Mais tarde, só muito mais tarde, notei que, na verdade, eu nem sequer estava disposto a ouvi-lo ou a entendê-lo, só estava concentrado nas suas palavras e na minha arrogância. Eu andava frustrado com a precariedade que tinha visto na Guiné, na qual vivia parte da minha própria família, e estava tão imerso nisso que me esqueci da precariedade que existe em Portugal e na qual vive outra parte da minha família, e com a qual ele se identifica.
Para piorar, a precariedade da qual o amigo falava também me abarcava, porque temos o mesmo patrão e desenvolvemos o mesmo tipo de trabalho e depois de findar o nosso "contrato", vamos para a mesma merda.
Eu devia era ser solidário, mas todos os meus canais de empatia estavam nesse momento bloqueados e eu só conseguia agir dentro da racionalidade fria de medir o tamanho dos pen... dos pensamentos?... dos privilégios. Não quis saber sequer que a vida dele não se resumia apenas à Guiné-Bissau e, portanto, eu não devia usar apenas o parâmetro guineense para o criticar a ele e à sua precariedade (que na verdade é nossa).
Enquanto houver meios sociais diferentes, vai haver sempre perspetivas diferentes, os privilégios e as precariedades serão sempre diferentes. Mesmo que eu só conhecesse a realidade guineense e não a portuguesa, nunca conseguiria falar com esse meu amigo se quisesse focar-me (como fiz) apenas nas nossas respetivas realidades, só muito mais tarde, cá em Portugal, quando dei conta disso, lhe pedi desculpas.
Os privilégios serão sempre diferentes, as precariedades serão sempre diferentes, mas os sentimentos que os mesmos provocam penso que serão similares; por isso, ao invés de medirmos materialmente as coisas, podemos tentar a empatia.
Fala-me do que sentes, não do que tens, e eu falo-te do que sinto. É certo que o que se sente é também motivado pelo que se tem, mas se conseguirmos perceber o sentimento do outro, talvez consigamos perceber também como esse sentimento é motivado por aquilo que ele não tem (ou tem) e dessa forma consigamos entendê-lo melhor. A verdade é que mesmo que tentemos ver as coisas pela perspetiva de outrem, os olhos serão sempre nossos, os filtros serão sempre nossos. Mas podemos sempre tentar mais empatia.
Nas lutas anti-racistas, anti-fascistas, anti-homofóbicas, anti-transfóbicas, feministas, entre outras, temos a tendência de dizer... tu és branco, não sabes o que é racismo, portanto, cala-te... tu és gajo, não sabes o que é ser mulher, portanto, cala-te... Sim, é "tu és tu, não és eu", o que não deixa de ser verdade, mas creio que todos nós, todo o ser humano, independentemente da sua posição de privilégio ou de precariedade, terá sofrido discriminação e injustiça alguma vez na vida. Se em vez de hierarquizarmos o grau da injustiça, tentarmos falar sobre o sentimento que essa injustiça provoca, talvez consigamos falar melhor uns com os outros. Talvez eu consiga falar da injustiça contra a mulher da minha perspetiva de pessoa racializada, talvez a mulher consiga falar da injustiça contra os trans da sua perpetiva feminina... pois conseguir falar leva a conseguir entender, creio eu.
Penso que podemos treinar mais conversar pela empatia, em vez de nos focarmos apenas nas racionalidades espistemológicas que não falam muito às emoções; penso que devemos tentar alargar mais um bocado os lugares de fala.