12 de novembro de 2022
COMO SER UM BOM COLONIALISTA
16 de maio de 2022
CARO AMIGO POLIAMORISTA (DA ETICIZAÇÃO)
Espero que esta missiva te encontre de boa com a vida e na crista da onda, onde andas como especialista a fazer revista na tua boa lista de poliamoristas e outras em vista de te fazerem festinhas. A sério desejo mesmo que não estejas num ermo, a sentires-te enfermo, mas a curtir amores em cheio com o sucesso de envolvimentos plenos.
Caro amigo poliamorista, nós, seres humanos, somos todos falhos e metemo-nos em trabalhos, porque nunca queremos as mesmas coisas, cada um de nós poisa os seus ideais nas suas próprias notas, e é por isso que todos criamos regras e guias para as nossas vidas ou escolhemos seguir as linhas que o nosso indica como onde se respira mais sentido nesta via. Todavia, se algumas dessas regras parecem menos cegas ou são mesmo menos bestas que outras, não significa que não possam ser escrotas ou que sejam perfeitas e feitas para além da crítica. Cri e vi cá que o poliamorismo pode ser boa prática, sendo genérico, é certo; mas lá porque dizemos, às vezes histéricos, que o poliamorismo é "consentimento ético", não quer dizer que seja assim mesmo, e nem que o "consentimento ético" seja um exclusivo do poliamorismo.
É muito comum, sem freio nenhum, ver-te a chamar aos "monogâmicos" de traidores, quase como se fossem seres inferiores, que não sabem gerir os ciúmes e as dores e os ardores. E para provar quão errados são os monogâmicos, dizes que a monogamia é uma fantasia, uma construção social, logo está mal por não ser natural. Também dizes que a monogamia é da autoria do capitalismo, mas... hey... a monogamia é bem anterior ao capitalismo, pelo menos o capitalismo formal que conhecemos hoje, do qual até o diabo foge tomado de medo, e ao qual todos apontamos o dedo. E, caro amigo, o capitalismo também usa o poliamorismo, usa as não-monogamias e com todas as mordomias usa qualquer movimento capaz de aglutinamentos... o capitalismo não descura nichos, dá e tira com capricho e trata a todos como bichos.
Enfim... dizes assim e com tanta certeza: "Os animais na natureza não são monogâmicos, logo o ser humano não é feito para ser monogâmico." Bem concordo contigo, caro amigo, quando dizes que os animais não são monogâmicos...mas nem são poligâmicos... muito menos poliamoristas... todavia há espécies que só têm um parceiro e há os porreiros que não precisam de sequer do sexo e reproduzem por si e consigo mesmos, mostrando que a função do sexo talvez não seja meramente...Atenção, não estou com essa menção a dizer que a copulação serve só para reprodução, aliás nem define a reprodução, uma vez que, como acabei de dizer, há espécies que reproduzem sem foder... Largando este papo para outro espaço vou retomando: nem o ser humano é monogâmico ou poligâmico ou poliamorista, ele pode praticar tudo isso da lista, mas como espécie não o caracteriza. O ser humano não é um ser orientado apenas pelas básicas lógicas biológicas, mas faz as suas próprias, psicológicas e sociológicas. Destarte reduzir o ser humano a apenas uma camada: a animal, é negar que o pensamento e a organização social fazem parte da nossa evolução e nos ajuda com resoluções, e que foi o que nos ajudou a sobreviver a sérios novelos de desvelos, e paradoxalmente, a criar o antropoceno.
Nós deixamos de ser meramente "natural", quando começamos a criar, é só observar. Usamos óculos para melhorar os olhos, fones para ouvir melhor, adoçantes para o sabor, pacemaker para fazer bater o coração, e injeção e inoculação e vacinas para estender a vida, resistindo mais às adversidades biológicas. Transformamos e transformamos. Por exemplo, os dentes que que antes arreganhávamos para assustarmos os outros, hoje com novos modos arreganhamo-los como engodos, em sorrisos rasgados, para criar contactos. Ou por exemplo, hoje falamos tanto mesmo do problemático que é a masculinidade tóxica, da qual a gente não se quer próxima, filha da cultura do macho-alfa, e da qual se quer dar um basta, mas a natureza está cheia de exemplos de machos-alfa, o que, todavia, não nos faz falta, razão pela qual a ideia não se salva, pois não queremos descer a escarpa a louvar a cultura alfa. Em resumo: somos também construtos sociais e não mais apenas animais tintos com instintos não distintos.
Hoje a monogamia é norma (regra, entenda-se)... as normas podem ajudar até deixarem de fazer sentido, até serem casos perdidos, ou começarem a causar mais mal do que bem, mas todos vivemos com normas, tanto que às vezes a forma como comportas com a questão do poliamor parece que não queres dar respostas, mas substituir uma norma pela outra, que ainda não tem a mesma expressão política e expressão opressora. Sim, falo de substituição e de opressão e não de alteridade, porque da forma como te vejo a policiar a poliamoridade parece-me que não queres deixar espaços para a liberdade de amar, embora seja o que andas a advogar. Caro amigo poliamorista, ama, deixa amar, deixe-se amar, sinta o amor, lambe-lhe a cor, toque-lhe o odor, olha o seu som, cheira-lhe a textura, sem gráficos complicados a qualificar os envolvimentos... aliás, não é o que pedimos aos monogamistas?
Caro amigo poliamorista, falas tanto do "consentimento etico", mas há muitas formas de relacionamentos que são éticas, como já tinha dito, e não é só o poliamorismo. A monogamia pode ser ética, a poligamia também pode ser ética, embora esteja a sua mais comum forma, a poliginia, fundamentada no poder macho (atemo-nos ao mundo humano, para evitar a cena dos alfas, embora o que não nos falta seja animalidade).
Sobre o consentimento ético, na Guiné-Bissau, a título de exemplo, é bastante comum a poliginia... o contrário não se verifica... todavia, apesar disso muitas vezes são questões acordadas, muitas vezes propostadas pela mulher, porque precisa de ajuda nos campos e na casa e no poço e nos trabalhos e nos trampos diários e no etecétera, enquanto o marido se senta o dia todo sozinho a sacudir moscas com um rabo de vaca ou a coçar os testículos numa outra tabanca. Claro que as suas circunstâncias é que as levam a isso, e se conhecessem ou vivessem noutra realidade, quereriam outra coisa com maior equidade. Apesar de tudo, algumas, dentro dessa sua prisão e da sua limitação, escolhem e consentem.
Anos antes do capitalismo pintar as sociedades guineenses, a poligamia (poliginia) já existia, e em uma dessas sociedades fala-se da existência outrora da poliandria, mas da qual nem sombra se vê hoje em dia, provavelmente resultado das evangelizações ou de outras razões. Quanto às sociedades poligínicas, o número das esposas dependia dos posses do homem, quanto mais campos e mais gados, mais esposas e mais filhos (mãos de obra). O capitalismo ainda não tinha ali chegado, a economia era centrada no sector primário e configurava e influenciava as relações ditas amorosas. Hoje ainda é a mesma coisa em todo o mundo, porque no fundo só a economia mudou, a relação do poder continuou.
Falei disto para dizer que nem a monogamia nem a poligamia são frutos imediatos do capitalismo, ou pelo menos do capitalismo formal moderno, embora, sim, sejam usados pelo capitalismo (tal e qual o poliamoriasmo). Há uma sociedade guineense que é poligínica, mas que tem mecanismos para a mulher vazar as suas frustrações com outro indivíduo masculino que lhe seja querido, não precisa do consentimento do marido, o marido pode até sentir-se traído, mas não há castigo, não há punição. E essa noção é a razão por que pode haver "consentimento" na "traição". E a chamada "traição", se calhar, não é de todo não-ético. Pessoas dormem com outras e "traem" por diferentes razões a que razão pode conhecer ou talvez não; algumas traições são necessárias pelas suas próprias razões, pode ser por sobrevivência mental ou material ou emocional ou social ou seja qual for, é preciso sempre contextualizar... a não ser que a ideia da ética seja mesmo uma forma de dogma. "Não matarás" é ético com certeza... mas... e se for em legítima defesa?
Caro amigo poliamorista, tenha isto em perspetiva, não somos e nem percebemos mais ou melhor do amor do que monoamoristas, só por sermos ou por nos dizermos poliamoristas, apenas temos um diferente entendimento. Aliás o poliamorismo pode ser tão tóxico quanto o monogamismo, porque a questão, caro amigo, não é a prática, mas quem a pratica e a forma como a ela se dedica.
Sob a capa do poliamorismo, também abrimos abismos e também temos predadores sexuais, stalkers (reais e virtuais); também passio-dependentes que usam outras gentes para a satisfação pungente dos seus vícios; temos visto gente com medo de compromisso que por isso transita entre corações sofridos para se abster de se comprometer com alguém, magoando antes com medo do distante; temos machos a defender a política de pénis único, com argumentos túrgidos, ciumentos como tudo, a controlar e a abusar de mulheres; temos pessoas traumatizadas a traumatizar outras almas; temos pessoas mentirosas, traidoras e manipuladoras; temos pessoas em dezenas de relações (superficiais) sem a consideração que o amor e a afeição exigem tempo e cuidado, e que o nosso coração pode ser uma imensidão, mas o nosso tempo não (não sei o que é o amor, mas sei o que para mim não é amor); temos pessoas a usarem a questão das relações como se de uma religião se tratasse, como se de um produto se tratasse, capitalizando dela, virando gurus de tudo e mais alguma coisas e manipulando almas confusas que abismos cruzam... enfim, resumo, por não poder elencar tudo, pode te parecer absurdo, repito, mas não é sobre a prática em si, mas sobre quem a pratica. E ser poliamorista não é ser anticapitalista, é só ser poliamorista.
Usar o poliamor como uma bandeira política é parte da vida, quando uma escolha consentida e objetiva. Mas quando o poliamorismo se revolve num ativismo extremo, que quer roubar os remos e que vemos a chamar a todos os monogâmicos de cegos, de imbecis e de carneirada afogada na traição e na ilusão, que não faz mais senão traição (como se a limitação da traição seja sexual ou como se a traição seja um exclusivo do monoamorismo), aí fica difícil acreditar que o teu poliamorismo não seja só clubismo. Até entendo que recém-convertidos ao poliamorismo sejam irritantes, porque como parece que descobriram uma novas verdades, mas antes distantes, sentem-se arrogantes e tornam-se mais chatos que um recém-vegano ou um recém-ateu iniciado. Mas mais chato mesmo é um récem-ateu e recém-vegano recém-convertido ao poliamorismo. Por isso, há quem te supere, caro amigo.
Caro amigo poliamorista, o consentimento, esse vem em diferentes pacotes, com diversas texturas e diversos sabores e diversos toques e diversos odores, e, olha lá, embora se creia universal, a ética, se calhar, depende de contextos. Mas o que é certo certo certo certo mesmo é que o poliamor tem tanto peso e tanto problema quanto o monoamor, não fosse o poliamor uma prática desenvolvida por seres não perfeitos e tão insatisfeitos e inquietos como os humanos. Por isso, meu caro, às vezes, o mais claro é relaxarmos apenas, aliviar as penas, abrir as pernas (ou outras cenas) e vivermos a nossa verdade, protegendo-a, é claro, de ataques bárbaros, mas sem andarmos despertos e soberbos a emular os atacantes num jogo fedorento e, com asco, nos colocando no lugar do carrasco.
20 de dezembro de 2021
MANIFESTO DEPRIMENTE DO MOVIMENTO DEPRESSIVO
4 de novembro de 2021
NÃO É SOBRE NÓS
5 de maio de 2021
A MÚSICA TAMBÉM PODE SER PROBLEMA
Buba. 2019. 1 de Maio. Praia. Um grupo de jovens sentados, a beber e a conversar, outros a dançar. De repente a música "larga nha kodjon" e os que estavam sentados, rapazes e raparigas, gritaram todos: uaaaaaaaa, e lá se meteram a dançar e a cantar com a música, todos, até crianças.
Bissau. 2021. Abril. Cuntum. Tocava
música lá fora. De repente: "Bo rastam, bo lebam..." e ouvi:
uaaaaaaaa, e toda a gente a cantar e, suponho, a dançar. A música é fixe,
dou-lhe isso, mas a letra é horrível. Claramente escrito por um homem.
Há meses que tenho visto a campanha
"Mindjer i ka Tambur" a tentar sensibilizar as pessoas para assuntos
de violência contra as mulheres. Lidamos constantemente com violências do tipo
que a música invoca, onde mulheres são arrastadas e a suas perucas lhes são
retiradas e ela são violadas, tratadas como carne e não pessoas. Essa música
reforça a prática.
Se fosse uma mulher a escrever e a
cantar a música... bem, continuaria a ser problemático, mas menos... sabem?, a
cada uma a sua preferência sexual.
É assim, já me disseram, é só uma
música, é brincadeira. Não, não é brincadeira. Não digo que a intenção
consciente do autor seja apelar à violação, mas é isso que a música faz.
As piadas, os estereótipos, entre outros
ditos problemáticos reforçam as ideias, porque nunca pensamos que são perigosos
até que se tornam. É como um bebé que quando insulta os outros nos rimos da sua
inocência, até que nos insulta a nós e já não achamos graça e depois notamos
que ele ao crescer normalizou o insulto e depois fica difícil corrigi-lo. Kana
seku...
Não brinquemos com a violência, ou com
coisas que destroem a vida de outras pessoas, ou com coisas que diariamente
causam vítimas.
WJ numa música, "Nha Carta",
romantiza a violência, diz que bate na sua fofa, dá-lhe rasteiradas e deixa-a
fungulida. Isso não é amor, é só violência e sentimento de posse.
Maio Copé canta: "kusta n' bafa
mindjer, ma n' ten di toma noiba". Não, se bafares uma mulher é para seres
preso, não é para casares com a pessoa que violaste. Ahdeuss! Então é assim?
Isso reduz a mulher a um objeto conquistável enfiando-se nele o pénis.
Vi mulheres a dançar e a cantar "bo
rastam, bo lebam", e pensei se não deviam ficar preocupadas, falei com uma
amiga e ela respondeu: "não é sobre mim". É verdade, não era sobre
ela.
Lembro-me de uma música de Tino Trimó
que dizia "si dinheru sta ba na po, mindjeris na kasa ku santchu",
ideia que é ainda veiculada na Guiné. Até o meu irmão mais novo de 20 anos que
não tope nem "koko na kadera" (não tenho problemas com palavrões),
também diz que as raparigas de Bissau só querem dinheiro. E ele tem muitas
namoradas e nenhum dinheiro. Se as mulheres só quisessem dinheiro, mais de 80%
dos guineenses seriam virgens. E os jovens então, uiiiiiiii... Na altura dessa
música do Tino, lembro-me de uma tia responder, quando alguém perguntou por que
as mulheres gostavam do Tino se ele falava mal delas: "Ele canta bem [e
canta e como!] e é sobre outras mulheres, eu não sou assim".
É sempre sobre outras mulheres, mas
quando o estereótipo pega, nenhuma mulher fica de fora, e quando o mal se
espalha, todas as mulheres sofrem, e com elas a sociedade.
Ussumane Grifom escreveu um artigo sobre este
tema de músicas problemáticas e relacionou a causa com a falta da educação
formal (escolas). Eis a coisa, precisamos de nos reeducarmos formal e
informalmente, e discutirmos cada vez mais estes assuntos.
12 de março de 2021
LEI DE KON: A RAIZ DA VIOLÊNCIA (cronices crónicas)
NÃO, NÃO e NÃO! NÃO FOI ASSIM. VIOLÊNCIA NÃO É EDUCAÇÃO!
Já me cruzei com esta imagem (e outras similares) em vários lugares na internet, com pessoas a enaltecerem isto como boa educação. Mas olhemos atento
para a imagem e leiamos a violência que emana.
Violência não é educação, nunca foi e nunca será. Se violência fosse
educação, por causa daquilo que passamos na mão dos tugas teríamos sido dos
povos mais educados do mundo. Essa fala de que “apenas o sute endireita o
guineense” é mais uma daquelas estupidezes que repetimos sem sequer pensar.
O sute nunca endireitou ninguém, o sute nunca educou ninguém. O que o sute
faz é criar submissão e medo, não respeito, medo. O sute faz as pessoas
dobrarem-se ante o medo e não aceitarem erguidas a razão. E o sute é um dos
maiores problemas da nossa sociedade guineense, senão o maior.
Somos educados com mantampa. Mantampeados e tcherninhados por dá cá aquela
palha, desde crianças é-nos ensinada a “LEI DE KON”: o kon maior bate no kon
menor, e assim progressivamente. Mesmo entre os kons duvido que essa lei
funcione, mas nós não somos nenhuns macacos, somos humanos, com maior
capacidade de reflexão e de pensamento… bem, olhando para o estado do mundo,
tenho dúvidas sobre esta minha afirmação… ohhhhhhkay… temos alegadamente maior
capacidade de reflexão, portanto, já era mais que tempo para começarmos a
reformular determinados conceitos que claramente não funcionam.
A violência na qual somos educados, que na sua maior parte é gratuita e
desproporcional, não é nada mais do que a incapacidade dos nossos educadores
lidarem com a sua frustração. Pessoas mantampeiam crianças que estão a chorar,
ao mesmo tempo que dizem “para de chorar, para!, cala a boca!”, mas como elas
vão parar de chorar se estão a bater nelas? Já vi educadores a baterem em
crianças bem pequenas, porque não querem comer ou por outra razão qualquer e
julgam que estão a educar. Mas, vamulá, se mesmo a conversar com essas crianças
será difícil fazer-lhes entender o porquê de não fazer certas coisas, muito
menos elas irão entender o problema do que fizeram batendo apenas nelas.
Algumas pessoas já me disseram, quando discutimos este assunto, “eu
concordo com mantampas, a mim foi o sute que me endireitou” e eu pergunto-lhes
sempre: “mas o que estava errado antes?”
Eu, por exemplo, quando ia brincar com os colegas e voltava depois da hora
do almoço, levava tareia lá em casa. Sim, evitava chegar depois do almoço para
não levar tareia. Mas se calhar, proibirem-me de comer podia ter sido mais
eficiente, eu sei lá (comia na casa dos amigos). A cena é que, como sabia que
já tinha sute à espera, quando a hora do almoço, que variava muito, me apanhava
na rua com os amigos, eu já só voltava à hora do jantar, porque sabia que a tareia
era inevitável… ao menos não interrompia as minhas brincadeiras e brincava
muito antes. (Depois fazia todo aquele ritual de pedrinhas para escapar do
sute: uma debaixo da língua para colocar no pote de água, outra para atirar
pelas costas quando estava perto da casa sem olhar para trás e coisa assim… que
muitas vezes resultava).
A questão da violência não é específica apenas aos educadores, mas a toda a
nossa sociedade que vive sob a “LEI DE KON”. Os mais velhos (mais fortes) batem
nos mais novos (mais fracos) sem precisarem de outra razão fora de porque
podem, na discarna mesmo. Um miúdo parado no meio do caminho pode levar a
coquida de um adulto só porque está parado e ele quer passar, mesmo que o
adulto pudesse desviar-se facilmente. O que faz o miúdo que foi coquido? Vai à
procura de um outro miúdo mais fraco para, por sua vez, coquir também. E de
repente vemos um miúdo de dois anos a riquitir um bebé de dois meses, e dizemos
que não entendemos a razão do beliscão? É agressão transferida.
Os pais são agredidos pelos patrões, que são agredidos pelo Estado, e
frustrados, sem poder dar respostas, vão bater (na mulher, no marido”?”) e nos
filhos, e os filhos nos irmãozinhos, e então a “LEI DE KON” é padronizada dessa
forma.
Professores batem nos alunos, com palmatórias de madeira, mantampa de
serra, cinto, chicote, porque estes confundiram o P com R ou com o B. Eu fui
obrigado várias vezes, quando aluno de primária, a ficar de joelhos sobre
cascas-de-karus ou pedrinhas, não porque não sabia as lições, mas porque
chupava os meus dedos, e diziam que eu já tinha idade mais que suficiente para
deixar de chupar os dedos (chupei-os até aos nove, e só parei porque a certa
atura deixou de saber bem, nenhum sute me impediu de os chupar)… os meus dedos…
os meus próprios dedos… vá, se andasse a chupar os dedos de outras pessoa até
poderia entender, e tenho a certeza de que me matariam se ao invés dos dedos eu
andasse a chupar o pé… eeeeeeeepá.
Somos educados no sute, na “LEI DE KON”, e não conhecemos outra coisa e
aceitamos isso como parte nuclear da educação, e aceitamos a hierarquia
violenta inerente dessas práticas. Por isso, sempre que nos tornamos poderosos,
oprimimos os outros e achamo-nos no direito de o fazer: filhos que oprimem os
próprios pais quando envelhecem; polícias e militares que não sabem o seu papel
e pensam que é bater nas pessoas; o “n’ na mostrau bu lugar”; governantes que
acham que podem mandar prender e bater nos outros porque têm esse poder (que
não consta em nenhumas das nossas leis escritas); e o povo que aceita
tranquilamente o exercício desse tipo de poder (não só violência física),
porque “eeeeeeeeee, pa pa pa pa pa, abo bu na kirtika nan sefi!”.
Não, violência não é educação. A “LEI DE KON” é estúpida e vazia. Se o sute
fosse educação teríamos o melhor povo de mundo e o Prémio Nobel da Educação
iria para.
7 de março de 2021
CARO AMIGO BRANCO (DA NEGAÇÃO)
Quando me queixo do racismo, não o faço para ser visto, mas é a minha alma que eu dispo, portanto é errado achares que és o alvo de tudo o que eu reclamo, porque tu és um bacano, meu mano, tu és tão és fixe e tão brando, que se matares uma mosca é porque a gaja fez uma coisa tosca.
Caro amigo, tu sentes-te aflito quando eu falo do racismo, e dizes com afinco que o racismo é um mito, blá blá blá isto, blá blá blá aquilo, que somos todos filhos da mesma raça... Pois, mas és tu quem passa, mesmo numa discoteca africana, e eu é que sou barrado à entrada.
Se achas desconfortável para ti eu falar do racismo, imagina como me sinto, eu que vivo à sombra disso.
Tu dizes que não vês cor, e eu digo, por favor, vai consultar um doutor, porque há algo de errado com a tua retina.
Caro amigo branco, quando eu falo que Portugal é racista, não estou a dizer que tu és racista, nem que todos os portugueses são racistas, mas estou a dizer que o sistema é racista e está construído sobre princípios racistas e de supremacia divisionista.
Vou dar-te um exemplo: o grande templo da história de Portugal é chamado de Descobrimentos, fala de um tempo de homens valentes que dobraram o mar heroicamente e saíram do continente para levar civilização para outras gentes, foram para outros mundos, através do mar profundo para levar a glória de Portugal para limpar povos imundos. Aliás, o hino nacional de Portugal diz: Herois do mar, nobre povo, nação valente e imortal. Entendes agora?
Quando a postura oficial de Portugal é agigantar os assaltos do passado e tomá-los ainda hoje, apesar dos factos, não como atos feios, mas em grandes devaneios como feitos perfeitos de um povo eleito, então… Portugal é racista.
Quando te ensinavam na escola que pertences a um povo superior, que levou civilização a povos de cor, que os educou e que os tirou do estado selvagem e os levou para outras paragens e os vendeu em outras paisagens, e que os trouxe para este lado do oceano como escravos, diz-me: o que te vinha ao caco quando tiravas os olhos do quadro e olhavas para o teu colega preto sentado ao teu lado? Não achavas que a tua categoria não podia ser vista na mesma linha com a categoria de um limpa-pias cuja família foi um dia mera mercadoria?
Tu foste doutrinado para te sentires superior a ele, tu foste doutrinado para sentires que este país te pertence, porque no passado não havia cá pretos. Mas, caro amigo branco, é aí que está o engano, porque mouros ou muçulmanos também já dominaram este pedaço de terra. Percebes agora a fraqueza do delírio do orgulho da tua herança genética que tu chamas de perfeita, só porque não tens uma pele preta?
Caro amigo branco, sabes o que é que acontece quando se junta na mesma gruta políticos racistas, direita extremista, jornalistas racistas, cientistas racistas, brancos com problemas de vista que acham que movimentos antirracistas promovem cultura marxista (sei lá que merda é isto), porque a cor não existe ou porque o racismo não existe? Quando se mistura tudo isto na mesma lista, abre-se a temporada de caça aos pretos, como que aconteceu há pouco tempo e como o que se incentiva neste momento nos comentários ignaros de gente demente na Intenet.
E é disso que eu tenho medo. E também tenho medo de ti, meu caro amigo branco, cujo negacionismo promove o racismo, e que usas uma peneira de maneira a tapar a vista com vista a não ver como Portugal é racista.
Caro branco, se não fodes, então sai de cima.
17 de janeiro de 2021
UMA QUESTÃO DE... EMPATIA
Fala-me do que sentes, não do que tens, e eu falo-te do que sinto. É certo que o que se sente é também motivado pelo que se tem, mas se conseguirmos perceber o sentimento do outro, talvez consigamos perceber também como esse sentimento é motivado por aquilo que ele não tem (ou tem) e dessa forma consigamos entendê-lo melhor. A verdade é que mesmo que tentemos ver as coisas pela perspetiva de outrem, os olhos serão sempre nossos, os filtros serão sempre nossos. Mas podemos sempre tentar mais empatia.
17 de agosto de 2020
CARO IRMÃO REVOLUCIONÁRIO (os 10 mandamentos)

Espero que esta carta te encontre de boa saúde, a gozar a juventude em toda a sua plenitude, que nunca madures e que continues sempre cheio de ideais nobres de uma mudança que valha o seu nome, pois, meu caro, da forma como isto anda nesta banda, esta demanda de mudar o mundo está cada vez mais a ir para o fundo e eu acho, meu caro revolucionário, que neste caso, ao contrário do que proclamamos, o problema somos nós. Pois…
… Enchemos a cabeça de conceitos e preconceitos, e achamos que daqui somos os melhores sujeitos, os poucos com a visão clara do que é o mundo; e dizemos facundos que este mundo absurdo é imundo; que este conjunto de humanos moribundos no fundo não são mais que defuntos; e que nesta baia todos são da mesma laia, vistam calças ou vistam saia, escravos do capital, dominados e formatados pelo sistema social, a fazer um caminho trivial, vivendo com mordaças na andança de um Sísifo, sonhando com o idílico num pesadelo nítido, mas com os olhos húmidos e túmidos, empurrando montanhas, comprando banhas de cobra, por isso só lhes sobra a nhanha que transborda pela boca, pois nem uma foda decente este povo invoca; todos Sísifos estúpidos que vivem em falácias.
Até memorizamos os nomes dessas falácias, em latim, pois assim dá pra fazer mais chinfrim e mostrar que somos a nata beata desta casta de intelectuais, e mais, usamos os nomes dessas falácias para atirarmos com audácia, cagança e pujança na cara de todos os outros, porque os outros são uns grossos. Intelectuais?... os intelectuais somos nós, sim, podem ser os outros, mas só uns poucos e só um pouco, só na medida em que concordam connosco. Reclamamos todos nós, no alto da intelectualidade de sermos os donos da verdade, ou quando muito somos os amigos dos donos. E como o resto do mundo está enganado, cabe então a nós a tarefa de acordá-lo.
Caro irmão revolucionário, a revolução será desta vez, pois somos donos da sensatez, somos fiéis às nossas fés de que vamos desfazer à desfaçatez dessa gente incoerente sem viés decente. Será a revolução final, pois será a revolução mental, por isso, é preciso ensinar a esses tipos que querem fazer este serviço os 10 MANDAMENTOS para ser um revolucionário convicto.
Revolucionários! Em marcha!
ARTIGO PRIMEIRO: O revolucionário tem que ser porreiro. Então dá jeito teres uma camisola à altura, que manifeste a tua postura. Revolucionário que se preze dever ter uma camisa estampada com a cara de Che Guevara, comprada ali na Zara ou em qualquer outra banca… coitado do Che Guevera, que odiava o capitalismo e agora é vendido pelos tipos contra os quais lutava aos tipos que dizem que o amam... mas na falta de Che Guevara aceita-se um pano estampado com uma folha de canábis, pois revolucionário de verdade tem que puxar no haxix, pois isso é que é fixe, e tem de dizer que o mundo só é infeliz porque aqui o haxixe é tratado como se fosse um vício, por isso lá na Jamaica é que é o paraíso, pois pelo visto ali é só festa e dança e o sofrimento não existe.
ARTIGO SEGUNDO: O revolucionário tem de parecer imundo. Por isso, pára de te pentear, o tempo à frente do espelho é para desarranjar, só desta forma é que mostras que cagas nas normas. Usa dreadlocks, cortes loucos, penteados a Zé, camisa de Bob Marley, pano camuflado, gorros jamaicanos e charros, é claro. Se puderes, vai mais além e pára de te lavar, com essa atitude vais mostrar que estás ciente dos teus privilégios, aproveita esse ensejo de não banhar para mostrar que ao poupar água estás a ajudar as pobrezinhas das criancinhas na África que não têm água potável nem sequer para beber.
ARTIGO TERCEIRO: O revolucionário deve ser expresso. Tens que criar uma marca para a revolução, uma marca que abarca a tua preocupação, mesmo que seja uma coisa banal, por exemplo… hmmm… usa um chapéu como o de Amílcar Cabral, um boné caído à Pantera Negra, usa a cor preta, combina-a com verde, vermelho e amarelo. Não importa se esses cotas eram autênticos e originais e que todo o mundo topa que sem tento te esvais a fazer cosplay. Vai lá, vai! O teu nome original é ordinário para revolucionário, escolhe um nome de uma paleta africana (?), escreve-o com YpsYlon, dabliW e Kappa, porque essas letras são africanas(?), percebes a manha?... Não? Lê o MYA KOWTO e vais entender a piada. Como bom revolucionário, tens de vestir sempre um pano de batik, mesmo que esse pano seja originário de Indonésia, não tem problema, porque nesta cena, tudo o que não é branco privilegiado é então irmão amado, além do mais, esse pano é agora africano.
Revolucionários! Em marcha!
ARTIGO QUARTO: O revolucionário tem de odiar os bancos (e brancos, se der jeito, mesmo que sejas um, mesmo que só a fingir). Por isso não pára de mostrar a este povo ordinário que se mata a trabalhar para um mísero salário, de que o melhor a fazer é despedir-se, e que só ganha mal porque quer continuar nesse trabalho infernal que só alimenta o capital. Grita a plenos pulmões que odeias o capital, mas não faças o pecado de negar de herdar o dinheiro do papá… ou da mamã. Fala mal da burguesia, mas não largues a mordomia de ter o pilim todos os dias. Passa o tempo nos bares a fazer esgares, em conferências de copos, onde possas gritar como louco de como é um nojo que o nosso povo insosso não tenha nem um pouco para encher o bojo.
ARTIGO QUINTO: O revolucionário tem de ser distinto. O motivo mais lindo de um revolucionário é também fazer um trabalho de missionário. Lembras-te do Che Guevara, o homem que nunca parava, que andava de terra em terra atrás de uma boa guerra? Pois, não te peço esse preço, mas tens que mostrar o teu apreço indo para a África ajudar os pobres pretos, pois isso é o mais certo. Mas enquanto estás em aqui no centro, podes continuar cego às pessoas ao teu cerco, pois este esterco europeu não merece o teu zelo, aliás nem tem estilo ajudar esses matrapilhos, porque se fizeres fotos não ganhas muito gostos como os que ganhas quando fazes fotos com miúdos pretos. Louco, hein!, certo?
ARTIGO SEXTO: O revolucionário tem de ter um doutoramento. Não podes ser um pé-de-chinelo intelectual, tens de saber te movimentar pelas filosofias de quintal, conhecer os autores e citá-los tal e qual, mas ao mesmo tempo não te podes calar, tens que continuar a falar mal do sistema académico, enquanto preparas a tua tese respeitando o arquétipo para saíres dali doutorado e com mérito. Um bom revolucionário é aquele que é um dos três A: ou Académico, ou Artista ou Ativista, mas se fores um A3 ou um Triplo A, acredita, revolucionário mais chato que tu não há.
Revolucionários! Em marcha!
ARTIGO SÉTIMO: O revolucionário deve ser ético. Mas não deixes que isto de ser ético te torne caquético, porque se fores muito reto a tua revolução vai falhar. Tens de batalhar pelo teu politicamente correto, desde que não te afete, entretanto, não vás com jeito de olhar para os campos cinzentos, agarra-te apenas ao teu conceito, mesmo que se torne abjeto falar em nome da tua liberdade para asfixiar a liberdade de outras gentes.
ARTIGO OITAVO: O revolucionário deve defender os direitos humanos. Não tem necessariamente de ser todos os humanos, mas quanto mais fulanos tiveres debaixo dos teus braços ou cobrires com as tuas asas, melhor é para as tuas causas. Não faças pausas, continua, faz a luta, se faltarem inimigos, espeta o próprio umbigo; vá, continua, cria figuras, inventa brumas, ebraceja, donquixoteia, afinal os moinhos estão aí mesmo para isso. E se não te chegarem os humanos, há os direitos de animais, mas não queiras ser vegano, nem partilhar com os demais, pois todos os animais são iguais, mas um revolucionário é o mais igual dos animais.
ARTIGO NONO: O revolucionário dever mover o povo. Até aqui, nada de novo, pois esta sociedade move-se como uma roda, e todo grande conservador já foi um passado revolucionário, e todo o grande revolucionário é um futuro ditador. Por isso, tens de começar a treinar novas formas de despotismo, cria novos classismos, novos ismos, mesmo que cópias maquilhadas de ismos já antes urdidos, porque depois da revolução vais reclamar com vazão o direito de ser potestade, porque foi o teu ativismo que libertou a sociedade.
Revolucionários! Em marcha!
ARTIGO DÉCIMO: O revolucionário deve escrever textos. O revolucionário escreve longos textos para debitar as suas rimas e as suas críticas vazias, onde fala de problemas sociais, de outros tantos e muito mais; onde fala de revolucionários bem-intencionados que não fazem um caralho para ajudar os outros ao seu lado, e que só procuram estrelato usando os outros como planos; fala de revolucionários perdidos em questões existências e que não sabem mais o que procuram e então se entretêm a brincar a anti-isto e anti-aquilo, mas que não arredam um centímetro e mandam tudo para os brejos quando se mexem com os seus privilégios; fala que a sociedade está zumbificada, parecendo por vezes que ele conhece a estrada; fala, num discurso igual, que é preciso uma mudança radical para acabar com o capital, mas consumista também não vive sem comprar e nem quer abandonar o conforto de um lar, de uma casa e de uma cama, e no resto dos dias da semana, também anda com a manada. Mas a contragosto, diz ele, vê-se no meu rosto.
E... o revolucionário gosta de cenas alternativas, se é preto vai à música céltica, se é branca vai ao B'leza.
Revolucionários! Em marcha!
Caro irmão revolucionário, perdoa-me pelo comprimento deste texto, eu quis explorar a maior parte dos contextos, e perdi-me em subtextos, mas podes usar isto como um pretexto para protesto contra o que eu acabei de dizer. Eu queria mostrar-te algum caminho, mas confesso que também estou perdido e ando nisto muita vezes sem saber se é por raciocínio ou apenas por instinto… instinto de sobrevivência. Mas caro irmão revolucionário, não é só uma questão da resistência, mas também... da existência.
20 de maio de 2019
PENSAMENTOS INEXACTOS - CAP. XII
20 de janeiro de 2019
OS MESSÍASES: AMÍLCAR CABRAL E JESUS CRISTO - cronices crónicas
