... Está bem, aceito, não acreditas em Deus, és ateu, mas não te esqueças da ciência da raça que criaste para a desgraça dos outros... Não foste tu? Como não? Se dizes que levaram a língua e civilização a povos pretos, se dizes que fizeram os descobrimentos, se dizes que fizeram tudo isso, por que queres retirar-te agora do plano do racismo?
Caro amigo branco, quando as pessoas falam do racismo, falam de um sistema ridículo construído por uns brancos ricos no alto do seu imperialismo e que tem diminuído vários indivíduos, arrastando-os para um abismo de auto-depreciação. O racismo é uma ação baseada no poder e na dominação, o racismo aliou-se ao capitalismo, o racismo é parte de um sistema económico, político e social de controlo das mentes, que atira gentes contra gentes, convencendo gentes de que são mais gentes do que outras gentes.
Não há lugar para racismo-reverso quando o balanço do poder continua o mesmo. Além do mais, o racismo é racismo, no seu verso, no inverso e no reverso. Atitudes discriminatórias baseadas na pele, é, sim, racismo, vindo da parte de quem venha. Sim, os pretos podem ser racistas e os pretos também são racistas. Mas quando um preto te discrimina, ele está em defensiva, usando a ofensiva que os brancos criaram. Mas quando um preto te discrimina, o que é que te acontece? Nada! Sentes-te discriminado e ferido e injustiçado e dás ali por isso tudo por terminado, pois não te sentes nem perdido, nem desnorteado, porque tens um mundo para te apoiar e ainda te elogiar pelo teu aproximar, e ele ainda até é visto como o bicho ingrato que mordeu a mão que lhe deu um prato; porém quando tu discriminas um preto, não é só esse teu gesto sem afeto que o afeta, mas tens de ter tento que tens do teu lado todo um sistema perverso e um universo de dejetos construído em séculos de sofrimento de povos opressos que esmagam o desgraçado.
Entendeste por que não faz sentido o teu hino de racismo-reverso? Não? Então, pensa num gigante com luvas de aço a boxear contra um magricelas sem um braço e com os olhos vendados e com o árbitro do outro lado, e ainda o gigante a dizer todo exaltado que é um confronto equilibrado porque é entre dois humanos. Não é justo, pois não? De facto! E neste cenário perturbante és tu o gigante.
Volto a dizer a mesma coisa que antes, os pretos também são racistas. Vai à Guiné, caro amigo branco, e vais notar que vais ser tratado melhor que os outros fulanos, só pelo simples fato de seres branco, porque o tom da tua pele está associado a mais dinheiro e a mais poder e a mais influência, portanto é bom que caias nos nossos encantos para que nos beneficie de algum modo. E relacionamos tanto o branco ao dinheiro que chamamos de branco a um preto vindo da Europa com aparente matéria na carteira. Caro amigo branco, há pretos a serem racistas com pretos em favor do branco, porque fomos assim ensinados desde que fomos colonizados, e quando falamos que escapamos desse antro, notamos que evacuamos para um campo minado, a reproduzir a todo o pano atos que só nos causam dano ("no sai na pilon, no kai na balei"). E tu ainda vens com esse papo de racismo-reverso?
Vai à África e verás tantos tontos a tintar a pele, a tragar tolices e a estragar a pele, tentando ser mais "brancos" para corresponderem a uma ideia de superioridade idiota. Vai à África e verás um culto aos mulatos e um ódio aos mulatos porque são mais brancos que pretos, mas não são brancos o suficiente para serem tratados com cuidado e portanto são os melhores alvos de ódio deslocado. Vai à Guiné e verás mulatos (vermelhos) a discriminarem pretos, a tratarem-nos como insectos, porque se acham "mais" superiores e mais corretos, porque se veem como intersectos do mundo branco. E ainda falas de racismo-reverso? Pelamordideus, caro amigo branco, tira o crânio do próprio rabo e analisa os dados que te são dados. Porque praticado pelo branco, praticado pelo preto, quem é beneficiado pelo ato és tu, ó caro branco.
Quando se fala de anti-racismo, não se está a falar de te quebrar, está-se a falar de quebrar um sistema, um sistema que não te afeta por não teres a cor preta. Quando se está a falar do anti-racismo e se está a falar de destruir os teus privilégios, não é racismo-reverso, é simplesmente porque os privilégios, os sociais, pelo menos, significam para outros ausência de direitos.

Dois pesos... Dois medos... Dois dedos de testa e atesta-te com pensamentos isentos do teu privilégio e verás como é perverso o teu credo de racismo-reverso. Podes ser vítima da "branquitude", podes ser vítima do capitalismo, mas não és vítima do racismo.
Resumindo, quando um preto te discrimina na base da tua cor, o ato é racista, sim, e aquela tua dor é aflitiva, sim. Mas não te atrevas a comparar um ato (o seres discriminado uma vez por ano, por uns dois bacanos zangados, num canto qualquer do Bairro Alto) com um sistema (o seres discriminado todos os dias do ano por todo um estado e por uma horda de asnos que nem sabem que o fazem e que o negam em grandes espasmos de virtuosidade, batendo no peito, torcendo os ventres e rasgando as vestes), um sistema que faz ainda seres discriminado pelos teus próprios manos apanhados naquele buraco no racismo criado. Não te atrevas, caro amigo branco, não te atrevas porque estarias a mijar no rio Sado com o plano de deixá-lo salgado.

20 de dezembro de 2021

MANIFESTO DEPRIMENTE DO MOVIMENTO DEPRESSIVO

Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos do mundo inteiro, unamo-nos.
Juntos somos mais fortes e conquistaremos este monte de merda desta sociedade mercantil.
Unamo-nos contra os médicos e contra os psiquiatras e contra as farmacêuticas e, principalmente, contra os gurus e os vigaristas de auto-ajuda que se escondem atrás da capa da depressofobia só para nos entupir de pílulas e conceitos pífios de felicidade, yogados e ahuyascados.
Quem precisa de felicidade? Pfffft!
Sem chacota, mas felicidade no fim das contas é coisa para fracotes. Nós somos fortes, com força à fartote, por isso o nosso mote é navegar neste bote, culpando ou não a sorte.
Navegamos pela vida deprimidos, de peito enchido porque temos costas largas, temos costas fortes e aguentamos a pressão, por isso estamos deprimidos, mas não explodidos. Gente sem vértebra não se deprime, gente sem vértebra se comprime, pois vive no medo e besta, tira os dedos da testa e se suprime perante as regras patetas que a oprime. Mas nós, naaaaaaão, nós ficamos deprimidos, porque tentamos dar sentido a este mundo regido por regras ridículas.
Não dá para ser feliz sem ser egoísta, numa falsa conquista dos prazeres da vida; não dá pra ser feliz sem se ser hedonista e sugar a vida sem amanhã à vista e fazer vista grossa a toda a fossa à nossa volta, e praticar o culto antigo de venerar o próprio umbigo.

Felicidade, pfffft, isso é coisa pra fracotes, nós, deprimidos, nós somos fortes.
Estão a tentar enganar-nos, estão a tentar afundar-nos numa miséria séria e fétida para passarmos por essa vida etérea a sentirmos pena da nossa própria cena, mas é bem claro neste cenário quem é que envenena a quem.
Pensem bem, essa coisa de pensamento positivo, pfffft, é coisa de mente pequena. É claro que estar triste o tempo todo é de um modo um problema, mas estar a sorrir o tempo todo é de todo um problema.

Tanto o riso como o choro lavam a alma, portanto neguemos essa barca onde gente se enfarta nos remos a todos os termos a tentar rejeitar os sentimentos que temos e a chamá-los de prejudiciais.
Há quem ria mais, há quem chore mais, há quem seja capaz de transformar um sentimento num outro de outro tento, há quem veja tristeza na alegria, há quem veja alegria na tristeza, há quem suje a pureza, há quem se refastele com sageza no sujo.
Ninguém está feliz, andam todos por aí a empinar o nariz numa atitude que diz que são os maiorais no sorrir, mas, é, camaradas, tudo a fingir. Tudo a fingir.
Nós, nós temos o dever de manifestar a propriedade da nossa depressão, e com isso acordar o resto da população estrangulada, a quem é empurrada a obrigação de ser feliz.
Pensamentos positivos a tempo inteiro é doentio. A tristeza faz parte da vida, faz parte do balanço, todas as emoções fazem parte da vida. Não devemos é deixar uma dominar as restantes, mas agora quando todos nos dizem que somos errados porque estamos com depressão, porra, isso é opressão.
Deprimidos de todos o mundo, unamo-nos, porque só um idiota, sem capacidade de reflexão e de análise, passa por esta vida, neste mundo demente de fundo deprimente, sem se sentir deprimido.
Quando nos sentirmos sufocados e sem saída, só temos que ver que nesta vida há tanta e muita gente como nós e em cuja voz questões como as nossas são refletidas. Muita coisa assim muda, pois se a nossa alma estiver muda, só temos de pedir ajuda, pois há muitos deprimidos à escuta. Mas livros de auto-ajuda... não, nada, só ajudam a quem os escreve, o teu bolso fica leve, mas a tua alma ainda ferve. Eles só estão interessados em explorar a tua fragilidade, não te querem e nem podem ajudar de verdade, pois, senão, com tantos livros de auto-ajuda, teríamos menos gente deprimida e mais gente autoconsciente, menos gente iludida e menos gente a dizer lérias para ganhar dinheiro com a nossa miséria.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.


16 de dezembro de 2021

DIÁRIO DE UM ETNÓLOGO GUINEENSE NA EUROPA (dia 8 )

 15 de dezembro – dia do pretuguês


Ai, minha mãe de mim que me pariu! A Tugalândia é complicada. Por mais que tente não consigo acompanhar as coisas, é tudo tão rápido e tão sacalatado. Antes de acabar de pensar numa coisa para a entender, já está a acontecer outra.

Tivemos uma coisa aqui chamada Web Summit Con, uma mistura de Sumo e Kumite, onde pessoas pagam muito dinheiro para entrar num ringue ou fazer apostas para conseguir o número de telefone de algum alguém endinheirado. A Camarada Municipal de Lisboa diz que é para ajudar os pobres, só que “con”, na língua dos tugas ingleses, que são os donos desta Web Summit Con significa trapacear e intrujar pessoas. Eu pensava que tinha a ver com homem-aranha, mas afinal, nada disso. Mas vou… hei de pensar sobre isso com mais calma… algum dia… eventualmente.

Bem, antes de mais (ou ‘depois’ de mais, considerando que já escrevi dois parágrafos), nos últimos tempos não escrevi nada e desta vez é por preguiça mesmo… Quer dizer, não é preguiça preguiça propriamente, mas vontade de inação. Acordar de madrugada para voltar à casa à noite não deixa tempo para pensamentos e reflexões, principalmente quando tudo parece acontecer tão rápido, a cabeça fica tão cansada que só se quer ver um filme de Vandam e dormir. Por isso digo que não é preguiça, porque preguiça é um luxo hoje que na Tugalândia é destinado só a alguns. O tio Paulo Bano sempre me disse que a preguiça é uma escolha, mas eu não o entendia. Mas não é só a preguiça que é destinado a alguns, tem outras coisas também.

Muitas coisas têm acontecido por cá que eu deixo passar, não por serem pouco relevantes, mas porque são bastante recorrentes que muitos até pensam que fazem parte da normalidade. Não estou a falar da PSP, nem dos banqueiros tugas que roubam milhões e lesadores tugas que fogem da justiça, e são bem guardados na sua casa, com segurança à porta, enquanto miúdos que roubam telemóveis aparecem mortos na prisão, aparentemente pelos próprios guardas, menos ainda do gajo multado porque filmou um polícia a abusar da sua autoridade sobre pretos. Estou a falar da tugaliose… aquela doença que imbeciliza nacionalistas.

O orgulho tuga é manifestado em quatro elementos: os descobrimentos, o Santo António Salazar, o 25 de Abril e o Cristão Ronaldo e todos eles parecem contraditórios, e todos eles têm estátuas…

… Quê!!!!!? Salazar não tem? Então e aquela da Santa Comba Dão? E aquela dos Descobrimentos, que é tão venerada hoje, não é obra do Santo Salazar? O tio Paulo Bano disse que os tugas quando querem ser conhecidos constroem coisas gigantescas e dizem que é para o povo, mas aquilo fica com o nome deles, por isso andam sempre a inaugurar coisas e a cortar fitas. Parece que ninguém entende que o Santo Salazar não precisa ter a sua cara escarrapachada num jardim qualquer para ser imortalizado? O maior tuga de sempre precisa lá de estátuas quando toda a Tugalândia e os Pão-de-Ló são sua criação… (Errata: não é Pão-de-ló, mas PALOP, só que a maneira como são comidos pela Tugalândia faz deles mesmo pão-de-ló.) A questão das estátuas tem sido uma guerra nos últimos tempos.

Há dias um tal Mário Lúcido Sousa escreveu que Lisboa não era africana o suficiente e que o Marquês de Pombal não sabe falar caboverdiano e só ficava ali na praça, no Tarrafal, sem fazer nada, enquanto miúdos pulavam sobre a sua cabeça, e falou mal das estátuas. Alguns tugas leram e não gostaram e um deles que sofre de tugaliose crónica, um tal Miguel Ventura... não, Miguel Sousa Dav'ares (acho que já não dá mais ares... sabem é aquele gajo que chamou o ex-presidente tuga, o Babaco, de palhaço), sentiu-se ofendido e, num furor agalmatófilo, todo cavaleiro em defesa da honra das estátuas, escreveu uma rabulice contra esse Mário Lúcido de Sousa, onde vomitou tanta besteira e tanto racismo encardido de meter orgulho ao André Tontura.

Eu primeiro pensei, ahhhhh, são todos primos, Mário Sousa, Miguel Sousa, Marmelo Rebelde de Sousa… entre primo e primo não se mete a… o... (como é que rimo?)… eles que são primos que se entendam. Mas depois não entendi nada do que o Miguel Dav’ares dizia, porque… Então Miguel, decida-se, omé. Portugal é colonialista ou não é? Percebo que se deve ter baldado a algumas aulas de história (na verdade, mesmo que tivesse ido às aulas, não lhe iriam ensinar isso), mas os portugueses não morreram em Cabo Verde a lutar contra o fascismo e o colonialismo, ná, ná, menino, eles levaram-nos lá. Os portugueses não morreram em nenhuma das áfricas a lutar contra o fascismo e o colonialismo, eles iam para lá matar uns pretos para evitarem ser presos aqui. Entende, Miguel, entende? Que o menino se tenha baldado às aulas de história até que se compreende, além do mais deixou o liceu há já não sei quantas décadas e na altura era fascismo declarado, por isso, compreende-se que a sua memória possa estar obnubilada, mas, Miguel, como um comentador de atualidades, dizer que Lisboa tem um monumento em homenagem às vitimas da escravatura portuguesa não é estar desinformado? Qual monumento? O Colombo? Olha, os miúdos pretos gostam do Colombo, mas não acho que eles pensam que é um monumento, talvez seja porque foram os seus pais e irmãos que bumbaram duro para o ereger e são as suas mães e irmãs que o mantêm limpo, logo sentem-se no direito de apropriar.

O Miguel Sousa ainda diz que o Lúcido Sousa não sabe usar o pretuguês, a “extraordinária língua que lhe deixámos em herança” (palavras do primeiro), e depois o mesmo diz “não há chicotes nem correntes em minha casa e não oiço uivos de dor vindos da sanzala dos meus escravos”. O Miguel não se decide, quer estar com o pé nos dois lados: faz parte dos que deixaram a língua como herança, mas não tem escravos. Sou dos colonialistas… Mas não sou… Estou lá… Não estou… Estou lá… Não estou… Miguel olha para esquerda e pisca-pisca, Miguel olha para a direita e pisca-pisca.

E o Miguel ainda acha que o português da Tugalândia é que é o tal, quando por todo o mundo há mais gente a falar o pretuguês. Miguel, toda a língua tem as suas variantes e todas as variantes são válidas, mas se quisermos ser democráticos, vamos fazer aritmética básica. Há 10 milhões na Tugalândia a falar português, e desses há um grande número vindo dos Pão-de-Ló e muitos pretos nascidos cá; nos Pão-de-Ló há cerca de 50 milhões (na verdade, boa parte desses não fala a língua), no Brazil são mais de 250 milhões. Por isso, hoje, pela graça que me foi concedida como herdeiro da língua, tal e qual foi concedido ao Miguel, eu, de acordo com a proposta do Apolo do Caralho e do Marinho que Pina, rebatizo a língua como PRETUGUÊS. Podia ser brasileiro, mas considerando que maioria dos brasileiros é preta, então PRETUGUÊS faz mais sentido. E para dar mais solenidade, o dia 15 DE DEZEMBRO passa oficialmente a ser o DIA DO PRETUGUÊS, o que se justifica pelo seguinte:

Quando o Mário Lúcido escreveu que Lisboa não era africana o suficiente, a Camarada Municipal de Lisboa disse: “Não, credo! Nós não somos racistas! Com que então já vos prometemos uma estátua em memória das vossas vítimas e ainda andam com essa boca por aí?”

O que a Camarada Muncipal de Lisboa parece não ter percebido é que um agressor fazer um monumento em memória da vítima é como um gajo entrar na casa de alguém violar a filha desse alguém e depois fazer um monumento à violação no seu próprio quintal e dizer ao pai que é para apaziguar (onde anda a filha no meio disso?). Contudo, acho que não é só a Camarada que não percebe isso, mas muitos dos pretugueses também…

Continuando, a Camarada Municipal, para mostrar como Lisboa é bem africana, resolve fazer no dia 13 de dezembro uma festa para premiar os 100 pretos mais cool da PRETUGALÂNDIA, os pretos com mais seguidores no facegram, os mais influentes … Ahhhhh…
Pera, pera, disseram-me que a iniciativa não foi da Camarada Municipal mas de uns pretos que andam a brincar a individualismo em nome de uma causa que se pretende comunitária e em nome de todo um grupo mal representado. É tudo um processo de reparação, dizem. Maaaaaas… reparação faz-se a nível individual?

Gostaria que a minha mãe tivesse sido nomeada como a empregada de limpeza mais influente de Lisboa, mas penso que essa classe não se considera. Pois, parece que as pessoas que não podem se dar ao luxo de preguiça não são chamadas para este tipo de evento. Afinal andam apenas naquela velha cerimónia de cultuar o próprio umbigo. O Web Summit Con pretuguês. O capitalismo a colonizar as mentes e as vontades.

Por isso acho a Tugalândia complicada, o tuga olha muito para o seu próprio umbigo, não importa a sua cor da pele, defende sempre a tugalidade.

E falando nisso da defesa da tugalidade do tuguismo, há outra batalha para além da dos Sousas, é entre uma tal Grada Kizomba e um tal Nuno Crepes, que é sobre quem é o tuga mais apto para representar a Tugalândia num bi-anal qualquer em Veneza. A Kizomba disse que a melhor maneira de mostrar a Tugalândia é mostrar como é racista, o Crepes disse que a proposta da Kizomba não mostra suficientemente o quão a Tugalândia é racista, e então a Kizomba disse que o Crepes é racista e exige reparação. Maaaaaaaaas… reparação faz-se a nível individual?

De qualquer forma, o que é para reter aqui é que a língua agora é chamada de PRETUGUÊS, e o dia 15 DE DEZEMBRO é o dia. Sabem, é para termos mais feriados: 1 de dezembro, feriado. 8 de dezembro, feriado. 15 de dezembro, toooooma! É o culminar e o balanço da festa dos melhores pretugueses da pretugalândia e para manter o ritmo de sete dias. E uma pena que não dá para antecipar o natal para 22, seria bem cool.

Santo Salazar, ó meu maroto, o teu lusotropicalismo está a bater bué.

A Tugalândia é tão complicada que não consigo pensar bem, são tugas brancos a serem racistas, são tugas pretos a serem classicistas, são tugas assim-assim a serem assado-assado, e eu aqui apanhado em pensamentos confusos e contraditórios, querendo deixar esta tarefa inglória de estudar os tugas e voltar para Guiné, mas a Guiné estar numa situação ainda mais merdosa.

PS: Como não quero cometer um suicídio social, por isso fiz essa conclusão com a Guiné-Bissau, a ver se o pessoal se distrai de tudo o que disse mais acima.

9 de dezembro de 2021

CATORZINHAS... UM PROBLEMA DE HOMENS ADULTOS (cronices crónicas)

Há uns anos escrevi sobre Clara de Sabura (http://montedepalavras.blogspot.com/.../a-guine-bissau...), um filme que abordou ligeiramente mais ou menos e involuntariamente a questão das "catorzinhas", mas de uma forma terrível, colocando-as, através da protagonista, no lugar de perpetradoras, em vez de vítimas. E depois, quando escrevi o artigo "ajoelhou vai ter que rezar" (http://montedepalavras.blogspot.com/.../ajoelhou-vai-ter...), prometi que iria discorrer sobre o tema "catorzinhas", mas fui deixando passar até agora. Só me referi a isso porque os dois textos vão ajudar-me a construir o análise. Bora!
Catorzinhas, segundo o vocabulário popular, são miúdas de catorze anos (e menos) que se envolvem em relações sexuais com homens adultos. Consideradas miúdas terríveis, destruidoras de casamento, putas, entre outras caracterizações mais simpáticas. São as "meninas que estão a estragar a nossa sociedade", na fala de alguém.
O fenómeno não é só guineense. Depois da guerra civil em Bissau, muitas pessoas refugiaram-se em Cabo Verde e quando voltaram trouxeram a expressão "pikena", para se referirem às namoradas (na Guiné dizíamos e ainda dizemos "mininu" e é só aplicado às raparigas com quem se tem relacionamento sexual, não propriamente ou necessariamente como namorada). Pensando sobre a provável origem dos termos não me pareciam algo nascido entre os jovens, porque pessoas da mesma idade não chamariam meninos uns aos outros (lembro-me que uma vez uma “menininha” foi fazer queixa do meu irmão à minha mãe e referiu-se a ele como "aquele rapaz" - ele tinha 5 anos - rimo-nos do tratamento, porque rapaz seria eu que tinha 12, embora eu fosse também menino para a minha mãe). O termo "pikena" e "mininu", terão certamente sido originado de adultos que se relacionam com miúdas novas, diria mesmo, menores de idade, "mininus" (no Braziu é novinha).
Na questão das catorzinhas, na Guiné, quem é vista de revés e como problemática são as próprias meninas que se relacionam com homens que deviam ser considerados pedófilos. A exploração delas é celebrada pelos homens adultos e, atrevo-me mesmo a dizer, pela sociedade guineense que não vê mal nisso, pelo menos da parte do homem.
Tabanka Djass, nos anos 90, cantou uma música, SUB-17, onde o protagonista diz que dormiu com uma menina que no fim lhe diz "amor, só tenho 15 anos", falava de meninas abaixo dos dezassete anos, menores. Okay! Vamos dizer que ele não sabia até a revelação final, mas ainda no mesmo álbum tinha a música "RUSGA DI 7 I MEIA", com história do "Ntoni Mansebu" que "paka mininus na skola, leba kubiku" (engata miúdas na escola e leva para o quarto). Aquilo era e é a normalidade de Bissau, ninguém estranha ouvir isso numa música, a própria música não foi feita para questionar a prática, apenas para contar a história de um "maaaaaaacho".
Ramiro Naka, mais recentemente canta "NDURO TENE PO GROS" (o Nduro tem o pau grosso), na qual diz" atenson katorzinhas" (e quinzenhas e dezasseiszinhas e dezassetezinhas... nunca chegou às 18zinhas, serão velhas demais?). Tudo em modo de celebração (bem, a Guiné é um local onde até músicas de exéquias são feitas em modo celebrativo, olhem a tina por exemplo). De qualquer maneira esses artistas não problematizam, mas normalizam a pedofilia (aceite socialmente) em torno das catorzinhas.

Chachá di Charmi também tem a sua música sobre ir buscar uma catorzinha para festa, "katorzinha djanti de, abo k Cha na pera" (Catorzinha vem depressa, és tu que o Cha deseja), é para festeja porque não igual a catorzinha. Se os outros não são tão muito explícitos, a música de Chachá é declaradamente um hino pedófilo.
Como disse antes, as catorzinhas são as más da fita, são elas que "vestem tchunas para atrair homens mais velhos e nossos maridos e não querem andar com os seus colegas, porque esses não têm dinheiro para lhes dar".
Mário de Max Poss na música, "RELATÓRIO", diz "katorzinhas ta durmi ku kolegas di se pape" (as catorzinhas dormem com pessoas da idade dos seus pais). É verdade, também. Mas o problemático mesmo nessa relação são os pais que dormem com colegas das suas filhas, menores.

Há muitas músicas a falar mal das catorzinhas, muitas mesmas e ainda não ouvi (pode existir, eu é que não sei, porque nunca ouvi)... ainda não ouvi uma única a colocar-se do lado das catorzinhas e a culpar ou responsabilizar os adultos que fomentam essa prática.
O filme CLARA DE SABURA fala de uma menina que se safa na vida a dormir com pessoas. Pessoalmente, nada contra, cada um usa as habilidades que dispõe para sobreviver e estar confortável, o problema é quando retiram a alguém todas as possibilidades e só lhe resta essa. Mas o maior problema, no filme, é que Clara estava na ciclo preparatório e dormia com o professor (subentenda-se professores) para passar e depois com um ministro(?). É a realidade. Todavia, o filme sobre isso não disse nada e em vez de questionar essas figuras de poder que se aproveitavam dela, batia o tempo inteiro na Clara, deixando-a basicamente na posição daquela que corrompia os pobres homens.
Parece que não se quer ver que o problema das catorzinhas é de facto uma questão de homens adultos.
Há duas situações que concorre(ra)m para normalizar o fenómeno catorzinha na Guiné: i) a dita tradição, e ii) a pobreza.
Há duas situações que concorre(ra)m para normalizar o fenómeno catorzinha na Guiné: i) a dita tradição, e ii) a pobreza.
Sobre a primeira: Guiné-Bissau, tal como o resto do mundo, é machista e patriarcal e, como praticamente todos os países africanos que conheço, poligínica (não sou contra este último modelo, desde que as partes estejam de acordo e não por causa de uma tradição machista patriarcal e desde que a poliandria seja permitida).
Todavia, enquanto que em algumas partes do mundo, apesar de muito precariamente, as meninas são "protegidas" de abusos pela lei, essa estrutura é praticamente inexistente na Guiné. Ainda hoje há casamentos forçados, meninas, meninas mesmo, menores de idade, são obrigadas a casar com homens maduros (alguns, velhos a cair de encurbadeça), e se isso é uma prática dita não-assim-tão-normal hoje, na geração do meu pai era bastante normalizada, e eles ainda controlam as coisas, e nós aprendemos com eles e reproduzimos.
Estamos habituados a que um homem tenha muitas esposas, habituados a marcar casamentos quando se descobre que a pessoa nasceu com uma vagina (e ainda nem sequer lhe demos um nome), às vezes, o casamento é marcado com homens já com outras esposas e com netas mais velhas que a recém-nascida. Habituados a que o homem possua mulheres (em todas acepções da palavra), que quando vemos um homem a desfilar com catorzinhas, assumimos simplesmente que ele está no seu direito e que ela é que é puta.
Segunda situação: pobreza.
Numa conversa, com um alguém (ele sabe quem é), ele estava a acusar as catorzinhas de vida fácil e de falta de perspectiva (nisso concordo, e já explico), e que os homens não têm culpa porque muitas vezes são seduzidos por causa do que podem oferecer, e quando lhe perguntei se não tinha medo que a sua filha, menor, fosse seduzido por um desses gajos e o que diria, se acontecesse, ele sentiu-se ofendido e respondeu: "não, não estou, pois não há sequer essa possibilidade! eu eduquei muito bem os meus filhos e nunca lhes faltou nada, dei-lhes sempre tudo, não são ilusionados". A conversa todavia não desenvolveu porque outra pessoa chegou. Depois tive um quase eureka: "os homens aproveitam-se das catorzinhas porque sabem que elas não têm tudo, então seduzem-nas com bens materiais" É da carência. Sabemos que a carência fragiliza as afirmações e facilita o exercício de poder, por isso alimentamos a prática e mantemos o ciclo.
A Guiné é um país de machos, uma sociedade onde um homem ameaça outro homem dizendo-lhe "n na bidantau mindjer!" (vou tornar-te numa mulher!), para mostrar a sua força . Duas ideatices se refletem nesta frase: i) que um homem é superior à mulher, por isso é humilhante um homem ser reduzido a essa posição. ii) tornar alguém mulher faz-se com o pénis... bater na pessoa não bastará, será preciso violá-la? (eu vejo nisto, na verdade, um incofesso desejo homo-erótico, também nada contra, desde que não seja por violência).
O que tem essa descrição atrás a ver com a pobreza? Se calhar nada e eu só quis falar dela. Todavia, o cerne é que o macho tem que mostrar poder, não podes ter força se não tiveres muitas mulheres e nas nossas sociedades mais terra-a-terra, quanto mais ricos os homens, mais mulheres "possuem". O que se verifica no facto de mal um homem ascender a uma posição social mais endinheirável, começa a colecionar "casas dois" por tudo o que é canto.
O poder, em todas as suas formas, ainda está concentrado na mão dos homens, e um bom homem, na nossa concepção, é aquele capaz de pôr almoço e jantar em cima da mesa. Agora imagina que esse homem põe isso e ainda põe teto sobre a cabeça, roupa sobre o corpo, saldo no telemóvel, luz em casa, água canalizada no quintal, saldo no telemóvel, carro na garagem, dinheiro no bolso, saldo no telemóvel, entre outras coisas, torna-se em não um bom homem, mas num espetacular homem.
As mulheres são treinadas desde criança a fisgar um bom homem e a estar numa boa porta de casamento, porque oportunidades para as mulheres sempre foram poucas, portanto elas têm de trabalhar muito para não serem trocadas e serem Apilis (https://www.youtube.com/watch?v=-tqtYw-dKts), o que significa aceitar a submissão. Estando os homens a ocupar as posições de poder, dormir com um bem posicionado é a forma mais rápida para encontrar trabalho ou um bom cargo, conforme a ambição, é certo, desde trabalhar na presidência da república, a conseguir uma bolsa de estudos, umas notas favoráveis, a lavar a roupa de um zé-ninguém qualquer capaz de pagar o suficiente para pôr mafé em arroz branco. O corpo passa a ser uma moeda de troca. Então com tudo nas mãos dos homens, o que resta às mulheres? O que restas às catorzinhas?
A adolescência é a idade onde somos mais impressionáveis. Quem de nós já não esteve apaixonado por uma figura de autoridade que levante um braço. Eu pessoalmente, houve um ano em que só apanhava 20 em biologia porque estava apaixonado pela professora. E experiências dessas repetiram-se várias vezes. No caso das meninas, professores homens aproveitam-se disso para abusarem das suas alunas.
Adolescentes apaixonam-se por pessoas mais velhas, adolescentes são impressionáveis, e num contexto onde uma menina vê muitas à sua volta com um simples relógio que ela não pode obter, pensem no quão fácil é ela ser seduzida por um telemóvel. Elas estão na idade de experimentação e de desafiar o mundo, muitas vezes acham que é uma afirmação da sua identidade e da sua autonomia dormir com um adulto. Portanto, cabe sempre ao adulto o trabalho de não corromper e de não facilitar.
Há situações em que é a catorzinha que põe o pão na mesa, porque dorme com este ministro ou com aquele comerciante lá do bairro, ou porque vai para os hotéis com homens da idade do pai (e os hotéis não querem saber da sua idade). A primeira vez que entrei num hotel de 5 estrelas, fartei-me de mandar fotos às pessoas, agora imaginem a impressão que isso não terá numa menina que nunca dormiu num molaflex antes.
Os pais fecham os olhos porque não há alternativa, o governo já não paga há 9 meses e estão a viver de mon-di-timba, o pai vive com vergonha, passa o tempo a cobar-mal à filha para levantar a cara à frente dos vizinhos, mas não deixa de exigir o peito de frango na sua tigela, embora desde há muito tempo que não dá o dinheiro de mafé e o pouco dinheiro que desenrasca é para a sua casa-dois ou para a catorzinha que ele por sua vez quer impressionar. A mãe também finge entre saber e não saber, mas lá aconselha quando estão sozinhas "faz um jeito para apanhares barriga, porque esse kriston-matchu tem dinheiro".
Não há emprego para jovens na Guiné, os gajos passam tempo nas bancadas, e elas, cuidadoras da casa e da família desde mais novas, arranjam alternativas para alimentar os irmãos, futuros maaaaaachos, sentados nas bancadas a falar mal das catorzinhas e a moldarem-se no machismo. Essa falta de oportunidades, essa falta de perspetiva é que pesa sobre as meninas e que lhes molda o caminho. Se mesmo mulheres formadas e super-inteligentes precisam de dormir com presidentes e presidentes de assembleias e ministros e deputados e diretores e ministros e professores e padres e ministros e cobradores de toca-toca e/ou qualquer um que tenha algum poder, e isso é tão normal, qual é a perspetiva para uma catorzinha?
Recentemente alguém me falou que houve em Bissau, numa discoteca (não vou dizer o nome, porque má publicidade é publicidade), um evento chamado de algo como "festa das catorzinhas arrombadas" (aposto que foi um gajo nos seus quarenta ou cinquenta a organizar aquilo), isto é o que eu disse atrás, uma celebração da pedofilia e da impunidade.
Queria ver os governantes a tomar uma posição sobre esta questão, mas sendo eles os maiores financiadores da prática, não tenho fé nisso. Portanto, temos de ser nós a tomar atitude, a discutir cada vez mais o assunto, a chamar pedófilo aos pedófilos e a largar o pé das catorzinhas. Não me venham pra cá com merdas de tradição.