Quando comecei a ler Se Numa Noite… (da primeira vez, há
coisa de uns dez anos) logo nas primeiras páginas parei, em sinal de desafio,
queria encontrar uma posição de leitura que o autor não tinha previsto no seu
livro para lhe ganhar no próprio jogo, e encontrei: pendurei-me na cabeceira da
cama com a barriga dos joelhos (? – não sei como se chama a parte de dentro dos joelhos, a junta entre a barriga da perna e a coxa; alguém sabe?), de cabeça para
baixo (porque embora ele tivesse previsto de
cabeça para baixo, pelo menos não falou nada sobre pendurar-se pelos joelhos).
No entanto era ridículo, acho que nem o próprio Drácula lê de cabeça para
baixo; então deixei-me levar e não forçar a oposição, deliciando-me com a
leitura.
Se Numa Noite… conta a história de um leitor que compra um livro de
Italo Calvino intitulado Se Numa Noite de
Inverno um Viajante cuja primeira história (se não contarmos com a do
leitor, tratado por tu – ou seja tu que lês o livro), se chama Se Numa Noite de Inverno um Viajante, e
depois o leitor percebe que alguém está a escrever a sua história, e entra em
contacto com o seu escritor, e ainda conhece uma leitora que o lê também
(deixando então o leitor de ser um “tu” assexuado para ser masculino), nesse
livro que o leitor, tu, está a ler e que o escritor escreveu, embora faça parte
da sua própria escrita (já te perdeste?, aposto que sim).
Essa odisseia da leitura do
leitor, tu, na procura de um entendimento, de um sentido da sua história e do,
talvez, existir, encontra-se entremeada por dez contos, dez contos cujos
títulos ligados formam uma frase poética que, de uma certa maneira, resume toda
a viagem no livro, e todos os protagonistas dos contos acabam por ser tu mesmo,
o leitor, que lês o livro, ainda mais porque são narrados na primeira pessoa.
Então em toda essa viagem e mudança de perspectiva, perdes-te na absurda
irrealidade da existência e encontras-te a perguntar pelo sentido de tudo, principalmente
pela peculiaridade das histórias que terminam sempre abruptamente deixando-te com
água na boca e quando retomam são já outras incarnações.
Se Numa Noite… é um magistral ensaio filosófico sobre a vida, ao
mesmo tempo que é uma magistral peça de literatura, e talvez um quebra-cabeça
que depois de leres outra vez se abre diante de ti de uma maneira diferente,
mostrando o que o livro mostra: a constante mudança, e a ignorância sobre a
necessidade da maior parte dessas mudanças, e te sentes compelido a juntar
outra vez as peças para lhes dar forma, principalmente porque ele se pode armar
de maneiras diferentes.
Receio não ter sido muito claro
no parágrafo anterior, e para não me lançar em pseudo-filosofias tentando ouvir o livro, vou simplesmente fazer o
resumo pelas próprias palavras do autor, unindo os dez títulos dos dez contons: Se
numa noite de Inverno um viajante, fora da povoação de Malbork, debruçando-se
da encosta íngreme sem temer o vento e a vertigem, olha para baixo onde a
sombra se adensa numa rede de linhas que se entreleçam, numa rede de linhas que
se intersectam no tapete de folhas iluminadas pele lua em torno de uma fossa
vazia, - Que história lá em baixo espera um fim? – pede, ansioso por ouvir a
narrativa.
Em resumo, não sabemos nada da
vida, nem o que vai acontecer depois, está tudo coberto por pontos de
interrogações, mas isso não nos tira o ímpeto de querer vivê-la e de tentar
descortinar tudo o mais.
Se Numa Noite de Inverno um
Viajante é uma OBRA-PRIMA e não há nenhuma desculpa para não o ler, a não
ser, é claro, que prefiras tudo mastigado... e mesmo neste caso não sais defraudado.