23 de março de 2011

UMA QUESTÃO DE... MERDA


Os seres humanos amam o perfume dos seus próprios excrementos, mas não o odor de dos outros. No fundo fazem parte do nosso corpo. (…) Levantei-me e olhei para as minhas fezes. Uma bonita arquitectura em caracol, porém fumegante. Borromini. (…) O cocó é o mais pessoal e reservado que temos. O resto os outros podem conhecer (…) Inclusive os teus pensamentos. Mas o cocó não. Excepto por um breve período da tua vida, quando a tua mãe te muda as fraldas (…) Os caminhos do senhor são infinitos, disse a mim mesmo, também passam pelo olho do cu.


Realmente todos nós merdeamos (limitando a referência ao sentido biológico do termo e sem intenção de ser escatológico), todavia a merda tem um significado bastante íntimo, muito mais íntimo que o sexo, de maneira que acaba por ser ainda mais escandalosa que ele. Todo o mundo partilha o sexo, mas a merda é mais solitária que a masturbação, razão por que o fazemos à porta fechada (limitemo-nos à merda ocidental). É claro que há excepções para tudo, encabeçando o exemplo, o par de coprófagos mais famoso do Séc. XXI, as senhoras da 2 girls 1 cup, mas os nossos sapientíssimos psicólogos chamam-nas, às excepções, de desviantes, e os precavidos higienistas com razão avisam que é uma actividade pouco, ou nada saudável.

A merda, ou melhor, merdear é o maior tabu da nossa sociedade, apesar de qualquer pessoa saudável o fazer pelo menos uma vez por dia (ou devia fazê-lo com essa frequência; bem não sei precisar o melhor número diário, mas julgo que em grande número o melhor é consultar um médico). E a nova geração está tão empenhado em desafiar os tabus, principalmente à porta fechada, que práticas como o beijo grego ou o ATM (não confundir com as caixas de multibanco) são cada vez mais comuns. Será isto uma demonstração de coprofilia em estado latente?

Trabalho num supermercado e vejo todos os dias pessoas a comprarem papel higiénico, e quando, há dias vi o filme Mary e Max e as referências escatológicas ali deixadas (e que me remeteu ao texto de Umberto Eco, do livro A Misteriosa Chama da Rainha Loana, com que abri o post) comecei a ficar com desejo de entrar na cabeça dessas para saber se pensam alguma coisa sobre o que pensam os outros pelo facto de comprarem papel higiénico ou se simplesmente estão-se a cagar, pois comprá-lo atesta claramente que a pessoa merdeia.

À merda relacionamos o peido (é melhor dizer flatulência, para não parecer ordinário, e começar a dizer excreção ou dejecção, para parecer científico e não vulgar), de tal maneira que constitui um embaraço quando este se ouve quando o queríamos calar, mesmo que o único sentido que desperte seja a audição; aliás, preferimos empestar o espaço com um fedorento que ninguém pode identificar a origem passando toda a gente a ser suspeito (tirando quando há moscas por perto, pois começam logo a voar na direcção da fonte da emissão, estragando o disfarce), do que a fazer um sonoro que não incomoda a mais ninguém.

Fico à pensar se não condenamos a defecção por sua ligação com o sexo, pelo menos no início. Ok! Eu explico: o acto de defecar expõe inevitavelmente o sexo (o órgão), e acho que o pudor tinha mais a ver com isso do que com questões higiénicas. Li um romance, onde uma senhora da corte francesa durante um passeio, manda parar a carruagem, e avia-se ali mesmo à beira da estrada, à frente dos demais. E parece que até o Séc. XVII era normal defecar em qualquer sítio que desse jeito, dentro da casa ou na rua, ou dizer um: água vai!, antes de amandar a porcaria para o meio da rua. E quando as medidas começaram a ser tomadas para acabar com essa porcariada toda, o acto de defecar era partilhado com os outros, porque não haviam separadores e nem sanitas cómodas como hoje, quando muito pias turcas.  

Se era isso prática comum na altura, começo a pensar quando é que a merda, ups!, defecção, começou a ser sacralizada? Eu sei que os muçulmanos nunca se relacionaram bem com ela, e julgo que e pela mesma razão acima sugerida, o sexo, porque também não se relacionam com a urina, motivo das suas abluções antes de começarem as orações. Mas, também, n’As Mil e Uma Noites soube que eles partilhavam banhos e latrinas, embora já evidenciassem o pudor de merdear em público; eram mais civilizados nesse sentido que os ocidentais.



Parece que os gregos costumavam defecar em público (confirmem se faz favor), sem vergonha desse acto, os próprios romanos tinham o que chamavam de Cloaca Maxima, a sua rede de esgotos, pois os actos higiénicos faziam-se na rua, mas, hey, os romanos eram muito desavergonhados para o nosso padrão actual, eram tipos que faziam hinos ao sexo e aos órgãos sexuais e louvavam o nudismo.

Tudo o que o corpo manda fora pelo seu sistema excretor é lixo, e duvido seriamente que se consiga reciclar. Eu cresci numa quinta enorme, quando criança eu costumava defecar no fundo do meu quintal e tinha sempre algum porco (animal) que ganhava assim refeição (era proibido de fazer isso, porque a minha mãe dizia que comíamos pela carne do animal o que eles comiam; mas eu cagava-me na proibição, afinal eles estavam ali para fazer desaparecer a prova), no entanto, nunca vi um porco a comer o seu próprio dejecto. Ou seja até aqueles idiotas de cérebro reduzido sabiam não ser saudável digerir a própria merda.

É claro que depois de as pessoas começarem a esconder os dejectos e a ter vergonha deles, todo o mundo começou a ganhar, as cidades começaram a ser mais saudáveis e as doenças desapareceram, por isso ninguém pense que estou a fazer um apelo a coprofilia. O que estou a tentar entender é por que raio começamos a ter vergonha de algo tão natural como merdear? E somos tão fascinados pela merda que Piero Manzoni - o grande trapaceiro que soube bem vestir o rei de nu (primeira foto) - teve o trabalho de cagar em 90 latas e nós o consideramos uma obra-prima.



PS: Eu não sabia que algo como a merda podia render um post tão comprido, pois acho que ainda vou voltar ao assunto.

PPS: A segunda foto é de uma instalação sanitária pública com vidros espelhados. Imaginem a sensação de merdear vendo todo o mundo (se conseguisse é claro, eu cá duvido muito), é como ser um deus: cago pra vocês, mas nem sabem.

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