Como escrever sobre As Mil e Uma Noites?
Eu sei que todo o
mundo já ouviu falar, outros leram umas tantas histórias, alguns pensam que foi
escrito por Disney e há ainda alguns que pensam que Hércules é uma personagem
deste universo, no entanto nem todos leram o conjunto, principalmente (modéstia
à parte), na sua versão integral, conforme reza o livro: texto completo, segundo a versão francesa realizada em 1889, sobre o
original árabe do Dr. J. C. Marduz, e tendo em conta a edição prínceps de 1704
da primeira versão feita por A. Galland, com o subtítulo de Contos Árabes.
A linha principal d’As Mil e Uma Noites é estendida por Scheherazade,
uma feminista e humanista (observações minhas), que casou com Schahriar, um
sultão magoado pelos cornos que lhe foram postos pela sua primeira esposa e que
resolveu vingar-se, casando todos os dias com uma virgem, mandando-a matar no
dia seguinte, desencadeando desta maneira uma crise de virgens no reino, sem
falar do pânico dos citadinos de verem as suas filhas escolhidas para a dupla
imolação. No entanto acho burra essa gente, se o sultão só casava com virgens,
por que raio não arranjavam quem lhes desvirgindasse a filha?... hem?...
Adelante. Sherazade tinha um plano para inverter essa tendência homicida dele
(na verdade o homem devia era ser internado) que consistia em contar-lhe
histórias compridas, terminadas em ganchos que lhe fizessem querer saber do resto. E ela conseguiu sobreviver, com esse estratagema, a mil e
uma noites (1001, um número capicuo, talvez com algum significado esóterico - já notaram que a capicua não é capicua? estranho!).
Os contos repetem-se muito,
variando aqui e ali, mas, acima de tudo, mantêm a mesma essência: são contos de
mulheres (mulheres infiéis, mulheres apaixonadas, falsas pudicas, mulheres
virtuosas, mulheres de toda a espécie, algumas, poucas, subvertendo o arquétipo grego,
sendo elas as heroínas e os homens os socorridos), traição, amores
desencontrados, promessas não cumpridas, curiosidade mórbida, sobrenatural,
fantástico, enfim, tudo o que temos nos contos de fadas que conhecemos já tinha
aqui a sua versão, até mesmo O Alquimista
do Paulo Coelho.
As Mil e Uma Noites consegue ser esotérico: cheio de ensinamentos,
duplos significados, alquimia e tal; consegue ser fantástico: génios,
feiticeiros, metamorfos, ciclopes, monstros, aves gigantes (o famoso roc), anões e gigantes (versão prévia de
As Viagens de Gulliver, de Johnathan
Swift); romântico: amores e desamores; trágico (pouquíssimos contos no entanto,
parece que não eram muito fã de finais tristes); ficção-fantástico, para não
dizer científico: telepatia, telecomunicação, teleporte e tem até a sua versão
do outro lado do espelho (antecedendo a Alice
de Lewis Carrol); erótico, com muitas partes e descrições picantes,
mostrando que a paranóia de um zib,
ou melhor, um pénis grande não é exclusivo dos ocidentais e nem é uma modernice;
ainda tem longos poemas que mostram a sensibilidade oriental (antiga) e a sua
forma de apreciar.
As Mil e Uma Noites é um conjunto de contos (alguns deles tão
extensos como um romance best-seller moderno) que explora praticamente a maior
parte das possibilidades genéricas hoje existente. Mas não, não é um livro
antes do seu tempo, como se costuma dizer, aliás, tal coisa não existe. E se a modernidade bebeu muito da sua fonte, ele bebe dos
gregos, vários mitos gregos foram reconfigurados pelo imaginário oriental, por
exemplo, uma das viagens de Sindbad não é mais do que uma versão de Ulisses e
Polifemo, da Odisseia de Homero..
As personagens mais recorrentes
nos contos da Sherazade são o Califa Haroun-Al-Raschid, a sua esposa, a
ciumenta Zobeida, o seu grão-vizir e sábio, Giafar (desconfigurado pela
Disney), o chefe dos eunucos, Mesrour, e o idiota Ali que protagoniza
praticamente todas as anedotas do livro.
As Mil e Uma Noites é uma leitura obrigatória para todo o
amante da ficção, é certo que boa parte das personagens são cópias e versões umas das outras, todos os heróis recitam o Alcorão de cor, e é muito racista, praticamente todos os
cristãos, ou francos, são cães infiéis e traiçoeiros (tirando um franca heróica
que acabou convertida ao Islão), todos os judeus, salvos raras excepções, são
mercadores inescrupulosos e quando ganham escrúpulo também viram muçulmanos,
mas não nos esqueçamos do contexto histórico-social da obra, todos os pretos são mentirosos ou possuem talento para o sexo (mostrando que esse fetiche não é também recente). Aliás, em termos
comparativos, hoje na ficção americana, um judeu é um óptimo piadista ou
argumentista, um muçulmano é terrorista, um preto é bom no sexo e/ou vende drogas (ai os pretos). E também As Mil e Uma Noites pode ser um bom documento histórico e
sociológico do antigo oriente muçulmano, mostrando-nos que os costumes mudaram
bastantes e que muitas práticas misóginas do mundo do extremismo-islâmico não
existiam nos primórdios do islamismo.
Posto isto, eu digo: vão às bibliotecas
procurar pelo livro, ou livros (o que eu li foram seis tomos gigantescos).