29 de junho de 2011

A URBANIDADE E O INDIVIDUALISMO


Este texto foi um trabalho sobre a mudança da sociedade rural para urbana para uma cadeira de sociologia; para tornar-se postável, tive de fazer bastantes cortes, reduzindo as suas páginas em uma e meia apenas, tentando manter apenas o essencial. Espero que tenha ficado digestível.


Francis Fukuyama, no seu livro A Grande Ruptura, disse que houve três grandes reviravoltas na história do homem: a primeira quando deixou de ser caçador para se tornar agricultor, a segunda com a revolução industrial, na terceira estamos nós a viver, a era da informação.

Aquando da primeira ruptura, os homens deixaram de ser nómadas e passaram a organizar-se em grupos, criando cidades, apropriando-se do espaço e criando hierarquias; os excedentes da cultura foram um dos principais motivos da criação do mercado, e não tardou muito que se passasse ao esclavagismo e ao feudalismo (embora ainda não fosse assim denominando).

Com a revolução industrial, aconteceu a explosão do êxodo rural, resultado dos sistemas de transportes mais rápidos (comboios, vapores, automóveis, etc.), as pessoas encheram as cidades que se rebentaram pelas costuras, começando a expandir-se para os subúrbios; imensas cidades dormitórios começaram a ser criadas, visto que as indústrias encontravam-se todas nas cidades principais. Há já mais de um século que esse fenómeno começou e não está ainda refreado, acontecendo, porém, desta vez, um outro movimento contrário, definido pela ecologia humana na teoria das estruturas urbanas de Robert E. Park e Ernest Burgess, a deslocação dos ricos do centro da cidade para novas zonas suburbanas.

Estamos na era de informação e o sector terciário – a prestação de serviços – domina os outros sectores (a secundária – industrial – e a primária – agrícola); e o sector terciário funciona mais nas cidades desenvolvidas. E tal como em Lisboa pode tirar-se maiores dividendos que em Barreiro (cujo crescimento resultou do sector secundário, hoje desmantelado), assim também em Madrid se tira maiores dividendos do que em Lisboa, por pertencer a um país mais forte economicamente e com maior poder de compra. Nesse sentido, percebe-se que as empresas criem mais agências – o que se traduz por postos de emprego – nas cidades mais movimentadas e não nos subúrbios ou no interior, considerando que as oportunidades concentram-se mais nas grandes cidades.

E é nesse sentido que Lisboa e Porto tornaram-se alvos de migração, as cidades do interior esvaziando-se para os encher. E disso nasce a questão das rendas, condicionada pela lei da procura e da oferta, elas tornam-se cada vez mais caras, visto que os lugares, com a construção de infra-estruturas e proximidade de transportes públicos e centros de emprego ficam mais valorizados, levando também a outro fenómeno: a especulação fundiária, mas que não se vai falar aqui.

Com as rendas altas na grande Lisboa, e com as deslocações dos ricos do centro, o sentido da migração começa a ser para os subúrbios, Amadora, Loures, entre outros, provocando o cerzimento desses bairros dormitórios através de novas construções, e resultando na criação de novos concelhos. Essa conurbação urbana, facilitada mais pelas linhas de comboio e, posteriormente, de metro, e uma ineficaz descentralização da importância de Lisboa, na medida em que os centros de emprego concentram-se mais ali, provoca o grande fluxo de deslocação pendular: de manhã, milhares de pessoas deslocando-se para o centro urbano, à tarde movimentando-se no sentido contrário, fluxo tal que as infra-estruturas rodoviárias não aguentam, e que é visível nas longas filas de trânsito.

Ao stress das filas de trânsito e do movimento contínuo da sociedade urbana, onde descansar é sinónimo de preguiça, vivendo toda a sociedade acelerada e com uma pressa exagerada, acrescenta-se o vender de um sonho padronizado como garantia da felicidade, diante do qual não se queda indiferente.

Fukuyama refere-se à questão da publicidade, que segundo ele, a partir dos jogos olímpicos de Atlanta, em 1996, ganhou uma outra face, começando a ser mais agressivo, eliminando limites e oferecendo o mesmo a toda a gente. Sabe-se da impossibilidade das pessoas viverem todos como lordes, por causa dos sistemas gestores das sociedades, entretanto, todos os dias a televisão, os outdoors, o cinema, a rádio passam esta ideia: este ALGUÉM podia ser tu. Desta maneira, todos estão a tentar ser alguém, e as coisas são de tal forma que ser alguém não significa ter uma família ou uma comunidade em que se apoia e que se apoia, mas simplesmente ter dinheiro: carro na garagem, casa com piscina e uma bela mulher – resumindo o sonho americano que agora nos é vendido pela média. Assim cria-se a alienação nas comunidades ou a inexistência destas, da qual resulta uma sociedade com suas regras mas com seus membros que não são mais nada do que fantasmas ou números de estatísticas. Não obstante se publicite a imagem da família, não se pensa realmente na família, mas sim como se pode explorar esse aglomerado que antes realmente era família.

No terceiro episódio da série de documentários Portugal – Um Retrato Social, subtitulado Mudar de Vida - O Fim da Sociedade Rural, uma senhora entrevistada diz que acorda os filhos às 6.30 da manhã para levá-los à escola e que volta à casa apenas às 8.00 da noite. Entrentanto, considerando a hora do jantar, e a hora da televisão, em que praticamente todo o mundo está calado, as únicas horas de conversa e interacção com as crianças acaba por ser reduzidas a uma, imaginando que elas vão para a cama às dez ou às onze. Ela ainda diz que o mais novo sempre lhe quer o colo, pelo que ela tem que ir deitar-se a uma ou às duas da manhã porque tem de adiar os afazeres para satisfazê-lo emocionalmente. E ao mais velho das crianças o que acontece em termos afectivos?

Portugal, Um Retrato Social, 3º Episódio

Há famílias em que essa relação é ainda pior. Há casais que não se vêm senão aos domingos, ou quando a folga dos dois coincidem, porque quando um deles chega a casa o outro já está a dormir. E ainda se admira que a taxa de natalidade e de casamentos tenha baixado e que o número de divórcios tenha aumentado. A família é o núcleo da sociedade, defende-se, entretanto, vemos como ela é explorada pela mesma sociedade que faz dela o núcleo. 


A era da informação criou e acentuou o consumismo, e as publicidades são orientadas principalmente para as famílias. As horas nobres, em que os membros todos supostamente estão reunidos, são as melhores para a publicidade, e as publicidades nesse período são também mais caras, e é orientada a todos, desde os avós até aos bebés. Cada dia é inventado um novo dia, para não citar outros: o dia de pai, o dia de mãe, de namorados, o Natal, a Páscoa, e, fenómeno recente, importado dos EUA, o halloween.

Acompanhadas pela ideia: Esse ALGUÉM podia ser tu!, as pessoas deixam-se levar pelo consumismo, pois não querem ser zé-ninguéns, e vivem a um ritmo que desgasta os laços familiares e anula os laços da vizinhança, centrando-se apenas no posse. 

Essa alienação incentiva o egocentrismo e a busca desenfreada pela satisfação material, de tal modo que comparando a forma de vida da cidade com a do campo, pode dizer-se: as pessoas aqui não vivem, simplesmente gastam… e desgastam-se. 

27 de junho de 2011

TER OU NÃO TER FILHOS; EIS A QUESTÃO


Existe uma terra onde as pessoas põem luto quando nasce uma criança e fazem festa quando morre alguém.

Esta é uma alusão casual que aparece no Baudolino, de Umberto Eco sem qualquer impacto no desenvolvimento da história, sendo apenas uma das gotas de um mar de referências a crendices do povo europeu da Idade Média, algumas das quais, de certo modo, perduram até hoje. Porém, o paralelo entre o nascimento e o luto fez-me reflectir, porque a bem ver parece que é o que temos hoje. Passo a explicar.

Não pretendo dizer que uma criança seja realmente um motivo de luto, mas parece que embora os pais beneficiem da alegria da paternidade, há sempre uma flor de luto a benvindar a chegada da criança, se não, o que explicaria a redução da taxa de natalidade na Europa?

No filme Idiocracia (sobre o qual postarei uma leitura um dia) apresentou-se o panorama actual da questão de nascimentos e, em jeito de ficção científica (não tão científica assim), uma das suas possíveis conclusões. Mostra como as pessoas inteligentes planeiam os filhos: primeiro pensam na carreira, depois na segurança do lar e até terem a criança enfastiam-se uma da outra, ou então descobrem que não podem tê-la, ou têm-na, só uma, e ela lhes morre. Resultado: o número de burros aumenta, porque esses não planeiam, só se limitam a fazer filhos, e o dos inteligentes decresce. Ok!, é certo que não é assim tão linear, na questão burrice, digo eu, porque inteligentes podem fazer burros, assim como burros podem fazer inteligentes, mas isso fica para outro fórum.

Na realidade, a Europa, ou o ocidente, não está projectado para ter filhos, o sistema é anti-família e canibal, as pessoas não são mais do que meros gados para o enriquecimento de uma determinada massa. As pessoas são tratadas como investimento económico, têm que render, têm que dar lucro, razão porque quando não o fazem são olhados de revés e tratados como párias sociais. Ter um filho é uma responsabilidade tremenda, porque um filho, quando muito, só dá lucro emocional, e tudo aqui gira em torno do sistema financeiro, onde a emoção praticamente tem o índice zero de importância. Não querem saber que amas os teus e que esses te dão todo o suporte que precisas para aguentar as pressões que te põem em cima, não, isso não interessa, o que interessa é que tu e os teus consumam, consumam e consumam, e para continuar a consumir, têm que se submeter às regras de escravidão de uma empresa qualquer que te vai chupar até ao tutano.


Os governos incentivam o nascimento das crianças, porque a população está a ficar envelhecida, mas será que pensam na questão de envelhecimento como uma ameaça à sobrevivência da humanidade ou como um baixar do lucro? Há aqueles que dão um prémio de uns quantos milhares de euros para aqueles que lhes põem nas estatísticas mais crianças, por exemplo, a Alemanha que estava a dar 25.000 euros por cabeça, o que no fundo, no fundo não passa de uma armadilha. Uma criança chega ao mundo e é começado a ser cobrada até o dia em que partir, ou seja os tais 25.000 euros ainda acabam antes de ele chegar aos sete anos. A creche do meu sobrinho, por exemplo, é mais cara que a propina da minha faculdade, mas eu faço parte de produção e ele não. Não era mais fácil e justo que a creche dele fosse grátis, visto que não pode pagar por ela?

A paternidade na europa é uma questão muito difícil, porque para viver, ou sobreviver, praí 95% das pessoas tem que se matar a trabalhar, não dispondo de tempo para os filhos que põem no mundo, o que se traduz no aumento da quantidade dos pais que julgam que comida, vestida e dormida é tudo o quanto necessitam de garantir aos filhos para serem bons pais, e o elo emocional é assim tão frágil que quando ficam velhos, os filhos preferem metê-los num lar a ter sua companhia.

Agora, voltando ao primeiro parágrafo, será assim tão estranho fazer luto quando nasce uma criança? Não vejo motivos para festa quando morre uma. Mas o ocidente não ajuda em nada na questão de procriação (não estou a falar do acto, que o isso é muito incentivado, não obstante as advertências), porque uma criança, como já dissera, não produz, porém, como têm a certeza de que ela vai crescer, ser formatada (para perpetuar o sistema) e tornar-se produtiva, apostam nela, mas já os idosos é que não têm essa sorte (vou falar disso num outro artigo), e quando um deles morre, chora-se, mas também com uma flor de alívio e de festa.

Estou a dizer para não terem filhos as pessoas que os queiram ter? Não, não estou. Ainda mais que há inúmeros factores envolvidos que ignorei atendo-me apenas ao sistema economicocêntrico (se me permitem o termo). Estou é a dizer que o sistema não está desenhado para ter filhos, ou pelo menos para ter uma família com todas as sete letras, e dificulta imenso essa tarefa, ou seja, precisa de ser trabalhado ou reformulado. O que me lembra a piada: se o mundo fosse bom, as crianças não nasciam chorando.

26 de junho de 2011

A MULHER, A PÉROLA (piadas em rima)


A MULHER E A PÉROLA

cartoon de carlos ruas
Vou contar uma anedota e vou fazê-lo a rimar, 
Tentando fazer-vos ao menos um sorriso dar. 
É uma piada que alguém acabou de me contar, 
Não é poesia, apesar de assim se mostrar. 

Vai ela: Um discípulo aproxima-se do mestre, 
Que era o mais sábio no espaço terrestre,
Que sabia de tudo, até da arte rupestre, 
E ensinava a vida apenas num só semestre. 

Diz ele: - Sábio, uma pergunta quero fazer,
Tem algo importante que intento aprender, 
Por favor, com a sua sapiência ensine-me a ver 
A diferença existente entre a pérola e a mulher. 


O mestre olha pra o discípulo e continua calado, 
Revista bem a memória pra dar o troco desejado, 
Pois em toda a sua vida nunca respondeu errado
E não seria agora, 
fala em seu tom de versado: 

«A tua pergunta é mais simples do que eu queria, 
Mas mesmo assim dou-te a resposta com alegria:
A pérola tem dois buracos e pelos dois se enfia, 
A mulher tem muitos, mas só se enfia por uma via». 

O aluno coça a cabeca, não estava convencido,
Olha pro mestre e faz um ar muito divertido,
Julgando ter feito o saber do mestre esmorecido,
E por ser o único a consegui-lo seria conhecido. 

Mas, mestre, - diz ele - há factos comprovados, 
Que mostram que os seus conceitos são errados;
Ainda não vi, mas sei de homens experimentados
Com mulheres que se enfiam pelos dois lados.


O mestre olha pro aluno, faz uma cara incrédula
Ele insinuara que a sua mente estava trémula?, 
Coisa de puto, deixou passar e dá-lhe esta cédula: 
«Se encontrares mulher assim, encontraste uma pérola





A MULHER É A PÉROLA

De marfim uma lamparina
Encontrou o Manel um dia,
Tinha uma talhe tão fina
E um ar mágico reflectia.

Habituado o Manel estava
A ver filmes de Aladin,
Que um génio se encontrava,
Julgou, nessa coisa de marfim.

Sem demoras a esfregou
E… deu-se então um milagre…
Um génio logo se mostrou,
Mas tinha uma manha vinagre.

O Manel mirou mal saiu
E disse: «Olha, ’tou com pressa,

A minha paciência já partiu,
Vamos logo ao que interessa.

«Mas, esquece, por favor,
A treta dos três desejos;
Isso é piada de mau autor,
Não terás tais ensejos
».

O Manel pensou, pensou,
E teve uma ideia divina:
– Quero uma ponte – falou –, 
Que vai daqui até a China.

O génio disse: «Assim não dá,
Homem, pensa na logística,
Nas papeladas e alvará
E questões de ordem turística.


«Pede-me algo sem complicar,
A ponte está fora da questão.
Pede um outro e eu vou dar,
Mas isto aqui não dou não.»


O Manel pensou outra vez
(Olhando o génio sem entender)
E este pedido então fez:
– Quero a mulher compreender.

Quero saber como se sente,
Quero entender o seu humor.
Por que é que chora de repente;
Saberei assim lhe dar amor.


O génio franziu a fronte
E disse: «O que é que achas,
Queres a merda da ponte
Com cinco ou seis faixas?»






publicadas anteriormente, em Luso-Poemas, por Marinheski:
mulher e a pérola
mulher é a pérola

24 de junho de 2011

HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA, O, G. K. Chesterton (1908) - o mito dos opostos



Sempre me fascinaram premissas absurdas nos trabalhos de ficção, e mesmo que me sinta depois desiludido pelo desenvolvimento, não consigo evitar de ler (ou ver, no caso do cinema) para me inteirar da forma como o autor trabalha o material e como com ele navega.

Praí em 1997, ao ler lombadas nas estantes da biblioteca do INEP, uma actividade costumeira que me dá a ilusão de ter lido mais livros do que na realidade li, eu vi O Homem que era Quinta-Feira de G. K. Chesterton, e pensei: mas como?, abri o livro e comecei a ler, não deu mais para parar, faltei à escola nesse dia e, quando a biblioteca ia fechar, sem eu ter acabado a leitura, dei um jeito de levar comigo o livro. Não, não o roubei, mas como tinha emprestado outros, não podia levar mais nenhum, porém como sempre fui o cliente mais assíduo e mais novo dessa biblioteca (porque não tinha livros infantis), todos os bibliotecários me conheciam e deixaram-me levar comigo o livro, divertidos com as minhas súplicas. No dia seguinte, ao voltar, já tinha lido duas vezes o livro.

O Homem que Era Quinta-Feira, Odisseia, de Homero, e O Elogio da Loucura, de Erasmus, são os primeiros da lista dos meus livros de sempre, por quê?, não sei dizer, talvez pela impressão que criaram em mim quando ainda puto.

Gostei d’O Homem que era Quinta-Feira pela maneira como Chesterton conduziu a história tornando-a numa aventura surpreendente. Anos depois, praí em 2000, após a reabertura da biblioteca[1], encontrei de novo o livro e ao relê-lo fiquei ainda mais fascinado, porque não só mantinha o espírito de aventura que eu tinha percebido da primeira vez, como também tinha filosofices e reflexões filosóficas e sociais, e nessa altura eu era louco por filósofos.

Eis a história de O Homem que era Quinta-Feira, Gabriel Syme, um poeta conhece num parque um anarquista, aparentemente um desses rebeldes sem causa que atacam toda a ordem por não terem mais nada para fazer, porém por causa de uma discussão ridícula, este resolveu mostrar-lhe que falava a sério e convidou-o para uma das suas reuniões clandestinas. O que ele não sabia era que Gabriel era um polícia, um polícia poeta, lembrando o que o Platão disse algures n’A República e qualquer coisa como: se formos governados por homens ilustrados seremos melhor governados. Gabriel entra assim para a organização anarquista descobrindo que eles tinham uma estrutura que se dividia em seis chefes, todos conhecidos por um dia da semana, que por sua vez, reportavam ao chefe supremo, o Sabbat, que devido a catolização do Sábado, aqui é conhecido por Domingo. Inflitrando-se na organização, Gabriel acaba por ocupar o lugar de Quinta-Feira, e aí descobre que estava iminente um ataque terrorista que poria em risco toda a ordem (ou devia ser a Ordem), e tinha que descobrir uma maneira para o parar.

O Homem que era Quinta-Feira é todo ele cheio de reflexões filosóficas, políticas e teológicas, talvez mesmo utópicas, porém, a visão de um crente sobre o mundo e a ordem. É também uma reflexão sobre a questão existencial, uma análise do mito dos opostos, somos ou o bem ou o mal, ou somos o bem e o mal, ficando connosco a tarefa de destacar mais um deles?  Não posso falar mais para não criar spoilers, no entanto, tenho uma resenha sobre o livro da qual não sei o paradeiro, mas que no dia ou ano em que a encontrar, vou certamente postá-la. Chesterton escreveu aqui uma das melhores apologias de Deus que já li, e não obstante eu ser ateu, e prefira substituir onde ele escreve deus por outras causas, ou por ausência de causa, centrando-me apenas no homem, o seu livro continua fascinante (aliás ele nunca falou directamente em Deus). Uma leitura obrigatória tanto para cristãos como para ateus.

Não garanto a todos que vão gostar d’O Homem que era Quinta-Feira como eu gostei, porque há uns três anos, recomendei-o a uma pessoa que disse não ter visto grande coisa nele, razão porque tive medo de relê-lo para não estragar as lembranças, mas há coisa de dois meses ganhei coragem e voltei a ler, e ainda continuo a gostar, pois ele parece-me como um primeiro amor; no entanto, garanto que de alguma maneira vão gostar, principalmente os leitores do fantástico.



P.S.: Estranha-me que ao falar de um dos meus melhores livros de sempre não tenha conseguido um artigo excitante.



_________________________________________________________________________

[1] Com a guerra de 1998, os militares aquartelaram-se na biblioteca de INEP e no Museu Etnográfico Nacional, destruindo boa parte dos livros e itens do museu, tornando culturalmente mais pobre o país.

23 de junho de 2011

MEMÓRIAS DE LÚCIFER - ADÃO E EVA - O Mundo Perdido - parte finalle


THEN, on ADÃO E EVA:

Deus sabia que Adão não estava de acordo com a construção da mulher, por isso fê-la uma criatura bela, resplandecente, vistosa e apaixonante.
– Adão já está a passar das marcas. Vou mandar Adão para uma viagem de quinhentos séculos.
 Como soubeste que estavas nu? - perguntou Deus. - Por acaso comeste a fruta proibida?
– Como soubeste então que estavas nu?
 Merda! Não sou cego.
No entanto, fez-se uma luz no cérebro dele, e Deus lembrou-se dos códices, afinal não precisava expulsá-los, sempre havia uma chance.




NOW


A nova no paraíso espalhava-se com uma rapidez que fazia um relâmpago morrer de vergonha. Deus nem acabou mesmo de pensar no códice quando o seu telemóvel tocou. Ele não queria atender, diante das circunstância, mas talvez porque precisasse de ganhar tempo para pensar, ou porque esperava que eu talvez O aconselhasse, achou melhor fazê-lo. Pediu licença e afastou-se do grupo.
- Eloim! Que história é essa dos códices?
- Quais códices? Ah, sim! Os códices sou eu que os faço; era para ser uma desculpa. Decidi remodelar os homens.
- Mas sabes que se remodela-los já não serão as mesmas pessoas, já não se lembrarão de nada, e provavelmente poderão fazer o mesmo erro?
- Poderão se eu deixar a Árvore Morta no mesmo sítio…
- Mas tu não podes destruir a criação…
- Por isso é que vou fazer novos códices.
- Eloim, não podes voltar atrás com a tua palavra. Se fizeres isso, os teus anjos irão perder respeito por ti, acredita em mim. O que podes fazer agora é criar um plano de contenção de maneira a que possas recuperar os homens para o Paraíso…
- Não posso simplesmente expulsá-los, Lúcifer, não estás a ver?
- Mas remodelá-los é o mesmo que destrui-los, porque matarás as suas experiências, já te disse...
- Mas expulsá-los é abandoná-los, e isso não é uma atitude ética. Que tipo de pai eu seria?
- O tipo de pai que não mata e é obrigado a tomar decisões que beneficiem o filho.
- Não, Lúcifer, não. Vou remodelá-los. Expulsá-los é demasiado cruel, eles não estão preparados para se autogovernarem. Vê o estado em que Adão tem o Paraíso, com todas a regalias e facilidades que ponho a seu dispor, imagina o que faria se não tivesse tudo isto.
- Ele aprenderia, Eloim – eu estava desesperado, quase a chorar, precisava que o Eloim não destruísse Adão e Eva -, ele só está assim como está porque nunca lutou para alcançar nada, teve tudo de bandeja. Se tiver que trabalhar para si mesmo, desenvolverá os seus talentos, tu subestimas o potencial dessas duas criaturas.
- Esquece, Lúcifer – Eloim também estava quase em lágrimas, a sua voz tremia de comoção. – Não poderei ficar parado a ver Adão em dificuldades de o expulsar daqui.
- Mas, El, então por que raio puseste as frutas nas árvores?
- Porque tu assim mo aconselhaste… porque eu estava entediado… eu nunca quis expulsar os homens, esperava que Adão fosse mais forte… Sabes, eu queria expulsa-lo mesmo e criar novos homens… Ah, Lúcifer, não sei mesmo… Realmente não sei… - Deus estava a chorar. Ele ama os seus filhos.
- Vamos fazer uma coisa, Eloim. O plano da expulsão foi meu, portanto, podes culpar-me de tudo, mas não destrua Adão e Eva. Expulse-os, culpando-me, e assim, nada te inibirá, ética ou legalmente, de prestar-lhes socorro posteriormente. E, como eu tinha dito, faz um plano de contenção que te permita recuperá-los. Eu prometo ajudá-los também como puder, enquanto eles estiverem fora.



O instante em que Deus deixou a multidão para ir falar comigo e o instante em que voltou estava separado por uns poucos segundos, mas na verdade, demorou muito mais tempo, porque ele teve que traçar todo um plano para recuperar Adão e Eva. Deus tinha esse truque de congelar o tempo e usava-o sempre que precisasse.
- Cavem daqui – gritou Deus, todo vermelho, para Adão e Eva. Tocou a campainha, vieram anjos. – Ponham-me estes dois fora deste sítio – ordenou. Virou-se para Adão: – Não sabes o que fizeste. Eras o chefe disto – abriu os braços indicando o Paraíso –, todos os animais estavam sob a tua alçada. Provocaste a tua expulsão, tens de levá-los contigo...
Enquanto Deus ainda falava, os animais vinham para reclamar. A nova no Paraíso, como eu disse, viajava rápida.
Na dianteira dos animais estava a serpente.
- Que significa isto, pai?
- Cala-te, serpente – ordenou Deus.
- Vamos pagar pelo erro dos homens? Foram eles que comeram a fruta e nós também vamos ser expulsos?
- Eu disse: cala-te, serpente.
A serpente não se calou e os outros animais juntaram a sua voz à dela numa berraria infernal. Cada um reclamava. Não está certo que alguém pague pelo pecado que não cometeu. Onde está a justiça? Adão tinha sempre mais do que todos, abusava em tudo e de todos, fazia o que queria e eles tinham que se resignar, e agora que ele fez merda, por que razão deviam ser eles a comê-la. Adão que comesse sozinho a sua merda.
- Isto não é justo. Não pode ser. É injusto – berravam os animais.
- Estão surdos, não? – gritou Deus. – Disse-vos para calar e não me querem ouvir. Está bem. A partir de agora, como querem fazer-se de surdos, passarão a ser mudos, nunca mais falarão. E tu, serpente resmungona, serás a eterna amiga dos homens, morder-lhe-ás os calcanhares e eles pisar-te-ão a cabeça; e dissecar-te-ão para estudar nos laboratórios, e usarão o teu veneno para fazer antídotos e alguns ate irão comer-te e fazer sapatos com a tua pele. Hás-de ver.
Todos os animais a partir de então emudeceram... bom, não era bem emudecer. Desaprenderam a fala. Abriam a boca, mas apenas sons estranhos saíam dela.
- Pai – apelou Adão, avisado –, não nos ponhas no mesmo mundo com estes brutos. Eles nos odiarão por sermos a culpa da sua expulsão e perda da fala.
- Não te odiarão – disse-lhe Deus –, terão medo de ti. E não exageres na comiseração, da sua expulsão és a razão, mas da perda da fala são eles os culpados.
- Pai, desculpa-nos – suplicou Eva, com lágrimas nos olhos, sacudindo o silêncio de si. Sentindo-se não atendida, acrescentou: – Desculpa, pelo menos, a Adão e a estes animais inocentes, até mesmo a serpente.
- Cala-te, Eva – gritou Adão. – Não vês que é isso que Ele quer, que nos lamentemos e prostremos diante d’Ele como se fosse o centro do mundo?
– Se fosse só por ti... – ameaçou Deus, apontando o dedo a Adão. Virou-se para Eva, tocado pela sensibilidade dela: – Um dia, hoje te prometo, uma mulher vai dar a luz ao vosso passaporte para cá.
- Mas sou a única mulher – admirou-se Eva, com medo de que Adão se transviasse por outra.
Deus sacudiu a cabeça, era difícil explicar a Eva o que queria dizer.
- Fica assim como está. Não tentes sondar os meus mistérios.
Então uma luz forte incidiu verticalmente sobre Adão e Eva, e lentamente o céu começou a abrir, revelando-se uma cúpula. A luz incidente era confusa, não havia certeza se a vinha de cima ou de baixo, porque não fazia sombra. Eis que de repente um espelho surgiu lá de cima, volteando no ar, e no instante seguinte, todos os animais foram arrebatados por ele, aparecendo à frente Adão, Eva e Serpente, a bater na superfície interior dele, a gritar:
- Forquinhas! Forquinhas!

E assim Adão e Eva perderam assim o Paraíso, tendo Deus os mandado para a zona fantasma, quer dizer, Terra. Entretanto, tirando o próprio Deus, Os únicos no Paraíso que ficaram com pena deles foram os que mais Adão chateou, os anjos da DIABO e da SATANAS. Como reclamação, eles abandonaram o Paraíso e vieram se juntar a mim, no Inferno. Não concordaram com a decisão de Deus.




Anos depois, após muito trabalho para construir o novo Paraíso, Adão perguntou a Eva, lembrando-lhe o assunto há muito tempo hibernado. Não falavam disso para não chamar a nostalgia dos tempos passados, quando tinham rádio, televisão, Internet, luz e água canalizada.
- Por que mesmo comeste a fruta, querida?
- Foi a serpente que me enganou, disse que era a fruta do poder.
- Poder? – Adão riu-se, sem graça. – O único poder que ganhámos com isso foi que somos nós a garantirmos agora a nossa sobrevivência e a mandarmos em nós mesmos.
Eva calou-se, não gostou nada de levar com a culpa de tudo. Afinal de contas, Adão comeu a fruta da sua livre vontade, não podia e nem devia atirar as culpas nela e dizer: foi a mulher que me deste. Eva sempre se lembrou disso, nunca o conseguiu esquecer, mas... pronto! Adão que falasse dela o que quisesse, por conseguinte, faria dele o que quisesse.
– Mas como queres que eu soubesse, Adão? A serpente me disse que eu aprenderia a conhecer o belo e o feio, que teria pessoas que tentariam se medir comigo, como tentam medir-se com Deus... e acima de tudo, que ias amar-me.
O Amor, oh!, o amor.


- Que eu ia te amar? – repetiu Adão. – E não é que não amei... Mas, merda! Querida, fizeste isto tudo para seres a número um?
- Não, fi-lo pelo teu amor – respondeu Eva, chateada.
Adão, de repente, começou a berrar, despejando sobre Eva os nervos há anos contidos. Berrou tanto que começou a perder a voz. Eva não pôde suportar e começou a chorar.
- Fiz tudo por ti e é com isso que me pagas.
Eva chorava e gritava, puxando os cabelos e rolando no chão pedregoso, provocando nódoas no próprio corpo. Adão ficou assustado, e pensou que ela estava a enlouquecer.
- Eva! Querida...
- NÃO! NÃO QUERO SABER DE NADA. VAI-TE EMBORA.
- Querida!
- Vai – voltou ela a gritar. Não quero mais te ver.
- Eva, calma! – conseguiu Adão finalmente dizer. Agarrou-a pelos ombros, sacudiu-a para fazer passar aquela onda de histeria que lhe circulava nos neurónios. – Está bem, aceito – disse, pondo-lhe o indicador sobre os lábios, pedindo atenção. – Acredito que tudo o que fizeste foi por me amares, sei que não sabias que isto ia dar para o torto. – Depois de ver que estava a ser ouvido, explicou: - A minha gritaria não era para ti dirigida, acabei de perceber uma coisa: a nossa expulsão foi coisa planeada. Se calhar estávamos a minar o Paraíso.



Eva franziu o sobrolho, muito admirada. Nunca pensara nisso, e não conseguia acreditar no que disse Adão. Se todos os anjos gostavam dela, como podia ela estar a minar o Paraíso? Não perguntou nada, porque Adão explicou o porquê do que disse:
- Disseste que fora a serpente a autora daquele texto que me mostraste daquela vez. Aquilo não podia ser uma coisa vinda dela própria; mesmo eu tive que ir ao dicionário e invocar Cristo para que me ajudasse a compreender o que queriam dizer as palavras dela. Tudo aquilo fora-lhe ensinado, ela não possuía cérebro suficiente para imaginar tantas coisas e conhecer toda aquela filosofia. Só não sei quem a mandou dizer-te aquilo... mas desconfio que tenha sido o pai; pois, quando os animais foram reclamar, a serpente era a porta-voz, toda convencida de importância, e estava também ali esquecendo-se que fora ela mesma que te enganou... e ainda estava a deitar-te as culpas. Talvez seja mesmo o pai que a mandou, visto que lhe tirou a fala para não ser acusado.
Isto foi o que Adão pensou e disse. No entanto, Eva não acreditou nele, porque não conseguia ver nenhum motivo para que o pai os quisesse expulsar do Paraíso. Defendeu o pai, contando a Adão o que nunca lhe tinha dito, que a serpente usava Internet e era por esse meio que falavam, quando ele as proibiu de se encontrarem, e que talvez ela tivesse lido tudo aquilo lá. Adão não ficou convencido, mas deram o assunto por terminado, principalmente porque acusou Eva de desobediência e ela o acusou de tirania, reclamando a liberdade. Nunca mais voltaram a tocar nele.
Adão e Eva viviam entre dificuldades, mas desenrascavam-se bem no viver. Que valia o Paraíso, perguntavam às vezes, se estavam ao lado um do outro?

20 de junho de 2011

UMA QUESTÃO DE... CRENDICE



Há dois sábados vi na SIC Notícias uma reportagem sobre albinos em Tanzânia que sofrem discriminações racistas, entre outros tipos. Sim, amigos, racistas. Não obstante o racismo tenha derivado da palavra raça, ela praticamente não se limita a questões raciais (vou ignorar de antemão aqueles que vão objectar que somos todos da mesma raça – a humana), mas à questão de cor, aliás, parece que a raça é definida pela cor da pele.

Vou tergiversar um bocado. Na minha língua materna, guineense, raça é muito mais plurissignificativo, é sinónimo tanto da religião, como da etnia, da nacionalidade, entre outras divisões, mas raras vezes da cor; a cor é simplesmente a cor. Por exemplo, pode dar-se este diálogo: O fulano é de qual raça? “É cristão.”[1] Não, a sua raça? “Ah, ok! É budjuku (bijágo). Mas ele é vermelho (mulato)?  “Sim, a mãe dele é tuga[2]. Com isto, repito, raça significa muita coisa em guineense, mas quase nunca a cor, pelo menos quando o guineense se encontra entre os seus. No entanto, hoje com o aportuguesamento do guineense (tanto a língua como a pessoa) por parte dos mais lidos e que, portanto, se julgam mais civilizados e melhor falantes, a distinção entre etnia, religião e outras divisões sócio-antropo-culturais (eu sei lá o termo certo) tornou-se mais óbvia como em português, chegando mesmo alguns a criticar aqueles que ainda usam o termo raça como há uns quinze anos ainda era amplamente usado. Pronto, como não quero aqui falar da linguagem da raça, nem mesmo do seu conceito, mas dos seus problemas, vou ficar em como a diferença é usada para o prejuízo de outrem.

Os albinos na Tanzânia são discriminados pela sua cor e pelo medo que alguns curandeiros, bruxos ou xamãs vendem às pessoas contra eles. Os mais ilustrados sabem que o albinismo resulta de uma deficiência genética na produção de melanina, o responsável pela pigmentação da pele, o que lhes deixa muito desfavorecidos, mais fotossensíveis e atreitos ao cancro da pele (o que é piorado pelo sol da África). Mas como se isso não bastasse, ainda são discriminados por serem diferentes, alguns idiotas até acreditam que possuir uma parte do corpo dos albinos lhes trará boa sorte e usam-nos como amuletos (alguém se lembra do filme Distrito 9, onde um líder nigeriano praticava canibalismo confiante de ganhar mais poder dessa forma?) Alguns bruxos e curandeiros tanzanianos recomendam e encomendam partes de corpo de albinos, e logo há assassinos desalmados que tratam de caçá-los para prover ao bruxo, sem contar ainda com os linchamentos populares quando alguma desgraça é atribuída a eles.

Vou derivar outra vez. Na minha terra, havia o costume do infanticídio, deixando à beira do rio criança com alguma malformação genética (às vezes até com síndrome de down), à espera que o enchente a levasse, justificando depois que ela era irã (entidade sobrenatural quase sempre maléfica) e que se tranformara na sua forma verdadeira e seguido para o rio. Para eles, não matavam a criança, mas devolviam-na ao seu habitat natural. Este costume provavelmente ainda existe, porém mais discreto, considerando a criminalização do acto, embora ainda haja um fechar-os-olhos diante de tudo o que se chama de tradição, sem levar em conta a sua nocividade. Porém, nós não matamos os albinos.
Rishabh Ghimire, nepalês, antes e depois da operação, teve a sorte de ser considerado antes como a reencarnação de  deus Ganesha, pois na minha terra seria considerado uma incarnação maléfica e deixado morrer numa cerimónia estúpida qualquer



Práticas do género abundam pela África dentro, o que motiva o discurso condescendente dos ocidentais, chamando aos africanos de obscurecidos e recomendando-lhes a sua luz. Bem, em termos de práticas de crendices eu preferia comer a hóstia, que se trata de um canibalismo simbólico, que me fará ganhar protecção tanto nesta vida como na futura e far-me-á viver para sempre, do que ficar com a parte de corpo de um albino que me trará apenas protecção e boa sorte nesta vida; porém, em termos de luz, ambos os desgraçados, o ocidental e o tanzaniano, estão com a mesma falta de iluminação. É claro que o ocidente fez de Jesus branco e achou que isso legitima a sua crença; o ocidente desenvolveu, com o mundo árabe, a ciência, é claro, mas continua tão estúpido quanto antes, acreditando ainda em besteiras tais como engolir sémen faz bem à pele ou gente bonita tem melhores genes.

canadiano, albino, que faz parte da fundação
para ajudar os albinos de Tanzânia
Não pensem que estou a desculpar os actos criminosos desses imbecis tanzanianos,  ou que estou contra a reportagem, o porquê de eu ter dito aquilo lá em cima reside no tom condescendente de alguns entrevistados (ocidentais e africanos) e da própria repórter, que pelo sotaque me pareceu indiana. Havia motivos mais que de sobra para condescendência, reconheço, mas quando penso que esta reportagem foi feita para a televisão ocidental para mostrar o problema gerado pelo obscurantismo africano sem, no entanto, oportunamente, criar paralelos com obscurantismo ocidental sinto-me desgovernado. Ali lincha-se albinos por crendices supersticiosas, aqui os homossexuais e pretos por crendices superticio-religiosas e pseudo-científicas, ali penduram o dedo de um albino na garganta, aqui um crucifixo, e os obscurecidos são só aqueles? Pensem nisso.

Voltando à reportagem, foi cruel ver crianças albinas a viverem em espécies de campos de concentração porque o mundo lá fora é uma ameaça para elas. Revolta que tenham de viver assim, porque quando crescidas, fisicamente poderão estar capacitadas para se defenderem, mas psicologicamente, pela falta de contacto com a sociedade ameaçadora, largadas na selva social de repente, depois de anos de condicionamento atrás das grades protectoras, serão capazes de se desembaraçarem? Não pretendo que não devam ser protegidas, devem. Mas, por deus!, basta de proteger os ameaçados apenas quando ameaçados, tem que se criar mecanismos para responsabilizar os ameaçadores e responsabilizá-los de melhor maneira. O justo seria inverter os campos de concentração, porque o racismo e as crendices (as mal orientadas, pelo menos) destroem as hipóteses de viver em equilíbrio. 

No entanto, mal pelo pior, venha o anterior; se o ocidente não quiser tirar as traves nos próprios olhos e puder tirar a palha dos nossos, por deus!, que a tire. Se conseguirem criar sistemas que ajudem aos albinos sem que isso resulte em tais campos de concentração é bem-vinda a solução, porém, o que recomendo é, àqueles que se sentem tocados pelos problemas do género, alargarem o alcance da sua empatia para todos os problemas similares, criados simplesmente pela diferença, e façam forças para minimizar, até a sua extinção, esses preconceitos e os seus danos. E aos tanzanianos, e africanos, que cuidem dos seus próprios problemas e não fiquem parados e inactivos à espera do ocidente. 





[1] O que necessariamente não significa que professa a fé de Cristo, mas que não é muçulmano, ou então que bebe vinho (ou lhe é permitido beber); pode ser chamado também de bebedor.

[2] Tuga significa português, mas muitas vezes, em guineense, usamos o termo para significar branco. O branco é tuga, o preto é jazz.