24 de janeiro de 2021

VIAGENS


Nasci sem forma
e não vou morrer quadrado.
Saio, viajo,
expando o meu quadro,
falo com mortos
no conforto do meu quarto,
conheço tantos mundos,
porque, meu, eu leio muito.


Falo com mortos
no conforto do meu espaço
através de livros
livres do tempo e do espaço;
falo com mortos
no conforto do meu quarto,
na verdade, eu não falo,
só escuto e sinto-me sábio.


Bolso vazio,
viajei na biblioteca,
quando tive um pouco mais:
Viagens na minha terra!,
e mais à frente,
tive o suficiente
e quebrei a corrente,
Navegar é preciso!


Mudei de continente,
saltei fronteiras
e expandi a minha esfera
mental,
então, assim e tal,
levantei o meu astral,
e tornei-me neste madjé
policultural.


Por universos inteiros
fechados num acorde
que me acorda com um toque
e a minha alma não dorme,
viajei pelos tons, pelos sons,
viajei na música,
conheci várias,
conheci músicas únicas:


Kussundé, gumbé, kunderé.
funana, morna, forró,
fado, samba, semba,
kizomba, jazz, hip-hop,
salsa, valsa, mazurca,
kuduru, bossa nova e rock,
conheci blues, pimba,
djambadon, conheci amor.


Viajei na pintura,
viajei na literatura,
viajei no cinema
e na imaginação pura,
viajei também na língua,
errando numa boa,
viajei por filosofias,
viagem que não se esgota.


Sozinho ou com outros,
viajo como louco,
por Sonaco ou por Lisboa,
viajar é o meu foco.
E sempre que eu conheço
novas pessoas,
eu sinto aqui dentro
que viajo mais um pouco


17 de janeiro de 2021

UMA QUESTÃO DE... EMPATIA

Sentados em Bissau, a tomar umas cervejas enquanto esperávamos pelo jantar num restaurante nada barato para o padrão de vida guineense, um amigo português (ainda não era amigo na altura) começou a falar da precariedade. E eu, no alto da minha indignação, achei que ele não devia falar de precariedade, sendo que era um privilegiado e que iria gastar nesse jantar o que muitas famílias na Guiné gastariam numa semana.

Mais tarde, só muito mais tarde, notei que, na verdade, eu nem sequer estava disposto a ouvi-lo ou a entendê-lo, só estava concentrado nas suas palavras e na minha arrogância. Eu andava frustrado com a precariedade que tinha visto na Guiné, na qual vivia parte da minha própria família, e estava tão imerso nisso que me esqueci da precariedade que existe em Portugal e na qual vive outra parte da minha família, e com a qual ele se identifica.
Para piorar, a precariedade da qual o amigo falava também me abarcava, porque temos o mesmo patrão e desenvolvemos o mesmo tipo de trabalho e depois de findar o nosso "contrato", vamos para a mesma merda.

Eu devia era ser solidário, mas todos os meus canais de empatia estavam nesse momento bloqueados e eu só conseguia agir dentro da racionalidade fria de medir o tamanho dos pen... dos pensamentos?... dos privilégios. Não quis saber sequer que a vida dele não se resumia apenas à Guiné-Bissau e, portanto, eu não devia usar apenas o parâmetro guineense para o criticar a ele e à sua precariedade (que na verdade é nossa).
Enquanto houver meios sociais diferentes, vai haver sempre perspetivas diferentes, os privilégios e as precariedades serão sempre diferentes. Mesmo que eu só conhecesse a realidade guineense e não a portuguesa, nunca conseguiria falar com esse meu amigo se quisesse focar-me (como fiz) apenas nas nossas respetivas realidades, só muito mais tarde, cá em Portugal, quando dei conta disso, lhe pedi desculpas.
Os privilégios serão sempre diferentes, as precariedades serão sempre diferentes, mas os sentimentos que os mesmos provocam penso que serão similares; por isso, ao invés de medirmos materialmente as coisas, podemos tentar a empatia.

Fala-me do que sentes, não do que tens, e eu falo-te do que sinto. É certo que o que se sente é também motivado pelo que se tem, mas se conseguirmos perceber o sentimento do outro, talvez consigamos perceber também como esse sentimento é motivado por aquilo que ele não tem (ou tem) e dessa forma consigamos entendê-lo melhor. A verdade é que mesmo que tentemos ver as coisas pela perspetiva de outrem, os olhos serão sempre nossos, os filtros serão sempre nossos. Mas podemos sempre tentar mais empatia.
Nas lutas anti-racistas, anti-fascistas, anti-homofóbicas, anti-transfóbicas, feministas, entre outras, temos a tendência de dizer... tu és branco, não sabes o que é racismo, portanto, cala-te... tu és gajo, não sabes o que é ser mulher, portanto, cala-te... Sim, é "tu és tu, não és eu", o que não deixa de ser verdade, mas creio que todos nós, todo o ser humano, independentemente da sua posição de privilégio ou de precariedade, terá sofrido discriminação e injustiça alguma vez na vida. Se em vez de hierarquizarmos o grau da injustiça, tentarmos falar sobre o sentimento que essa injustiça provoca, talvez consigamos falar melhor uns com os outros. Talvez eu consiga falar da injustiça contra a mulher da minha perspetiva de pessoa racializada, talvez a mulher consiga falar da injustiça contra os trans da sua perpetiva feminina... pois conseguir falar leva a conseguir entender, creio eu.
Penso que podemos treinar mais conversar pela empatia, em vez de nos focarmos apenas nas racionalidades espistemológicas que não falam muito às emoções; penso que devemos tentar alargar mais um bocado os lugares de fala.

3 de janeiro de 2021

CAROS PAIS (mãe e pai)

Caros pais,


Estou a escrever, não é por nada de mais, mas porque há algumas coisas que preciso dizer, para limpar a alma, superar o trauma e viver na maior calma. Como disse, tenho umas verdades para vos contar, podem não gostar, mas eu tenho de falar para me aliviar deste mal-estar que me está a maltratar.

Olhem, pá, como pais e educadores, vocês não tiveram lá muita atenção às minhas dores, não foram bons gestores, não perceberam que os vossos atos também tiveram muito impacto na formação do meu ser. Por acaso tentaram ver se o que faziam teria sequelas sérias no meu estado psicológico?

É lógico que eu vos culpar não foge do estereótipo, e é óbvio notar que o filho em qualquer sítio como um Édipo ou uma Electra brigará com os seus pais. Mas, no meu caso, não é por acaso, meus pais, eu tenho mesmo um vaso largo de muitos ais.
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Mamã, lembras-te daquela vez que me bateste e me chamaste de burro à frente de toda a gente? Foi um ato indigente e, consequentemente, eu senti-me mesmo doente.
Chamaste-me de burro, a mim... a mim, que sempre fui inteligente, e isso só porque eu tinha na mão um ferro quente e para poupar tempo queria passar a minha camisa sem tirá-la do meu corpo.
Não viste que eu só estava a ser engenhoso?
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E tu, papá, tu, tu lixaste-me a adolescência, a minha vida foi uma miséria: todos os meus amigos a irem para o campo de férias e tu a dizer que não ias pagar por essas tretas, que eu não merecia coisas dessas, porque eu era um irresponsável e que estava de castigo.

Castigo, hein? Castigo porque eu podia ter morrido ao ter batido com o teu carro contra o muro da casa? Epá, baza.

Eu podia ter morrido, sim, mas não morri. Sim, podia ter-me magoado, mas apenas o muro foi derrubado. Sim, roubei o teu carro, mas porra, eu só tinha 17 anos, e foi só uma vez e não é como se eu pudesse repetir o feito outra vez, porque a merda do carro ficou todo arrebentado.

Devias mesmo era me teres dado um prémio por ter conseguido sair daquela merda ileso.
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Bah… vocês não entendem nada como foram injustos para mim, como me transformaram nisto aqui… A culpa é toda vossa.

Não sei qual culpa, nem quero saber, mas é vossa... Tchau.