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12 de novembro de 2022

COMO SER UM BOM COLONIALISTA

Há um tempo estive envolvido num filme (esperem por ele, será grande!). A cena que tínhamos que filmar não era nada simpática e mexia com os nervos como se não fosse ficção (aliás era ficcionar a realidade). Todos sabíamos que era uma coisa para um filme, mas todos, como boas pessoas que somos, não nos queríamos ver numa situação parecida. Eu, pelo menos, não me queria ver nisso, e já tinha vivido na realidade algo similar (talvez conte noutra altura).

A cena era sobre um branco num país africano que apresentava a um grupo de amigos (pretos "ocidentais') um serviçal preto africano como alguém bem amestrado. A pessoa que fazia de serviçal não era "ator" (eu também não sou, pelo menos não profissional, mas nem pensei nisso na altura), e o papel que fazia era similar a um dos seus muitos papéis na vida real: cozinhar e servir a mesa. Fez-me isso confusão, porque parecia que ele não saía do papel e tive dificuldade, eu (falando de mim), em separar os tempos entre a ficção e a realidade. Outras pessoas também se sentiam como eu, apesar do realizador nos ter preparado para a cena.

No fim, lá tivemos uma reunião com o realizador sobre a situação e sobre o incómodo em ver essa pessoa a fazer aquela cena, pelo que muitas cenas dele foram alteradas e história teve de ser suavizada, e ele teve menos participação do que o esperado. E estávamos sempre a agradecê-lo, ao "ator/serviçal", sempre que nos servia, porque nos sentíamos incomodados e queríamos mostrar que era "nosso igual", nós, pretos europeus.

Dias mais tarde, em Bissau, estava num restaurante e uma pessoa veio servir-me, disse-lhe o obrigado cortês de praxe, com direito a sorriso e tudo, e lá continuei a conversa com a pessoa com a qual estava, não senti nenhum incómodo por estar a ser servido, afinal era o "papel" dela, era um trabalho dela naquela altura, não era o que a definia. Então e o "ator/serviçal"?

Bateu-me naquele momento : "Que paternalista do caralho sou eu! Que colonialista".

Não nego que não haja exploração da imagem de pessoas, pretas africanas da África, principalmente (as redes sociais estão cheias disso), mas não era esse o caso, porque o "ator/serviçal" estava a ser pago para isso e tinha-lhe sido explicado tudo sobre o filme. O que me incomodava mesmo? O que me incomodava mesmo? O que me incomodava mesmo?

Achava-me iluminado e protetor da "ignorância" de outrem contra exploração? O que me incomodava mesmo? Achava que a dita pessoa não era inteligente o suficiente para saber o que estava a acontecer a sua volta? O que me incomodava mesmo?

O meu incómodo era porque achava que o "ator/serviçal" não estava iniciado nos caminhos do "pós-des-de-anti-colonialismo" e que estava a fazer esse papel porque não tinha escolha. Achava que ele não tinha a noção completa da situação, mas ele só não tinha "a minha" noção das coisas, tinha a dele, a sua própria perspectiva. E a verdade era que ele estava a divertir-se imenso com aquela merda, estava a gostar de participar no filme. Estava a "atuar", fazendo uma coisa que sabia fazer bem e que não se importava de fazer. E de repente vê-se numa reunião com todos a decidirem sobre a sua participação, porque "precisavamos de o proteger e à nossa consciência".

É isso ser colonialista. É pensar que tenho mais visão que o outro, que conheço melhor os meandros da exploração (ou do desenvolvimento) e por isso devo desenhar eu o caminho do outro. Mas se fizer tudo com estilo e usar termos como liberdade (de expressão, principalmente), democracia, direitos humanos, anti-isto-e-anti-aquilo, creio que serei um "bom colonialista", desde que a luta seja para não colocar o meu próprio conforto em causa, como no caso descrito. Chifres na cabeça de cavalo.

Isso lembra-me uma vez que uma conhecida ativista negra em Lisboa me mandou e a meus irmãos falarmos português, porque era desrespeitoso falar kriol numa mesa onde havia pessoas que não falavam a língua.

Na luta anti-colonial, é tão, mas tão, mas muito tão fácil ser o colonialista.

16 de maio de 2022

CARO AMIGO POLIAMORISTA (DA ETICIZAÇÃO)

Caro amigo poliamorista,

Espero que esta missiva te encontre de boa com a vida e na crista da onda, onde andas como especialista a fazer revista na tua boa lista de poliamoristas e outras em vista de te fazerem festinhas. A sério desejo mesmo que não estejas num ermo, a sentires-te enfermo, mas a curtir amores em cheio com o sucesso de envolvimentos plenos.

Caro amigo poliamorista, nós, seres humanos, somos todos falhos e metemo-nos em trabalhos, porque nunca queremos as mesmas coisas, cada um de nós poisa os seus ideais nas suas próprias notas, e é por isso que todos criamos regras e guias para as nossas vidas ou escolhemos seguir as linhas que o nosso indica como onde se respira mais sentido nesta via. Todavia, se algumas dessas regras parecem menos cegas ou são mesmo menos bestas que outras, não significa que não possam ser escrotas ou que sejam perfeitas e feitas para além da crítica. Cri e vi cá que o poliamorismo pode ser boa prática, sendo genérico, é certo; mas lá porque dizemos, às vezes histéricos, que o poliamorismo é "consentimento ético", não quer dizer que seja assim mesmo, e nem que o "consentimento ético" seja um exclusivo do poliamorismo.

É muito comum, sem freio nenhum, ver-te a chamar aos "monogâmicos" de traidores, quase como se fossem seres inferiores, que não sabem gerir os ciúmes e as dores e os ardores. E para provar quão errados são os monogâmicos, dizes que a monogamia é uma fantasia, uma construção social, logo está mal por não ser natural. Também dizes que a monogamia é da autoria do capitalismo, mas... hey... a monogamia é bem anterior ao capitalismo, pelo menos o capitalismo formal que conhecemos hoje, do qual até o diabo foge tomado de medo, e ao qual todos apontamos o dedo. E, caro amigo, o capitalismo também usa o poliamorismo, usa as não-monogamias e com todas as mordomias usa qualquer movimento capaz de aglutinamentos... o capitalismo não descura nichos, dá e tira com capricho e trata a todos como bichos.

Enfim... dizes assim e com tanta certeza: "Os animais na natureza não são monogâmicos, logo o ser humano não é feito para ser monogâmico." Bem concordo contigo, caro amigo, quando dizes que os animais não são monogâmicos...mas nem são poligâmicos... muito menos poliamoristas... todavia há espécies que só têm um parceiro e há os porreiros que não precisam de sequer do sexo e reproduzem por si e consigo mesmos, mostrando que a função do sexo talvez não seja meramente...Atenção, não estou com essa menção a dizer que a copulação serve só para reprodução, aliás nem define a reprodução, uma vez que, como acabei de dizer, há espécies que reproduzem sem foder... Largando este papo para outro espaço vou retomando: nem o ser humano é monogâmico ou poligâmico ou poliamorista, ele pode praticar tudo isso da lista, mas como espécie não o caracteriza. O ser humano não é um ser orientado apenas pelas básicas lógicas biológicas, mas faz as suas próprias, psicológicas e sociológicas. Destarte reduzir o ser humano a apenas uma camada: a animal, é negar que o pensamento e a organização social fazem parte da nossa evolução e nos ajuda com resoluções, e que foi o que nos ajudou a sobreviver a sérios novelos de desvelos, e paradoxalmente, a criar o antropoceno.

Nós deixamos de ser meramente "natural", quando começamos a criar, é só observar. Usamos óculos para melhorar os olhos, fones para ouvir melhor, adoçantes para o sabor, pacemaker para fazer bater o coração, e injeção e inoculação e vacinas para estender a vida, resistindo mais às adversidades biológicas. Transformamos e transformamos. Por exemplo, os dentes que que antes arreganhávamos para assustarmos os outros, hoje com novos modos arreganhamo-los como engodos, em sorrisos rasgados, para criar contactos. Ou por exemplo, hoje falamos tanto mesmo do problemático que é a masculinidade tóxica, da qual a gente não se quer próxima, filha da cultura do macho-alfa, e da qual se quer dar um basta, mas a natureza está cheia de exemplos de machos-alfa, o que, todavia, não nos faz falta, razão pela qual a ideia não se salva, pois não queremos descer a escarpa a louvar a cultura alfa. Em resumo: somos também construtos sociais e não mais apenas animais tintos com instintos não distintos.

Repito e remarco, a monogamia é tanto uma construção social quanto as não-monogamias. E de forma fria, também o amor é uma construção social, porque a noção do amor ou da sua demonstração também varia de sociedade para sociedade e é apreendido socialmente... Mas lá porque algo é uma construção social, não significa que seja do mal. "Não matarás! Não roubarás! Não foderás o teu vizinho... a não ser que ele peça com carinho!", são construções sociais, mas ajudam a sociedade a funcionar de forma mais capaz. 

Entendes caro amigo?, não obstante ser difundido como padrão e destruído formas de relação e de ligação, o conceito da monogamia não é problema por si mesmo e nem devia. Só quando os seus cônegos e crentes gastam fôlego e tempo e agem de modo cego a atacar as outras formas de relação, aí sim, entra a questão da problematização.

Hoje a monogamia é norma (regra, entenda-se)... as normas podem ajudar até deixarem de fazer sentido, até serem casos perdidos, ou começarem a causar mais mal do que bem, mas todos vivemos com normas, tanto que às vezes a forma como comportas com a questão do poliamor parece que não queres dar respostas, mas substituir uma norma pela outra, que ainda não tem a mesma expressão política e expressão opressora. Sim, falo de substituição e de opressão e não de alteridade, porque da forma como te vejo a policiar a poliamoridade parece-me que não queres deixar espaços para a liberdade de amar, embora seja o que andas a advogar. Caro amigo poliamorista, ama, deixa amar, deixe-se amar, sinta o amor, lambe-lhe a cor, toque-lhe o odor, olha o seu som, cheira-lhe a textura, sem gráficos complicados a qualificar os envolvimentos... aliás, não é o que pedimos aos monogamistas?

Caro amigo poliamorista, falas tanto do "consentimento etico", mas há muitas formas de relacionamentos que são éticas, como já tinha dito, e não é só o poliamorismo. A monogamia pode ser ética, a poligamia também pode ser ética, embora esteja a sua mais comum forma, a poliginia, fundamentada no poder macho (atemo-nos ao mundo humano, para evitar a cena dos alfas, embora o que não nos falta seja animalidade).

Sobre o consentimento ético, na Guiné-Bissau, a título de exemplo, é bastante comum a poliginia... o contrário não se verifica... todavia, apesar disso muitas vezes são questões acordadas, muitas vezes propostadas pela mulher, porque precisa de ajuda nos campos e na casa e no poço e nos trabalhos e nos trampos diários e no etecétera, enquanto o marido se senta o dia todo sozinho a sacudir moscas com um rabo de vaca ou a coçar os testículos numa outra tabanca. Claro que as suas circunstâncias é que as levam a isso, e se conhecessem ou vivessem noutra realidade, quereriam outra coisa com maior equidade. Apesar de tudo, algumas, dentro dessa sua prisão e da sua limitação, escolhem e consentem.

Anos antes do capitalismo pintar as sociedades guineenses, a poligamia (poliginia) já existia, e em uma dessas sociedades fala-se da existência outrora da poliandria, mas da qual nem sombra se vê hoje em dia, provavelmente resultado das evangelizações ou de outras razões. Quanto às sociedades poligínicas, o número das esposas dependia dos posses do homem, quanto mais campos e mais gados, mais esposas e mais filhos (mãos de obra). O capitalismo ainda não tinha ali chegado, a economia era centrada no sector primário e configurava e influenciava as relações ditas amorosas. Hoje ainda é a mesma coisa em todo o mundo, porque no fundo só a economia mudou, a relação do poder continuou.

Falei disto para dizer que nem a monogamia nem a poligamia são frutos imediatos do capitalismo, ou pelo menos do capitalismo formal moderno, embora, sim, sejam usados pelo capitalismo (tal e qual o poliamoriasmo). Há uma sociedade guineense que é poligínica, mas que tem mecanismos para a mulher vazar as suas frustrações com outro indivíduo masculino que lhe seja querido, não precisa do consentimento do marido, o marido pode até sentir-se traído, mas não há castigo, não há punição. E essa noção é a razão por que pode haver "consentimento" na "traição". E a chamada "traição", se calhar, não é de todo não-ético. Pessoas dormem com outras e "traem" por diferentes razões a que razão pode conhecer ou talvez não; algumas traições são necessárias pelas suas próprias razões, pode ser por sobrevivência mental ou material ou emocional ou social ou seja qual for, é preciso sempre contextualizar... a não ser que a ideia da ética seja mesmo uma forma de dogma. "Não matarás" é ético com certeza... mas... e se for em legítima defesa?

Caro amigo poliamorista, tenha isto em perspetiva, não somos e nem percebemos mais ou melhor do amor do que monoamoristas, só por sermos ou por nos dizermos poliamoristas, apenas temos um diferente entendimento. Aliás o poliamorismo pode ser tão tóxico quanto o monogamismo, porque a questão, caro amigo, não é a prática, mas quem a pratica e a forma como a ela se dedica.

Sob a capa do poliamorismo, também abrimos abismos e também temos predadores sexuais, stalkers (reais e virtuais); também passio-dependentes que usam outras gentes para a satisfação pungente dos seus vícios; 
temos visto gente com medo de compromisso que por isso transita entre corações sofridos para se abster de se comprometer com alguém, magoando antes com medo do distante; temos machos a defender a política de pénis único, com argumentos túrgidos, ciumentos como tudo, a controlar e a abusar de mulheres;  temos pessoas traumatizadas a traumatizar outras almas; temos pessoas mentirosas, traidoras e manipuladoras; temos pessoas em dezenas de relações (superficiais) sem a consideração que o amor e a afeição exigem tempo e cuidado, e que o nosso coração pode ser uma imensidão, mas o nosso tempo não (não sei o que é o amor, mas sei o que para mim não é amor); temos pessoas a usarem a questão das relações como se de uma religião se tratasse, como se de um produto se tratasse, capitalizando dela, virando gurus de tudo e mais alguma coisas e manipulando almas confusas que abismos cruzam... enfim, resumo, por não poder elencar tudo, pode te parecer absurdo, repito, mas não é sobre a prática em si, mas sobre quem a pratica. E ser poliamorista não é ser anticapitalista, é só ser poliamorista.

Usar o poliamor como uma bandeira política é parte da vida, quando uma escolha consentida e objetiva. Mas quando o poliamorismo se revolve num ativismo extremo, que quer roubar os remos e que vemos a chamar a todos os monogâmicos de cegos, de imbecis e de carneirada afogada na traição e na ilusão, que não faz mais senão traição (como se a limitação da traição seja sexual ou como se a traição seja um exclusivo do monoamorismo), aí fica difícil acreditar que o teu poliamorismo não seja só clubismo. Até entendo que recém-convertidos ao poliamorismo sejam irritantes, porque como parece que descobriram uma novas verdades,  mas antes distantes, 
sentem-se arrogantes e tornam-se mais chatos que um recém-vegano ou um recém-ateu iniciado. Mas mais chato mesmo é um récem-ateu e recém-vegano recém-convertido ao poliamorismo. Por isso, há quem te supere, caro amigo.

Caro amigo poliamorista, o consentimento, esse vem em diferentes pacotes, com diversas texturas e diversos sabores e diversos toques e diversos odores, e, olha lá, embora se creia universal, a ética, se calhar, depende de contextos. Mas o que é certo certo certo certo mesmo é que o poliamor tem tanto peso e tanto problema quanto o monoamor, não fosse o poliamor uma prática desenvolvida por seres não perfeitos e tão insatisfeitos e inquietos como os humanos. Por isso, meu caro, às vezes, o mais claro é relaxarmos apenas, aliviar as penas, abrir as pernas (ou outras cenas) e vivermos a nossa verdade, protegendo-a, é claro, de ataques bárbaros, mas sem andarmos despertos e soberbos a emular os atacantes num jogo fedorento e, com asco, nos colocando no lugar do carrasco. 

A não-monogamia não é por si só ética. Ponto.




20 de dezembro de 2021

MANIFESTO DEPRIMENTE DO MOVIMENTO DEPRESSIVO

Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos do mundo inteiro, unamo-nos.
Juntos somos mais fortes e conquistaremos este monte de merda desta sociedade mercantil.
Unamo-nos contra os médicos e contra os psiquiatras e contra as farmacêuticas e, principalmente, contra os gurus e os vigaristas de auto-ajuda que se escondem atrás da capa da depressofobia só para nos entupir de pílulas e conceitos pífios de felicidade, yogados e ahuyascados.
Quem precisa de felicidade? Pfffft!
Sem chacota, mas felicidade no fim das contas é coisa para fracotes. Nós somos fortes, com força à fartote, por isso o nosso mote é navegar neste bote, culpando ou não a sorte.
Navegamos pela vida deprimidos, de peito enchido porque temos costas largas, temos costas fortes e aguentamos a pressão, por isso estamos deprimidos, mas não explodidos. Gente sem vértebra não se deprime, gente sem vértebra se comprime, pois vive no medo e besta, tira os dedos da testa e se suprime perante as regras patetas que a oprime. Mas nós, naaaaaaão, nós ficamos deprimidos, porque tentamos dar sentido a este mundo regido por regras ridículas.
Não dá para ser feliz sem ser egoísta, numa falsa conquista dos prazeres da vida; não dá pra ser feliz sem se ser hedonista e sugar a vida sem amanhã à vista e fazer vista grossa a toda a fossa à nossa volta, e praticar o culto antigo de venerar o próprio umbigo.

Felicidade, pfffft, isso é coisa pra fracotes, nós, deprimidos, nós somos fortes.
Estão a tentar enganar-nos, estão a tentar afundar-nos numa miséria séria e fétida para passarmos por essa vida etérea a sentirmos pena da nossa própria cena, mas é bem claro neste cenário quem é que envenena a quem.
Pensem bem, essa coisa de pensamento positivo, pfffft, é coisa de mente pequena. É claro que estar triste o tempo todo é de um modo um problema, mas estar a sorrir o tempo todo é de todo um problema.

Tanto o riso como o choro lavam a alma, portanto neguemos essa barca onde gente se enfarta nos remos a todos os termos a tentar rejeitar os sentimentos que temos e a chamá-los de prejudiciais.
Há quem ria mais, há quem chore mais, há quem seja capaz de transformar um sentimento num outro de outro tento, há quem veja tristeza na alegria, há quem veja alegria na tristeza, há quem suje a pureza, há quem se refastele com sageza no sujo.
Ninguém está feliz, andam todos por aí a empinar o nariz numa atitude que diz que são os maiorais no sorrir, mas, é, camaradas, tudo a fingir. Tudo a fingir.
Nós, nós temos o dever de manifestar a propriedade da nossa depressão, e com isso acordar o resto da população estrangulada, a quem é empurrada a obrigação de ser feliz.
Pensamentos positivos a tempo inteiro é doentio. A tristeza faz parte da vida, faz parte do balanço, todas as emoções fazem parte da vida. Não devemos é deixar uma dominar as restantes, mas agora quando todos nos dizem que somos errados porque estamos com depressão, porra, isso é opressão.
Deprimidos de todos o mundo, unamo-nos, porque só um idiota, sem capacidade de reflexão e de análise, passa por esta vida, neste mundo demente de fundo deprimente, sem se sentir deprimido.
Quando nos sentirmos sufocados e sem saída, só temos que ver que nesta vida há tanta e muita gente como nós e em cuja voz questões como as nossas são refletidas. Muita coisa assim muda, pois se a nossa alma estiver muda, só temos de pedir ajuda, pois há muitos deprimidos à escuta. Mas livros de auto-ajuda... não, nada, só ajudam a quem os escreve, o teu bolso fica leve, mas a tua alma ainda ferve. Eles só estão interessados em explorar a tua fragilidade, não te querem e nem podem ajudar de verdade, pois, senão, com tantos livros de auto-ajuda, teríamos menos gente deprimida e mais gente autoconsciente, menos gente iludida e menos gente a dizer lérias para ganhar dinheiro com a nossa miséria.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.


4 de novembro de 2021

NÃO É SOBRE NÓS

Recentemente participei num grupo de discussão, chamado campo de treino anticolonial, antirracista e antitransfóbico, no sentido de aprender com pessoas que desenvolvem essas práticas. Foi uma aprendizagem intensa que me levou a desconstruções, reconstruções e consolidações.

Depois de muitas partilhas e exercícios, fizemos um balanço do processo e, naturalmente, algumas fragilidades apareceram e choques e conflitos, porque é o mais óbvio quando se juntam pessoas de diferentes sensibilidades e experiências e vivências para discutirem assuntos sérios. Algures durante o balanço, apontamos dedos uns aos outros, porque alguém falhou neste ponto, alguém ofendeu naquele, e durante esses momentos todos, toda a gente a quem o dedo foi apontado, defendeu-se com algo como isto: “Peço desculpas se ofendi a alguém, isto é um processo e estou em aprendizagem”.

Foi-me apontado dedo porque eu disse que não sabia usar “linguagem neutra” e eu pensei, “deus!, durante toda a minha vida aprendi a falar dentro de determinados códigos, não é fácil para mim mudar de repente.  Não tenho intenção de ofender a ninguém com uso de pronomes generizados, e quando os uso não o faço nem para ofender, nem para agradar.” Estou em aprendizagem.

Eu achei que não era justo que alguém me apontasse dedo, só porque eu não sei usar linguagem neutra e estou certo, certérrimo, super certo, de que o não a saber usar não é para ofender a ninguém, e estou certo que durante muitos anos convivi com uma linguagem que não neutraliza e que é difícil mudar de um momento para outro, e que os meus “lapsos” de linguagem não eram direcionados a ninguém.  Não era justo para mim… pois, não era! Mas e quando faço eu o mesmo?

Extrapolei então o pensamento para além de mim mesmo. Como a questão da linguagem neutra não me afecta, pensei no racismo, e pensei em todas as pessoas que usam expressões racistas na linguagem. Tirando o An_desVentura e algumas outras pessoas, uma penca delas diz coisas racistas porque faz parte da sua normalidade, mas sem a intenção do ser. 

Não posso… querzer, posso, mas não devo levantar e apontar o dedo e chamar de racista a qualquer um que diga coisas como, por exemplo, “trabalhei como um preto”, ou pensar que o disse para me ofender a mim. Quando muito, se achar a linguagem problemática, devo ou posso tentar apontar isso à pessoa, sem fazer com que seja SOBRE MIM.

Algumas pessoas falam como falam porque não sabem diferente e não é fácil depois de andarmos anos a tentar aperfeiçoar um código de linguagem, ao alguém nos dizer que é errado mudarmos imediatamente, sem confrontos, sem sequelas e sem deslizes (deus!, há muita gente ainda contra o acordo ortográfico, que é mais inócuo e mais simples do que isto). Há todo um processo de luto por que temos que passar sempre que temos de mudar a nossa forma de pensar (negação, raiva, negociação, depressão e aceitação), por isso é natural encontrarmos e/ou fazermos resistências de opinião sempre.  

Se mesmo nós, que participamos no campo de treino e que temos pessoas a educar-nos e que nos relacionamos (e debatemos) constantemente com estas questões, erramos não intencionalmente, imaginem, por exemplo, alguém de sessenta anos sem um único amigo preto. Uma pessoa em Portugal que não tenha pretos ou não-brancos no seu círculo de convívio dificilmente problematizará questões raciais.

Enfim, resumo o assunto em: “as coisas podem estar relacionadas connosco, mas não é necessariamente sobre nós, a não ser que nos sejam diretamente direcionadas”. Sim, isso, NÃO É SOBRE NÓS.

5 de maio de 2021

A MÚSICA TAMBÉM PODE SER PROBLEMA

Buba. 2019. 1 de Maio. Praia. Um grupo de jovens sentados, a beber e a conversar, outros a dançar. De repente a música "larga nha kodjon" e os que estavam sentados, rapazes e raparigas, gritaram todos: uaaaaaaaa, e lá se meteram a dançar e a cantar com a música, todos, até crianças.

Bissau. 2021. Abril. Cuntum. Tocava música lá fora. De repente: "Bo rastam, bo lebam..." e ouvi: uaaaaaaaa, e toda a gente a cantar e, suponho, a dançar. A música é fixe, dou-lhe isso, mas a letra é horrível. Claramente escrito por um homem.

Há meses que tenho visto a campanha "Mindjer i ka Tambur" a tentar sensibilizar as pessoas para assuntos de violência contra as mulheres. Lidamos constantemente com violências do tipo que a música invoca, onde mulheres são arrastadas e a suas perucas lhes são retiradas e ela são violadas, tratadas como carne e não pessoas. Essa música reforça a prática.

Se fosse uma mulher a escrever e a cantar a música... bem, continuaria a ser problemático, mas menos... sabem?, a cada uma a sua preferência sexual.

É assim, já me disseram, é só uma música, é brincadeira. Não, não é brincadeira. Não digo que a intenção consciente do autor seja apelar à violação, mas é isso que a música faz.

As piadas, os estereótipos, entre outros ditos problemáticos reforçam as ideias, porque nunca pensamos que são perigosos até que se tornam. É como um bebé que quando insulta os outros nos rimos da sua inocência, até que nos insulta a nós e já não achamos graça e depois notamos que ele ao crescer normalizou o insulto e depois fica difícil corrigi-lo. Kana seku...

Não brinquemos com a violência, ou com coisas que destroem a vida de outras pessoas, ou com coisas que diariamente causam vítimas.

WJ numa música, "Nha Carta", romantiza a violência, diz que bate na sua fofa, dá-lhe rasteiradas e deixa-a fungulida. Isso não é amor, é só violência e sentimento de posse.

Maio Copé canta: "kusta n' bafa mindjer, ma n' ten di toma noiba". Não, se bafares uma mulher é para seres preso, não é para casares com a pessoa que violaste. Ahdeuss! Então é assim? Isso reduz a mulher a um objeto conquistável enfiando-se nele o pénis.

Vi mulheres a dançar e a cantar "bo rastam, bo lebam", e pensei se não deviam ficar preocupadas, falei com uma amiga e ela respondeu: "não é sobre mim". É verdade, não era sobre ela.

Lembro-me de uma música de Tino Trimó que dizia "si dinheru sta ba na po, mindjeris na kasa ku santchu", ideia que é ainda veiculada na Guiné. Até o meu irmão mais novo de 20 anos que não tope nem "koko na kadera" (não tenho problemas com palavrões), também diz que as raparigas de Bissau só querem dinheiro. E ele tem muitas namoradas e nenhum dinheiro. Se as mulheres só quisessem dinheiro, mais de 80% dos guineenses seriam virgens. E os jovens então, uiiiiiiii... Na altura dessa música do Tino, lembro-me de uma tia responder, quando alguém perguntou por que as mulheres gostavam do Tino se ele falava mal delas: "Ele canta bem [e canta e como!] e é sobre outras mulheres, eu não sou assim".

É sempre sobre outras mulheres, mas quando o estereótipo pega, nenhuma mulher fica de fora, e quando o mal se espalha, todas as mulheres sofrem, e com elas a sociedade.

Ussumane Grifom escreveu um artigo sobre este tema de músicas problemáticas e relacionou a causa com a falta da educação formal (escolas). Eis a coisa, precisamos de nos reeducarmos formal e informalmente, e discutirmos cada vez mais estes assuntos.

 


12 de março de 2021

LEI DE KON: A RAIZ DA VIOLÊNCIA (cronices crónicas)

NÃO, NÃO e NÃO! NÃO FOI ASSIM. VIOLÊNCIA NÃO É EDUCAÇÃO!

Já me cruzei com esta imagem (e outras similares) em vários lugares na internet, com pessoas a enaltecerem isto como boa educação. Mas olhemos atento para a imagem e leiamos a violência que emana.

Violência não é educação, nunca foi e nunca será. Se violência fosse educação, por causa daquilo que passamos na mão dos tugas teríamos sido dos povos mais educados do mundo. Essa fala de que “apenas o sute endireita o guineense” é mais uma daquelas estupidezes que repetimos sem sequer pensar.

O sute nunca endireitou ninguém, o sute nunca educou ninguém. O que o sute faz é criar submissão e medo, não respeito, medo. O sute faz as pessoas dobrarem-se ante o medo e não aceitarem erguidas a razão. E o sute é um dos maiores problemas da nossa sociedade guineense, senão o maior.

Somos educados com mantampa. Mantampeados e tcherninhados por dá cá aquela palha, desde crianças é-nos ensinada a “LEI DE KON”: o kon maior bate no kon menor, e assim progressivamente. Mesmo entre os kons duvido que essa lei funcione, mas nós não somos nenhuns macacos, somos humanos, com maior capacidade de reflexão e de pensamento… bem, olhando para o estado do mundo, tenho dúvidas sobre esta minha afirmação… ohhhhhhkay… temos alegadamente maior capacidade de reflexão, portanto, já era mais que tempo para começarmos a reformular determinados conceitos que claramente não funcionam.

A violência na qual somos educados, que na sua maior parte é gratuita e desproporcional, não é nada mais do que a incapacidade dos nossos educadores lidarem com a sua frustração. Pessoas mantampeiam crianças que estão a chorar, ao mesmo tempo que dizem “para de chorar, para!, cala a boca!”, mas como elas vão parar de chorar se estão a bater nelas? Já vi educadores a baterem em crianças bem pequenas, porque não querem comer ou por outra razão qualquer e julgam que estão a educar. Mas, vamulá, se mesmo a conversar com essas crianças será difícil fazer-lhes entender o porquê de não fazer certas coisas, muito menos elas irão entender o problema do que fizeram batendo apenas nelas.

Algumas pessoas já me disseram, quando discutimos este assunto, “eu concordo com mantampas, a mim foi o sute que me endireitou” e eu pergunto-lhes sempre: “mas o que estava errado antes?”

Eu, por exemplo, quando ia brincar com os colegas e voltava depois da hora do almoço, levava tareia lá em casa. Sim, evitava chegar depois do almoço para não levar tareia. Mas se calhar, proibirem-me de comer podia ter sido mais eficiente, eu sei lá (comia na casa dos amigos). A cena é que, como sabia que já tinha sute à espera, quando a hora do almoço, que variava muito, me apanhava na rua com os amigos, eu já só voltava à hora do jantar, porque sabia que a tareia era inevitável… ao menos não interrompia as minhas brincadeiras e brincava muito antes. (Depois fazia todo aquele ritual de pedrinhas para escapar do sute: uma debaixo da língua para colocar no pote de água, outra para atirar pelas costas quando estava perto da casa sem olhar para trás e coisa assim… que muitas vezes resultava).

A questão da violência não é específica apenas aos educadores, mas a toda a nossa sociedade que vive sob a “LEI DE KON”. Os mais velhos (mais fortes) batem nos mais novos (mais fracos) sem precisarem de outra razão fora de porque podem, na discarna mesmo. Um miúdo parado no meio do caminho pode levar a coquida de um adulto só porque está parado e ele quer passar, mesmo que o adulto pudesse desviar-se facilmente. O que faz o miúdo que foi coquido? Vai à procura de um outro miúdo mais fraco para, por sua vez, coquir também. E de repente vemos um miúdo de dois anos a riquitir um bebé de dois meses, e dizemos que não entendemos a razão do beliscão? É agressão transferida.

Os pais são agredidos pelos patrões, que são agredidos pelo Estado, e frustrados, sem poder dar respostas, vão bater (na mulher, no marido”?”) e nos filhos, e os filhos nos irmãozinhos, e então a “LEI DE KON” é padronizada dessa forma.

Professores batem nos alunos, com palmatórias de madeira, mantampa de serra, cinto, chicote, porque estes confundiram o P com R ou com o B. Eu fui obrigado várias vezes, quando aluno de primária, a ficar de joelhos sobre cascas-de-karus ou pedrinhas, não porque não sabia as lições, mas porque chupava os meus dedos, e diziam que eu já tinha idade mais que suficiente para deixar de chupar os dedos (chupei-os até aos nove, e só parei porque a certa atura deixou de saber bem, nenhum sute me impediu de os chupar)… os meus dedos… os meus próprios dedos… vá, se andasse a chupar os dedos de outras pessoa até poderia entender, e tenho a certeza de que me matariam se ao invés dos dedos eu andasse a chupar o pé… eeeeeeeepá.

Somos educados no sute, na “LEI DE KON”, e não conhecemos outra coisa e aceitamos isso como parte nuclear da educação, e aceitamos a hierarquia violenta inerente dessas práticas. Por isso, sempre que nos tornamos poderosos, oprimimos os outros e achamo-nos no direito de o fazer: filhos que oprimem os próprios pais quando envelhecem; polícias e militares que não sabem o seu papel e pensam que é bater nas pessoas; o “n’ na mostrau bu lugar”; governantes que acham que podem mandar prender e bater nos outros porque têm esse poder (que não consta em nenhumas das nossas leis escritas); e o povo que aceita tranquilamente o exercício desse tipo de poder (não só violência física), porque “eeeeeeeeee, pa pa pa pa pa, abo bu na kirtika nan sefi!”.

Não, violência não é educação. A “LEI DE KON” é estúpida e vazia. Se o sute fosse educação teríamos o melhor povo de mundo e o Prémio Nobel da Educação iria para.

 

7 de março de 2021

CARO AMIGO BRANCO (DA NEGAÇÃO)

Caro amigo branco,


Quando me queixo do racismo, não o faço para ser visto, mas é a minha alma que eu dispo, portanto é errado achares que és o alvo de tudo o que eu reclamo, porque tu és um bacano, meu mano, tu és tão és fixe e tão brando, que se matares uma mosca é porque a gaja fez uma coisa tosca.

Caro amigo, tu sentes-te aflito quando eu falo do racismo, e dizes com afinco que o racismo é um mito, blá blá blá isto, blá blá blá aquilo, que somos todos filhos da mesma raça... Pois, mas és tu quem passa, mesmo numa discoteca africana, e eu é que sou barrado à entrada. 

Se achas desconfortável para ti eu falar do racismo, imagina como me sinto, eu que vivo à sombra disso. 

Tu dizes que não vês cor, e eu digo, por favor, vai consultar um doutor, porque há algo de errado com a tua retina.

Caro amigo branco, quando eu falo que Portugal é racista, não estou a dizer que tu és racista, nem que todos os portugueses são racistas, mas estou a dizer que o sistema é racista e está construído sobre princípios racistas e de supremacia divisionista.

Vou dar-te um exemplo: o grande templo da história de Portugal é chamado de Descobrimentos, fala de um tempo de homens valentes que dobraram o mar heroicamente e saíram do continente para levar civilização para outras gentes, foram para outros mundos, através do mar profundo para levar a glória de Portugal para limpar povos imundos. Aliás, o hino nacional de Portugal diz: Herois do mar, nobre povo, nação valente e imortal. Entendes agora? 

Quando a postura oficial de Portugal é agigantar os assaltos do passado e tomá-los ainda hoje, apesar dos factos, não como atos feios, mas em grandes devaneios como feitos perfeitos de um povo eleito, então… Portugal é racista.

Quando te ensinavam na escola que pertences a um povo superior, que levou civilização a povos de cor, que os educou e que os tirou do estado selvagem e os levou para outras paragens e os vendeu em outras paisagens, e que os trouxe para este lado do oceano como escravos, diz-me: o que te vinha ao caco quando tiravas os olhos do quadro e olhavas para o teu colega preto sentado ao teu lado? Não achavas que a tua categoria não podia ser vista na mesma linha com a categoria de um limpa-pias cuja família foi um dia mera mercadoria? 

Tu foste doutrinado para te sentires superior a ele, tu foste doutrinado para sentires que este país te pertence, porque no passado não havia cá pretos. Mas, caro amigo branco, é aí que está o engano, porque mouros ou muçulmanos também já dominaram este pedaço de terra. Percebes agora a fraqueza do delírio do orgulho da tua herança genética que tu chamas de perfeita, só porque não tens uma pele preta?

Caro amigo branco, sabes o que é que acontece quando se junta na mesma gruta políticos racistas, direita extremista, jornalistas racistas, cientistas racistas, brancos com problemas de vista que acham que movimentos antirracistas promovem cultura marxista (sei lá que merda é isto), porque a cor não existe ou porque o racismo não existe? Quando se mistura tudo isto na mesma lista, abre-se a temporada de caça aos pretos, como que aconteceu há pouco tempo e como o que se incentiva neste momento nos comentários ignaros de gente demente na Intenet. 

E é disso que eu tenho medo. E também tenho medo de ti, meu caro amigo branco, cujo negacionismo promove o racismo, e que usas uma peneira de maneira a tapar a vista com vista a não ver como Portugal é racista.

Caro branco, se não fodes, então sai de cima.


17 de janeiro de 2021

UMA QUESTÃO DE... EMPATIA

Sentados em Bissau, a tomar umas cervejas enquanto esperávamos pelo jantar num restaurante nada barato para o padrão de vida guineense, um amigo português (ainda não era amigo na altura) começou a falar da precariedade. E eu, no alto da minha indignação, achei que ele não devia falar de precariedade, sendo que era um privilegiado e que iria gastar nesse jantar o que muitas famílias na Guiné gastariam numa semana.

Mais tarde, só muito mais tarde, notei que, na verdade, eu nem sequer estava disposto a ouvi-lo ou a entendê-lo, só estava concentrado nas suas palavras e na minha arrogância. Eu andava frustrado com a precariedade que tinha visto na Guiné, na qual vivia parte da minha própria família, e estava tão imerso nisso que me esqueci da precariedade que existe em Portugal e na qual vive outra parte da minha família, e com a qual ele se identifica.
Para piorar, a precariedade da qual o amigo falava também me abarcava, porque temos o mesmo patrão e desenvolvemos o mesmo tipo de trabalho e depois de findar o nosso "contrato", vamos para a mesma merda.

Eu devia era ser solidário, mas todos os meus canais de empatia estavam nesse momento bloqueados e eu só conseguia agir dentro da racionalidade fria de medir o tamanho dos pen... dos pensamentos?... dos privilégios. Não quis saber sequer que a vida dele não se resumia apenas à Guiné-Bissau e, portanto, eu não devia usar apenas o parâmetro guineense para o criticar a ele e à sua precariedade (que na verdade é nossa).
Enquanto houver meios sociais diferentes, vai haver sempre perspetivas diferentes, os privilégios e as precariedades serão sempre diferentes. Mesmo que eu só conhecesse a realidade guineense e não a portuguesa, nunca conseguiria falar com esse meu amigo se quisesse focar-me (como fiz) apenas nas nossas respetivas realidades. Só muito mais tarde, cá em Portugal, quando dei conta disso, lhe pedi desculpas.
Os privilégios serão sempre diferentes, as precariedades serão sempre diferentes, mas os sentimentos que os mesmos provocam penso que serão similares; por isso, ao invés de medirmos materialmente as coisas, podemos tentar outro entendimento.

Fala-me do que sentes, não do que tens, e eu falo-te do que sinto. É certo que o que se sente é também motivado pelo que se tem, mas se conseguirmos perceber o sentimento do outro, talvez consigamos perceber também como esse sentimento é motivado por aquilo que ele não tem (ou tem) e dessa forma consigamos entendê-lo melhor. A verdade é que mesmo que tentemos ver as coisas pela perspetiva de outrem, os olhos serão sempre nossos, os filtros serão sempre nossos. Mas podemos sempre tentar mais empatia.
Nas lutas anti-racistas, anti-fascistas, anti-homofóbicas, anti-transfóbicas, feministas, entre outras, temos a tendência de dizer... tu és branco, não sabes o que é racismo, portanto, cala-te... tu és gajo, não sabes o que é ser mulher, portanto, cala-te... Sim, é "tu és tu, não és eu", o que não deixa de ser verdade, mas creio que todos nós, todo o ser humano, independentemente da sua posição de privilégio ou de precariedade, terá sofrido discriminação e injustiça alguma vez na vida. Se em vez de hierarquizarmos o grau da injustiça, tentarmos falar sobre o sentimento que essa injustiça provoca, talvez consigamos falar melhor uns com os outros. Talvez eu consiga falar da injustiça contra a mulher da minha perspetiva de pessoa racializada, talvez a mulher consiga falar da injustiça contra os trans da sua perpetiva feminina... pois conseguir falar leva a conseguir entender, creio eu.
Penso que podemos treinar mais conversar pelos sentimentos, em vez de nos focarmos apenas nas racionalidades espistemetodomerdológicas que não falam muito às emoções; penso que devemos tentar alargar mais um bocado os chamados lugares de fala.

17 de agosto de 2020

CARO IRMÃO REVOLUCIONÁRIO (os 10 mandamentos)

Caro irmão revolucionário,


Espero que esta carta te encontre de boa saúde, a gozar a juventude em toda a sua plenitude, que nunca madures e que continues sempre cheio de ideais nobres de uma mudança que valha o seu nome, pois, meu caro, da forma como isto anda nesta banda, esta demanda de mudar o mundo está cada vez mais a ir para o fundo e eu acho, meu caro revolucionário, que neste caso, ao contrário do que proclamamos, o problema somos nós. Pois…

… Enchemos a cabeça de conceitos e preconceitos, e achamos que daqui somos os melhores sujeitos, os poucos com a visão clara do que é o mundo; e dizemos facundos que este mundo absurdo é imundo; que este conjunto de humanos moribundos no fundo não são mais que defuntos; e que nesta baia todos são da mesma laia, vistam calças ou vistam saia, escravos do capital, dominados e formatados pelo sistema social, a fazer um caminho trivial, vivendo com mordaças na andança de um Sísifo, sonhando com o idílico num pesadelo nítido, mas com os olhos húmidos e túmidos, empurrando montanhas, comprando banhas de cobra, por isso só lhes sobra a nhanha que transborda pela boca, pois nem uma foda decente este povo invoca; todos Sísifos estúpidos que vivem em falácias.

Até memorizamos os nomes dessas falácias, em latim, pois assim dá pra fazer mais chinfrim e mostrar que somos a nata beata desta casta de intelectuais, e mais, usamos os nomes dessas falácias para atirarmos com audácia, cagança e pujança na cara de todos os outros, porque os outros são uns grossos. Intelectuais?... os intelectuais somos nós, sim, podem ser os outros, mas só uns poucos e só um pouco, só na medida em que concordam connosco. Reclamamos todos nós, no alto da intelectualidade de sermos os donos da verdade, ou quando muito somos os amigos dos donos. E como o resto do mundo está enganado, cabe então a nós a tarefa de acordá-lo.

Caro irmão revolucionário, a revolução será desta vez, pois somos donos da sensatez, somos fiéis às nossas fés de que vamos desfazer à desfaçatez dessa gente incoerente sem viés decente. Será a revolução final, pois será a revolução mental, por isso, é preciso ensinar a esses tipos que querem fazer este serviço os 10 MANDAMENTOS para ser um revolucionário convicto.

Revolucionários! Em marcha!



ARTIGO PRIMEIRO: O revolucionário tem que ser porreiro. Então dá jeito teres uma camisola à altura, que manifeste a tua postura. Revolucionário que se preze dever ter uma camisa estampada com a cara de Che Guevara, comprada ali na Zara ou em qualquer outra banca… coitado do Che Guevera, que odiava o capitalismo e agora é vendido pelos tipos contra os quais lutava aos tipos que dizem que o amam... mas na falta de Che Guevara aceita-se um pano estampado com uma folha de canábis, pois revolucionário de verdade tem que puxar no haxix, pois isso é que é fixe, e tem de dizer que o mundo só é infeliz porque aqui o haxixe é tratado como se fosse um vício, por isso lá na Jamaica é que é o paraíso, pois pelo visto ali é só festa e dança e o sofrimento não existe.

ARTIGO SEGUNDO: O revolucionário tem de parecer imundo. Por isso, pára de te pentear, o tempo à frente do espelho é para desarranjar, só desta forma é que mostras que cagas nas normas. Usa dreadlocks, cortes loucos, penteados a Zé, camisa de Bob Marley, pano camuflado, gorros jamaicanos e charros, é claro. Se puderes, vai mais além e pára de te lavar, com essa atitude vais mostrar que estás ciente dos teus privilégios, aproveita esse ensejo de não banhar para mostrar que ao poupar água estás a ajudar as pobrezinhas das criancinhas na África que não têm água potável nem sequer para beber.

ARTIGO TERCEIRO: O revolucionário deve ser expresso. Tens que criar uma marca para a revolução, uma marca que abarca a tua preocupação, mesmo que seja uma coisa banal, por exemplo… hmmm… usa um chapéu como o de Amílcar Cabral, um boné caído à Pantera Negra, usa a cor preta, combina-a com verde, vermelho e amarelo. Não importa se esses cotas eram autênticos e originais e que todo o mundo topa que sem tento te esvais a fazer cosplay. Vai lá, vai! O teu nome original é ordinário para revolucionário, escolhe um nome de uma paleta africana (?), escreve-o com YpsYlon, dabliW e Kappa, porque essas letras são africanas(?), percebes a manha?... Não? Lê o MYA KOWTO e vais entender a piada. Como bom revolucionário, tens de vestir sempre um pano de batik, mesmo que esse pano seja originário de Indonésia, não tem problema, porque nesta cena, tudo o que não é branco privilegiado é então irmão amado, além do mais, esse pano é agora africano.

Revolucionários! Em marcha!


ARTIGO QUARTO: O revolucionário tem de odiar os bancos (e brancos, se der jeito, mesmo que sejas um, mesmo que só a fingir). Por isso não pára de mostrar a este povo ordinário que se mata a trabalhar para um mísero salário, de que o melhor a fazer é despedir-se, e que só ganha mal porque quer continuar nesse trabalho infernal que só alimenta o capital. Grita a plenos pulmões que odeias o capital, mas não faças o pecado de negar de herdar o dinheiro do papá… ou da mamã. Fala mal da burguesia, mas não largues a mordomia de ter o pilim todos os dias. Passa o tempo nos bares a fazer esgares, em conferências de copos, onde possas gritar como louco de como é um nojo que o nosso povo insosso não tenha nem um pouco para encher o bojo.

ARTIGO QUINTO: O revolucionário tem de ser distinto. O motivo mais lindo de um revolucionário é também fazer um trabalho de missionário. Lembras-te do Che Guevara, o homem que nunca parava, que andava de terra em terra atrás de uma boa guerra? Pois, não te peço esse preço, mas tens que mostrar o teu apreço indo para a África ajudar os pobres pretos, pois isso é o mais certo. Mas enquanto estás em aqui no centro, podes continuar cego às pessoas ao teu cerco, pois este esterco europeu não merece o teu zelo, aliás nem tem estilo ajudar esses matrapilhos, porque se fizeres fotos não ganhas muito gostos como os que ganhas quando fazes fotos com miúdos pretos. Louco, hein!, certo?

ARTIGO SEXTO: O revolucionário tem de ter um doutoramento. Não podes ser um pé-de-chinelo intelectual, tens de saber te movimentar pelas filosofias de quintal, conhecer os autores e citá-los tal e qual, mas ao mesmo tempo não te podes calar, tens que continuar a falar mal do sistema académico, enquanto preparas a tua tese respeitando o arquétipo para saíres dali doutorado e com mérito. Um bom revolucionário é aquele que é um dos três A: ou Académico, ou Artista ou Ativista, mas se fores um A3 ou um Triplo A, acredita, revolucionário mais chato que tu não há.

Revolucionários! Em marcha!


ARTIGO SÉTIMO: O revolucionário deve ser ético. Mas não deixes que isto de ser ético te torne caquético, porque se fores muito reto a tua revolução vai falhar. Tens de batalhar pelo teu politicamente correto, desde que não te afete, entretanto, não vás com jeito de olhar para os campos cinzentos, agarra-te apenas ao teu conceito, mesmo que se torne abjeto falar em nome da tua liberdade para asfixiar a liberdade de outras gentes.

ARTIGO OITAVO: O revolucionário deve defender os direitos humanos. Não tem necessariamente de ser todos os humanos, mas quanto mais fulanos tiveres debaixo dos teus braços ou cobrires com as tuas asas, melhor é para as tuas causas. Não faças pausas, continua, faz a luta, se faltarem inimigos, espeta o próprio umbigo; vá, continua, cria figuras, inventa brumas, ebraceja, donquixoteia, afinal os moinhos estão aí mesmo para isso. E se não te chegarem os humanos, há os direitos de animais, mas não queiras ser vegano, nem partilhar com os demais, pois todos os animais são iguais, mas um revolucionário é o mais igual dos animais.

ARTIGO NONO: O revolucionário dever mover o povo. Até aqui, nada de novo, pois esta sociedade move-se como uma roda, e todo grande conservador já foi um passado revolucionário, e todo o grande revolucionário é um futuro ditador. Por isso, tens de começar a treinar novas formas de despotismo, cria novos classismos, novos ismos, mesmo que cópias maquilhadas de ismos já antes urdidos, porque depois da revolução vais reclamar com vazão o direito de ser potestade, porque foi o teu ativismo que libertou a sociedade.

Revolucionários! Em marcha!


ARTIGO DÉCIMO: O revolucionário deve escrever textos. O revolucionário escreve longos textos para debitar as suas rimas e as suas críticas vazias, onde fala de problemas sociais, de outros tantos e muito mais; onde fala de revolucionários bem-intencionados que não fazem um caralho para ajudar os outros ao seu lado, e que só procuram estrelato usando os outros como planos; fala de revolucionários perdidos em questões existências e que não sabem mais o que procuram e então se entretêm a brincar a anti-isto e anti-aquilo, mas que não arredam um centímetro e mandam tudo para os brejos quando se mexem com os seus privilégios; fala que a sociedade está zumbificada, parecendo por vezes que ele conhece a estrada; fala, num discurso igual, que é preciso uma mudança radical para acabar com o capital, mas consumista também não vive sem comprar e nem quer abandonar o conforto de um lar, de uma casa e de uma cama, e no resto dos dias da semana, também anda com a manada. Mas a contragosto, diz ele, vê-se no meu rosto. 

E... o revolucionário gosta de cenas alternativas, se é preto vai à música céltica, se é branca vai ao B'leza.

Revolucionários! Em marcha!



Caro irmão revolucionário, perdoa-me pelo comprimento deste texto, eu quis explorar a maior parte dos contextos, e perdi-me em subtextos, mas podes usar isto como um pretexto para protesto contra o que eu acabei de dizer. Eu queria mostrar-te algum caminho, mas confesso que também estou perdido e ando nisto muita vezes sem saber se é por raciocínio ou apenas por instinto… instinto de sobrevivência. Mas caro irmão revolucionário, não é só uma questão da resistência, mas também... da existência.

20 de maio de 2019

PENSAMENTOS INEXACTOS - CAP. XII

A HUMANIDADE É SIMPLES

A humanidade é tão complicada que acaba por ser simples, ou seja, por ter uma definição simples, ou simplista, resumida em: a humanidade é complicada. Entretanto, filósofos e promotores de autoajuda têm andado a tentar convencer-nos de que não, que a humanidade não é complicada, que nós é que assim a fazemos. Daí põe-se a questão: se nós não somos complicados como conseguimos complicar? Não consigo perceber como é que o simples consegue complicar, da mesma maneira que me faz espécie que Deus, um ente perfeito, tenha criado a imperfeição.

Se o homem fosse simples não teria complicado o seu viver. Tentamos fugir da complicação criando sistemas binários ou dualistas, resumimos tudo em ou bem ou mal, ou preto ou branco, ou ser ou não-ser, ou 1 ou 0, mas todos sabemos que tirando os computadores e as pilhas, nada funciona com dois polos apenas, até mesmo os bebés sabem que por vezes têm de deixar de chorar e de ceder aos caprichos dos pais.

Eu entendo como um insulto à natureza humana chamá-la de simples quando na verdade ela não é, e quando quanto mais complicada mais o homem gosta. Senão vejamos, aplaudimos mais os discursos que não entendemos. “Oh, ele falou tão bem e tão bonito… mas não entendi nada”. Gostamos mais de poemas complicados e com vocábulos que não conhecemos, despendemos tempo a observar e a elogiar um quadro que não nos diz nada, simplesmente porque desconfiamos que haja sempre uma montanha de significados obscuros ou simples quaisquer escondidos atrás dessas coisas que não entendemos, e temos o receio de dizer gritar simplesmente: o rei vai nu! Pois! Vai! Mas e não estiver nu? Se todos o vêm vestido quem somos nós para dizermos que vai nu? Eu vejo-o nu, mas será essa a verdade? Pois! Não se sabe, porque na verdade… na verdade a verdade é verdadeiramente variável, tanto pode ser como não ser sem deixar de ser verdadeira. Eu explico: pense-se nos conceitos da lógica aristotélica e na álgebra booleana dentro da tigela da teoria da relatividade. A observação depende do ponto de vista do observador e o simples facto de haver um observador altera o resultado da observação. Não sei quem disse isso, mas acredito nele. Sendo assim, pode-se dizer que existe o Ser, o Não-ser, o Ser-que-não-é e o Não-ser-que-é, sendo que o Ser-que-é é o Ser, e o Não-ser-que-não-é é, neste caso, em vez de Ser, um reforço à negação do Não-ser. Mas o Ser para um pode, ao mesmo tempo, ser o Não-Ser para outro, como sabiamente se diz: a boa-vida do carrapato é a dor do cão.

Pode-se ver nas últimas frases como é tão complicadamente simples a humanidade. Ou por outras palavras, a humanidade não é simples, nós é que a queremos simples e o less is more, dito por não sei quem [agora sei que é uma frase de Van Der Rohe], é uma ilusão, nós desejamos mais, mais e mais, e cada vez mais complicado, porque a simplicidade é aborrecida. Mas, quando não nos sentimos capazes, queremos tudo simples, pelo menos para nós, os outros que o tenham complicado.

Dizemos que a humanidade é simples, porque preferimos crer que assim seja, acreditando que a fé move montanha. E, se calhar, sim, a fé move montanha… montanha de treta. É uma metáfora, eu sei, não era para ser levada à letra, mas eu diria, os braços movem montanha, a fé só incentiva os braços a moverem, quando o chicote não o faz (o caso do imperador romano que mandou cortar uma montanha que lhe tapava a vista, ou os egípcios que erigiram as montanhas-esfinges). A fé, não importa de que tipo, é um grande motivador e um item muito importante para fazer as coisas acontecer. Que seria de nós sem a fé? Sem a fé e sem a esperança? Até nem sei dizer qual das duas é mais importante ou mais útil, visto que uma gera a outra. 





20 de janeiro de 2019

OS MESSÍASES: AMÍLCAR CABRAL E JESUS CRISTO - cronices crónicas

Eu fui criança nos anos 1980, quando ainda o PAIGC era o único partido legal autorizado, e outros como o Fling tinham sido amordaçados e eram perseguidos se se atrevessem a falar de democracia ou multipartidarismo.


As escolas serviam para criar seguidores do PAIGC, os heróis nacionais eram comemorados, contava-se sobre Amílcar Cabral e sobre a luta de libertação de uma forma básica, propagandista, doutrinária e superficial (e depois no ciclo tínhamos Formação Militante), mas contava-se, sabíamos alguma coisa sobre o processo da Luta, sabíamos sobre outros resistentes africanos, o que infelizmente não acontece hoje.

Como não podia deixar de ser, eu fiz parte dos “Flores de Setembro” e depois “Pioneiros” e a minha aspiração na altura era chegar a “JAAC – Juventude Africana Amílcar Cabral” quando fosse grande, para depois ser membro do partido, PAIGC, tal era a doutrinação. Eu era tão orgulhoso de ser um “Pioneiro” e por ter Cabral no meu nome dizia (porque pensava) que era parente de Amílcar Cabral, afinal erámos os dois vermelhos e descendentes de cabo-verdianos (eu era parcialmente) e ele e a minha avó tinham sido vizinhos em Cabo Verde.

Naquela altura, todavia, Cabral era um enorme quebra-cabeça para mim. Era algo que não conseguia entender, principalmente quando diziam “CABRAL KA TA MURI”, mas todos os 20 de Janeiro, “celebrava-se” o assassinato de Cabral. Como se falava de Cabral Imortal e de assassinato, levou-me algum tempo até perceber que assassinar era matar, e que Cabral tinha sido morto. E era isso que eu não entendia, como alguém imortal estava morto?

Duas figuras iam para além da minha compreensão: Amílcar Cabral e Jesus Cristo, e para mim eram similares.

1. Jesus Cristo tinha morrido para salvar o mundo. Cabral tinha morrido para salvar a Guiné-Bissau. (Eu achava que a morte de Cabral fazia mais sentido, porque a de Jesus não salvara a Guiné, mas o meu catequista, João Lima, disse-me que falar esse tipo de coisas podia levar-me para o inferno, e eu tinha seis ou sete anos, portanto fiquei cheio de medo). Em suma: eram ambos Messias.

2. Na escola nunca tinha aprendido nem sobre o pai de Cabral, muito menos sobre a sua mãe. Por isso pensava que ele também tinha nascido de uma virgem. E ele tinha um meio-irmão, Luís Cabral, que estava sempre com ele, como Jesus que tinha o seu meio-irmão Tiago.

3. Todos os anos, tinham feriados e “comemoravam-se” os dias de nascimento, morte, ressurreição tanto de Cristo como de Cabral (para mim a ressurreição de Cabral comemorava-se no dia 24 de Setembro).

4. Cristo tinha 12 apóstolos, Cabral tinha os seus companheiros e outros heróis nacionais: Domingos Ramos, Pansau Na Isna, Francisco Mendes (estavam no dinheiro), Luís Cabral, Nuno Vieira, Aristides Pereira (blá, blá, blá, conseguia contar-lhe 12 companheiros).

5. Jesus tinha sido traído por Judas e condenado tanto por romanos (dominadores) como por judeus (dominados). Cabral tinha sido traído por Momo (da Guiné), Seco Turé (de Conacri) e Spínola (de Portugal) – as minhas informações não eram coerentes – ou seja, tanto por portugueses (colonialistas) como por guineenses (colonizados). E depois, como todo o mundo varria palha ao Nino Vieira, o discurso era que Luís Cabral também tinha traído o sonho do irmão, por isso é que se fez o golpe de 1980, portanto, eu considerava Luís Cabral também uma espécie de Judas.

6. Jesus tinha a Maria Madalena. Cabral tinha Titina Silá. Eu pensava que eles eram casados.

7. Tanto Jesus como Cabral tinham sido mortos, mas ambos eram imortais.

8. Tanto Jesus como Cabral tinham morrido para salvar as pessoas, mas os problemas ainda continuavam a existir e pelo que me diziam, eu tinha ainda de continuar a trabalhar para salvar a minha alma, ou para garantir o meu futuro e o futuro da Guiné. No final, parecia-me que os dois tinham morrido amonton, porque eu ainda tinha de fazer o trabalho todo (dizer isso foi-me desaconselhado tanto pelo meu catequista como pelo meu formador de pioneiro, Aliu Nhamadjó).

9. Tanto Jesus como Cabral tinham deixado adoradores. Uns chamavam-se cristãos, outros chamavam-se guineenses. (Se fosse hoje teria dito, uns chamam-se cristãos, outros cabralistas, mas provavelmente 95% deles nunca leu a Bíblia ou os escritos de Cabral).

10. Invejava os dois porque tinham lutado e morrido por “causas nobres” e eu pensava que não já não tinham mais causas nobres pelas quais lutar ou morrer. (Só recentemente alguém me fez ver o quão é mórbido uma criança pensar em morrer por alguma causa. Na altura, eu julgava que isso faria de mim um imortal e que valeria a pena, pois ressuscitaria… não é como se fosse perder muito na verdade. Por isso sempre pensei que o “sacrifício” de Cristo não foi lá muita coisa, porque depois foi ressuscitado e deram-lhe o universo para governar como prémio).

Ainda hoje se fala de Cabral em todos os 20 de Janeiro. Alguns políticos não o fazem, porque isso é como dar visibilidade ao PAIGC, uma vez que não se pode separar do partido a figura. E desta forma a figura da nossa única referência parece desbotar-se da memória coletiva, sendo conhecida mais como sobra de alguma coisa de que como uma imagem vívida.

Na escola estudamos na História (só em três anos):

No 7º ano, a origem do ser humano, as raças humanas (caucasianos, mongoloides e negroides – nem dizem brancoides), o paleolítico, o neolítico. Não sei os capítulos todos porque a greve sempre interrompe as aulas.

No 8º ano, o império de Gana, Mali, Songai, o império de Gabu é o último capítulo, mas eu não lá cheguei porque a greve sempre interrompe as aulas.

No 9º ano, os três setores da produção, a revolução industrial, as teorias malthusianas, não sei os próximos capítulos porque a greve sempre interrompe as aulas.

Enfim, estuda-se sobre tudo, mas estudar sobre a Guiné-Bissau e a sua história, nada, porque os outros partidos parecem temer que estudar sobre isso é favorecer a doutrinação paigcista. Mas como querem separar o PAIGC da História da Guiné? Lubu, negal te, ma ka bu dal padja di bobra. E o pAIGC tem medo que se descubra que fazem tudo menos seguir os preceitos do homem que usam como bandeira (pois atuam como se fosse o PAIGC que gerou Cabral e não o oposto).

As disciplinas chamadas “Educação Social” que podiam focar-se sobre a sociedade Guineense, ao invés pareciam introdução ao direito internacional; a única coisa que me lembro disso é que andei a estudar a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” e tive de fazer um exame onde o professor perguntava algo como “o que diz a 15ª lei, ponto 2, alínea c), da declaração”? Ou seja, mesmo essa coisa era para ser memorizada e não entendida.

E isso eu estudei entre 1991 e 1994, e pelo que me disseram, o programa escolar continua a ser, em 2019, a mesma merda.

Para quando vamos começar a estudar Cabral e as suas ideias na escola? E para quando vamos começar a estudar sobre as outras figuras (femininas, princialmente), como a Titina Silá que hoje está completamente esquecida?