25 de março de 2020

POLITÍCA, CORONAVÍRUS E OS SEIS-QUARTOS NA GUINÉ-BISSSAU

O nosso "presidente" (acho que a esta altura já o posso chamar presidente sem aspas), Umaro Sissocó Embaló, publicou no seu twitter, em francês, que já temos dois casos confirmados na Guiné-Bissau, e acho que não há acontecimento mais oportuno do que este para ele consolidar o poder.

Nos últimos dias, ninguém quis saber se a presidência ou o governo atual da Guiné-Bissau é ilegal ou não, todos estão preocupados é com salvar a sua própria pele e como sempre preferimos deixar à responsabilidade "coerciva" dos outros o que podíamos simplesmente fazer nós mesmos, pobres crianças, clamamos por um governo e pela autoridade e por mão forte, pedimos até por estado de emergência.

Depois desta crise, que ninguém sabe até quando vai durar, quero ver quem vai se atrever a chamar ao nosso presidente de ilegal, quando neste momento todos estão a jogar a responsabilidade nas suas mãos. Domingos Simão Pereira tinha vindo dizer que as medidas do governo do Sissocó não faziam sentido e que o "governo" de Aristides iria fazer medidas próprias, porque só ele sabe lidar com crises desconhecidas; Aristides a dizer para não mandarem "ajuda endinheirada" para o país, porque os gajos no poder agora iriam desviá-lo... pelamordideus, Aristides, devias deixar outros falarem isso.

Não sei o que se passa na Guiné-Bissau, não sei se há mesmo casos confirmados ou não (não me admiraria nada se mentissem nesse sentido), mas sei que existe um oportunismo político nesta crise do Corona que nenhum poder político, poder económico ou poder militar deixa passar em vão. E nós não somos menos maniqueístas.

À população, apelo, tenham todos os cuidados necessários, mas não se esqueçam a quantas "catástrofes locais" nós sobrevivemos e temos sobrevivido todos os dias, paludismo, cólera, influência, zyka, tripanossomíase, sida, e isto por causa da solidariedade social, porque sabemos todos como o nosso sistema de saúde de saúde só tem o nome e não dá respostas nenhumas a nada.

Se nesta crise nos esquecermos da solidariedade, aí, sim perderemos a "guinendadi" que temos andado a perder com as cíclicas crises políticas e com a divisão de "idolatria política" que se instalou no país.

Lembro-me de há umas duas semanas andarem aqui a partilhar um texto de Miguel de Barros, onde ele dizia que nós temos experiências em lidar com "catástrofes de contágio" (estou a parafrasear). É verdade, mas por que de repente mudamos completamente e esquecemos essa experiência acumulada e andamos todos à espera de indicações europeias para criarmos medidas de contenção? Sim, é verdade que é um vírus que não conhecemos muito bem, mas não deixa de ser um vírus. Mesmo aqui as informações oficiais têm mudado acerca do mesmo.

O "distanciamento social" pode funcionar na Europa, porque têm infraestruturas adequadas para manter as pessoas isoladas, porque têm dinheiro para isso (embora muitas famílias vão sair disto em prantos por falta de meios de subsistência), mas nós não temos essas possibilidades. Quantas pessoas podem fazer teletrabalho na Guiné-Bissau? Quantos serviços de entrega ao domicílio existem? Quantas famílias tem possibilidade de comprar e armazenar provisões em sua casa? O preço de tudo disparou, porque outra vez estamos a esquecer da solidariedade. Já tinha acontecido na Guerra 7 de Junho, os preços dos transportes quadruplicaram porque havia população aflita a necessitar sair de Bissau, mas essa gente que aumentou o preço continuou mais rico? Duvido imenso. Outros, jovens principalmente, em desespero (ou por desporto) começaram a assaltar pessoas e a formar quadrilhas, fenómenos que se têm intensificado cada vez mais. Acham que com o pânico que estão a criar, quando o desespero atingir as pessoas, vai ser diferente? Não é como se já não tivéssemos exemplos.

Apelo, não vamos esquecer que isto vai passar e nós vamos ficar, por isso, sejamos solidários.

Naquelas palavras de Miguel de Barros devíamos perceber que temos de criar as nossas orientações para enfrentar o problema de acordo com a nossa realidade e as nossas limitações. Vejo gente a tirar fotos em suas casas enormes e quintal grande, dentro dos seus carros ou dos seus gabinetes, a dizer que o governo deve impor "estado de emergência" e obrigar as pessoas a ficar em casa, que o governo deve cancelar os transportes públicos (isso é fácil dizer quando temos o nosso carro particular). Entretanto, há famílias que só têm uma refeição por dia, e a qualidade da mesma depende de quanto limões (por exemplo) conseguiram vender nesse mesmo dia na feira, têm de ir às oito de manhã ao mercado para poder comer às quatro da tarde. Que respostas estão a ser criadas para essas famílias?


SEIS-QUARTOS, UM PROBLEMA

É fácil de falar de isolamento em casa, quando tenho uma casa grande, numa área de 500 m2 (25x20), quando os meus filhos podem brincar no quintal sem terem contacto com os filhos dos outros, mas todos sabemos que a maioria das pessoas, principalmente em Bissau, vive em SEIS-QUARTOS. E muitas vezes, em cada um desses quartos (de entre 10 a 12 m2) vive uma família de quatro a seis pessoas. Sabemos que para muita gente nessa condição, a casa é simplesmente um lugar para se recolher à noite para dormir, e um lugar de deixar as coisas; como é que conseguimos pedir com tanto afinco uma medida de isolamento quanto temos boa parte de famílias nessa condição?

Pessoalmente, não conheço nenhum SEIS-QUARTOS coberto com telha, a maioria tem cobertura de zinco, e má ventilação, o que faz com que a casa fique sobreaquecida e ninguém queira ficar dentro na parte da manhã (e mesmo à noite, ficamos com o dilema de ir enfrentar os mosquitos lá fora ou submeter ao calor cá dentro). Isto é um dos motivos porque os "bas-di-mangus" são muito apetecíveis e as bancadas (alinhando o calor com a situação política e económica do país) proliferam.

O pior é que muitas vezes, um conjunto de até seis casas SEIS-QUARTOS tem de partilhar o mesmo "cerco" (latrina), se fizermos uma média de apenas 2 pessoas em casa quarto, mesmo assim serão 72 pessoas a partilhar o mesmo cerco.

E vamos ainda mais longe, e pensamos no acesso à água, pela pessos que vivem nos SEIS-QUARTOS. Deve haver muito poucos SEIS-QUARTOS com água potável canalizada, pessoalmente só conheço duas, e a água é exterior e serve aos outros vizinho também (eis a solidariedade). A maioria, quando não tem uma torneira pública no bairro, onde a boa parte da população do mesmo vai buscar água, tem de recorrer ao poço para ter água, e então em ambos os casos fazem as filas que vemos de manhã e a tarde.

E para cúmulo, a maior parte daquelas famílias a que eu referi atrás, que só comem uma vez por dia, vive em SEIS-QUARTOS.


OLHAR O CONTEXTO

ISOLAMENTO SOCIAL não é a solução para a Guiné-Bissau, não podemos nos dar ao luxo desse tipo de medidas, sem matar e excluir a maior parte da população. Pelamordideus, estamos a falar de um país onde, segundo o Banco Mundial em 2015, 80% das pessoas vive ABAIXO (ABAIXO, ABAIXO, tomem atenção) do limiar da pobreza. Mesmo aqui, o isolamento (ou distanciamento social) condena famílias pobres, porque os ricos, quando se vêm a braços com o Corona vão para clínicas privadas, e os pobres que não podem ser recebidos no hospital, têm de ficar confinados com as próprias famílias e contaminá-las lá, sem dizer que os pobres são os que têm de sair diariamente para ir trabalhar em empregos de merda e mal pagos para depois trazer o risco para as próprias casas.

Mas voltemos à Guiné-Bissau. Eu li uma notícia de que não há forma de controlar as fronteiras, que nem uma bicicleta os polícias tinham, e perguntei-me: A sério, mas o que se passa connosco? Na Europa as pessoas preocupadas com o papel higiénico e na Guiné-Bissau, preocupadas com patrulhar fronteiras, fronteiras que durante o tempo todos estão basicamente escancaradas (como deviam sempre estar). Esqueçam as fronteiras, as terrestres pelos menos, isso nunca conseguimos controlar, o risco para a Guiné vem mais de "fronteiras aéreas" do que as terrestres, concentrem-se nas populações e nas formas de suportar as pessoas sem reprimi-las.

Pensemos em alternativas para o problema, pensemos localmente a ajamos localmente, não façamos da crise uma arma política, embora saiba que isso é mais fácil de dizer do que fazer.

Reúnam-se com pessoas que já trabalharam em diversas "crises de saúde" no país, e criem alternativas para esta, com as informações disponíveis. Não sejamos radicais, paremos, por favor, de fazer COCÓ (cortar e colar) as directrizes europeus que não funcionam na nossa sociedade, principalmente porque não temos assim tanto papel higiénico.

Apelo, não vamos esquecer que isto vai passar e nós vamos ficar, por isso, sejamos solidários.