A pobre Terra está emprenhada De cruéis humanos que não prestam, Que apenas a põem estagnada Em tramóia e males que a infestam.
A pobre Terra está padecendo Cruelmente por nós destruída, Pela guerra feroz que está vivendo Na nossa vontade carcomida, Que criando na vida planaltos, Procura obrar nossos sonhos altos.
Da cruel guerra pelo sucesso, Temos a guerra pelo descanso, Uma guerra intensa no balanço Duma vida compacta de excesso.
Temos guerra sem senso, nem nexo, Que é a destruidora universal, Feita com o consenso complexo De todo o indivíduo racional, E embora temamos seu amplexo Damos-lhe o discurso principal.
A pobre Terra está derruindo Empurrada plos que nela vivem, Que ferozmente vão destruindo Os dos melhores que nela existem:
Os patrimónios humanitários Dos belos sonhos hereditários De construir um novo p’raíso Onde não haja mais sofrimentos, Pra destruir o podre juízo Que neste mundo cria tormentos.
Querido Deus que estás no Céu, ou seja lá onde for que estejas, obrigado pela existência de Sara Tavares, isto é, se fores tu que fazes as pessoas e lhes atribuis capacidades. Querido Deus, por deus!, eu adoro a Sara Tavares.
Há uma semana que estou a ouvir a Sara Tavares e há uma semana que não consigo deixar de ouvi-la, o que contrasta fortemente com o facto de há uns cinco anos ao ouvi-la ter-me enfastiado depois de algumas músicas, aliás, das que tinha ouvido só me lembro de ter gostado de três, que, por acaso eram as mais publicitadas: Balancé, Mi Ma Bô e Nha Cretcheu,e talvezde mais uma ou outra. Agora eu sei que não estava preparado para Sara Tavares.
A primeira vez que ouvi falar de Sara Tavares foi praí em 1996, numa música de Black Company (que vai ganhar aqui o seu post),Snookar, fizeram uma referência a ela, e eu quis saber quem era, mas não conhecia a Internet nessa altura, e só dois anos mais tarde eu fuçaria nela pela primeira vez. O tempo passou e a Sara com ele, para em 2006 voltar de novo, quando vi na televisão o vídeo Balancê.
balancê (balancê)
Segundo a wikipedia foram cinco os álbuns de Sara Tavares, porém eu só ouvi quatro: Sara Tavares e Shout! (1996), Mi Ma Bô (1999), Balancê (2005) e Xinti (2009), e são deles que vou aqui falar.
SARA TAVARES E SHOUT!,como o nome indica é um trabalho de equipa feito pelos dois que deram o nome ao álbum. É um óptimo álbum de estreia, no entanto, não é muito empolgante, não sei por quê, talvez por causa da sua versatilidade, ou seja um grande leque de procura, que mostra todo o talento vocal de Sara Tavares, mas ao mesmo tempo é bastante disperso, passando a imagem de insegurança e de que ela ainda não tinha a certeza da sua veia, ou então que estava a tentar agradar aos troianos, mas não sabia quais. Ela anda aqui pelo soul, gospell, muito gospell, jazz, funk, fazendo covers que orgulham supermaneira os originais. É um álbum muito americano. Entretanto, vénia à retaguarda para os covers, destaco o tema de abertura, Escolhas, e os dois últimos, Barquinho de Esperança e Feira de Ladra, estes dois que apresentam uma pitada de música portuguesa, fado ou algo parecido, algum toque a morna cabo-verdiana, e, na falta de um termo, um ar de modernidade, e onde destaco o instrumento de percursão.
MI MA BÔé um trabalho espectacular, aqueles tiques que no álbum anterior Sara Tavares já tinha mostrado no álbum anterior aqui confirmam-se. Com uma maior segurança ela navega pelas sonoridades diversas, não parecendo procurar às cegas ou tentar apenas mostrar a sua incrível voz, mas parecia fazer o que gosta e quer mesmo com uma maior confiança, parece menos um álbum da editora do que o anterior. Aqui ela experimenta mais, usa uma base cabo-verdiana, com as mornas, coladeras, à qual funde outros ritmos, fado, soul, slow, e outros ritmos africanos. Apesar da tanta diversidade como no álbum anterior, este aqui é mais consistente, porque apresenta uma maior estabilidade e ligação entre os diferentes ritmos das faixas. Aqui só encontro uma música que digo não gostar e é logo aquela que abre o álbum, I’ve Got a Song in My Heart, por me parecer um tanto vulgar para o talento de Sara Tavares e não porque não seja boa. Entretanto destaco Mi Ma Bô, Nha Cretcheu, Eu Seie, estrela das estrelas, Voá Borboleta (esta chamou-me lágrimas aos olhos, não me perguntem por quê). Mi Ma Boé definitivamente um álbum flawless.
mi ma bô (mi ma bô)
BALANCÊ, considerando os trabalhos anteriores de Sara Tavares (a diferença rítmica entre o primeiro e o segundo), diz que ela se encontrou, ou, pelo menos, encontrou o seu estilo. Onde Mi Ma Bo parecia ser experimentação, Balancê faz parecer ser definitivação. A base africana, propriamente cabo-verdiana, existente aqui permite uma leitura única e contínua do álbum, considerando que aparece em todas as faixas; é certo que há variações estilísticas, no entanto, é mais coeso. O álbum abre estupendamente com a música homónima Balancé, faz um percurso dividido entre a calma e a agitação, destacando-se One Love, Amor É, Planeta Sukri, fechando com maestria com De Nua, um fusão de fado e batuque. Balancê é um álbum sólido, mas inferior a Mi Ma Bô.
one love (balancê)
XINTI, ou sentir em português (sei lá por que estou a traduzir os títulos) e calmo e embalante, tem uma alma diferente dos outros álbuns apesar da mesma impressão digital. Xinti é uma versão mais calma de Balancê, aliás, um contraste; se Balancê convida a balançar, Xinti convida a escutar. As bases são as mesmas e as músicas podiam misturar-se à vontade que não se perceberia a diferença. Por causa dos instrumentos que Sara Tavares usa e dos acordes similares, algumas músicas de Xinti cheiram a Balancê, o que inevitavelmente leva à comparação dos dois álbuns, no entanto a tónica diferente dois é que faz a cisão. Em Xinti destaco Sumanai, Ponto de Luz, Di Alma e Queda Livre, e uma menção honrosa para Caminhante (embora este não seja propriamente uma música, mas poesia). Xinti é para mim o segundo melhor álbum de Sara Tavares.
ponto de luz (xinti)
Sara Tavares tem uma bela poesia, uma voz de diamante (superior a ouro, é claro) e uma musicalidade própria, não que ela inventou esse género de fusão musical entre a africana e a ocidental, ou mais especificamente entre os ritmos tradicionais e o soul ou outro (da Guiné-Bissau, Zé Manel - vou falar dele aqui - faz o mesmo), mas ela criou o seu próprio estilo. Sara Tavares é uma música e uma poetisa que gostaria muito de saber voar e está sempre com os olhos nos caminhos e atenta aos seus passos, quer dizer, pela quantidade das vezes que repete isso nas suas músicas é o que deixa a entender.
Sara Tavares é uma artista que merece e deve ser conhecido, na minha plêiade de músicos ela já entrou e com pompa e circunstância.
'Stão a
arrancar-se das árvores os galhos,
Já lá estavam quase a ficar velhos,
Como que trocando entre si conselhos,
Saíram da inércia dos espantalhos,
Quiseram fazer a si próprios alhos,
Juraram procurar novos bodelhos,
Para de si poderem ser espelhos,
E ter sabedoria sem trabalhos.
Mas, por todos seus percorridos trilhos,
Só viram dificultosos escolhos
Que não puderam transpor sem sarilhos.
Tardiamente abriram-se-lhes os olhos,
Pra ver que os filhos entram em entulhos,
Quando enganam a mãe criando empulhos.
Combate de Marte e Minerva por Jacques-Louis David
Guerra, fera de manha
cruel,
Alimentando-se de balbúrdia
Vives contente num mar de fel,
Ofertando ao homem a discórdia.
Guerra, histeria secular,
Os sonhos humanos tu desfazes,
Cruel os apeias do seu lar,
Deixando-lhes assim incapazes
De parar a tua maldita onda
Que os seus idílios sem pena monda.
Guerra, ó trovador sepulcral,
Morrem inocentes escacadas
Pla raiva das balas alheadas,
Caindo para um fundo abismal.
Guerra, da vida o cruel contraste,
O mundo tu tens carbonizado,
Cravaste-nos na alma do ódio a haste
E o sonho deixas martirizado;
Té o belo amor tu envenenaste,
O viver deixando atemorizado.
Guerra, abominável canibal,
Que rega o chão com sangue e pavor,
Fazes o homem virar animal,
Negando assim as graças do amor.
Guerra, ó selvagem assassina,
Que com o dissídio nos domina,
Destróis sonhos feitos com calor,
Cada vez que a vida faz progresso,
Embebendo-a em lágrimas de dor,
Tu obriga-la a vir de regresso.
Eu
tive um sonho quadrado Quadrado imperfeito De arestas marcado Com amplo defeito Mas de sorriso encastoado
Tive um sonho tão giro Simples e redondo Com que a fuga eu firo É onde me escondo Quando o real não prefiro
Parecia um sonho raso Sempre fugindo covarde Mas tentado obter o vaso Antes que fosse tarde E me enterrasse em atraso
Disseram era um sonho obtuso Sob um ângulo marcante De um pensamento confuso Que num lance traficante Me confundia o fuso
Julgo que era um sonho recto E por ele me explorei Pra não tê-lo em veto À persistência implorei E adorei-o com afecto
Mas era um sonho agudo Tão grande e tão alto Gritante mas mudo Num rasado planalto Onde o ânimo eu grudo.
E tornou-se um sonho nulo Não por mim, não por outros Mas pelo seu próprio pulo Em seus desencontros Num real que não engulo
Naquela época, já lá vai tempo, quando escrevi isto, ainda acreditava em Deus e em toda a sua prole cristã, no entanto, apesar de hoje me sentir ateu, ainda acredito na força da fé.
Até quando vamos
continuar a dar nessa de vítima, a gritar que não nos querem deixar
soltar as asas rumo ao nosso sonho? Até quando vamos continuar a
culpar outras pessoas pela nossa falta de iniciativa? Até quando
vamos continuar a ser sugados para o fundo dessa mania de resignação,
não lutando para não ofender o destino?
Já
agora... por que não esta anedota? O francês, o senegalês e o
guineense vão falar com Deus. Chega o francês e pergunta: Mon
Dieu, quando é que a França vai alcançar
os EUA? Deus responde: Daqui a 100 anos. O francês começa a chorar
copiosamente, dizendo que não vai assistir a esse acontecimento.
Depois de tanto chorar, consola-se achando que os seus netos estarão
presentes. Vai o senegalês e pergunta ao mon
Dieu quando é que o Senegal irá alcançar a
França. Deus diz-lhe: Daqui a 200 anos. O senegalês cai em pranto.
Também consola-se dizendo que os netos dos seus bisnetos irão
assistir a isso. Chega então o guineense e pergunta, em termos de
imitação aos seus precedentes (atenção, quero mãos no peito,
pois o momento é solene): Mon Dieu, quando
é que a Guiné-Bissau irá alcançar o Senegal? Então, neste tão
dramático momento, Deus começa a chorar desalmadamente e sem
hipóteses de consolação, limpa as lágrimas e diz: Não te sei
dizer, meu filho, porque não vou assistir.
Isto
é para rir, mas também podia servir para chorar. Os mais
patrióticos revoltam-se, alguns, inclusive, choram, gritando: Não,
não dá mais, a Guiné não pode continuar assim.
Depois, limpam os olhos, tomam um refresco (não vá depois ficar mal
a garganta) e vão-se embora, dizendo: Anta
ami k’bin pa bin kumpu Bissau?
Sim,
senhor, está bem bonito! Ninguém veio “compor” Bissau, todos
vieram apenas para resolver os problemas pessoais, entretanto,
ninguém está a prejudicar Bissau, só os outros é que o estão a
fazer.
Quando
um funcionário se apropria do material que pertence ao local onde
trabalha, não sente que rouba, não sente que está a tomar o que
não é dele, porque, e simplesmente porque, sapu
ta kume si labur. Em boa verdade, eu nunca
soube que o sapo era lavrador. E acho que é por isso que temo-los
tanto a infestar a nossa cultura, mascarando-se de príncipes
desencantados. Outros funcionários até são mais simpáticos com os
materiais do escritório que vão pedi-los ao director: DG,
posso levar aquela .... que já não funciona?
Isso talvez nos ajude a perceber por que razão se faz muitas
requisições nos ministérios e serviços de trabalho e nada
funciona. Não tenho a competência para dizer que aquela .... que
não funciona que se pede ao DG é a que funciona melhor, mas posso
fazer essa sugestão.
E
falando em DG, tornou-se um hábito as pessoas perderem o nome de
baptismo conforme o cargo que estão a ocupar. O Marcos já não é
Marcos, deve ser chamado DG, o Carlos gosta mais de Presi, o ministro
quer doutor com todas as letras... E o povo, quer o quê? O povo não
sabe o que quer, pois também não está para “compor” Bissau,
porque já escolheu quem deve fazê-lo.
Tornou-se
extremamente confortável ninguém se responsabilizar pelo que deve
fazer, passando sempre as culpas para outras pessoas. Não
consigo andar porque não me deixam. Não vou tentar ganhar a
confiança de ninguém, porque ninguém confia em mim.Quero lá saber do que os outros dizem, porque
isso não me impede de ser o que sou.
Citações como estas são infindáveis, o que leva a questionar: se
ninguém se quer mexer, como é que se poderá empurrar a Guiné?
Será
que alguma vez alguém parou para pensar (pois eu ando a pensar) que
para resolver o problema da Guiné é preciso largar esta mentalidade
passiva e retrógrada de dizer: i ka ami k’
na kumpu Bissau?
Imaginemos
um cenário ao contrário, onde todos achassem que deviam ser eles a
“compor” Bissau. Um cenário onde o lavrador quer dar a sua ajuda
e vai para o campo lavrar, em vez de vir vender fuka-n’djai
e pastas de dentes nos passeios dos mercados. Um cenário onde se
compra de facto os tractores referidos no orçamento do Estado para
ajudar o camponês. Um cenário onde o único desvio de procedimento
seja começar mesmo a “compor” Bissau, em vez de sugá-lo até ao
tutano, como se está a fazer. Parece utópico, mas pode acontecer.
Ainda
hoje ouvi alguém a dizer: Antes não havia
lixo na Guiné, esses
nánias é que no-lo
trouxeram. É esse um dos nossos problemas.
Nunca fazemos nada, como já disse antes, só outros é que fazem.
Não fazemos nada de bom, porque não sabemos ou não queremos ou não
somos nós que viemos “compor” Bissau; e não fazemos nada de
mau, porque só outros é que o fazem. Afinal estamos aqui só para
enfeitar os relatórios do recenseamento populacional ou para sermos
realmente chamados de guineenses, patrióticos ou não, mas
verdadeiramente guineenses?
Alguns
acham que o único trabalho para desenvolver um país se dá apenas
lá no topo da montanha, onde estão os djintons,
mas se esses alguns começassem a tratar do sopé, talvez aqueles que
sobem não o fariam com os sapatos sujos, porque, no final de tudo, a
porcaria cai sempre para baixo.
Até
quando se vai ficar a perguntar por que é que não avançamos, se
ainda hoje as pessoas estão amarradas fortemente às tradições,
não querendo moldar a mente de forma nenhuma, adaptando-se às
mudanças? Pessoas são mortas porque são acusadas de feitiçaria;
pessoas não são julgadas porque é a serpente
que engoliu o dinheiro (se fosse eu, de certeza que já mo tinham
feito vomitar); pessoas não são responsabilizadas porque teme-se
que vão mandjir para se vingar. Afinal até onde iremos (se é que
estamos a ir e não a voltar)?
Ninguém
tem culpa de sermos o que somos; ninguém tem culpa de sermos pobres
e tolos, amontons no geral. Somo-lo porque queremos e simplesmente
por isso.
Não
esperem que eu vá apresentar a solução para a Guiné
(contenham-se), mas faço algumas
sugestões: Se os ministros realmente trabalhassem em vez de fazer
discursos, cortar fitas, dar emprego aos parentes (cunhados e amigos
das amantes) e efectivá-los em detrimento dos que trabalham há anos
no mesmo posto, ainda com estatuto de temporários (e realmente
merecem-no, pois até o nome do tempo tomaram); se se parasse com
essa de inventar institutos que não têm nenhuma utilidade, senão a
de pagar promessas pré-eleitorais feitas a determinadas pessoas; se
se deixasse de disponibilizar salários para funcionários fantasmas
(em todas as acepções da palavra); se as viagens de negócios
estatuais (ou sei lá como é que se diz) rareassem a favor do
pagamento dos salários; se os congressos parlamentares começassem a
ter sentido e se discutisse neles com a finalidade de chegar a uma
saída e não apenas para encher os bolsos dos deputados com perdiem;
se se lembrassem dos professores e estes se
lembrassem que a escola serve para educar e não apenas para instruir
ou tentar levar as alunas para a cama; se se lembrassem dos médicos
e estes se lembrassem que paracetamol não faz milagres e deixassem
de receitá-lo para provocar aborto nas adolescentes e jovens que não
se lembram que ainda têm um amanhã a defender e portanto devem
evitar comportamentos comprometedores ou destruidores do futuro; se
se lembrassem de pôr mais caixotes de lixo na estrada e de
disponibilizar fundos para a sua recolha, e o povo se lembrasse de
não deitar lixo, como quem tem caiãbra na mão, fora desses poucos
caixotes; se o povo começasse a trabalhar de verdade e não somente
esperar; se se desse ao povo motivação necessária; não acham que
a Guiné poderia mudar?
Eu
não sei a solução dos problemas, mas recomendo a todos uma leitura
das teses de Maslow, porque se não se trocar verdadeiramente de
mentalidade, em vez de falar só dela e esquecê-la logo depois,
continuaremos a sempre a perguntar até quando
a vamos estar onde estamos.
P.S.: Quando escrevi este artigo, nunca tinha experimentado a sério estar no campo, debaixo de um sol ardente, sem hipóteses de sombreamento, por isso, peço desculpas aos lavradores. Eu não conseguiria fazer o vosso trabalho e decerto vinha também vender pastas de dentes a Bissau. Mil desculpas!
Ainda estou para saber
por que raio gosto de filmes que todos massacram. Marte Precisa de Mães, uma animação da Disney, foi o último filme que vi e quando
fui ao IMDB, tinha uma pontuação bastante rasca, nem sequer chegava
a mediano. Hum, isso assusta, sabem, pois leva-nos a pôr em questão
a nossa capacidade de apreciação, perguntar: por que raio só eu
gosto disto? Mas não, mas não, não se trata de mim, acho que Marte
Precisa de Mães tocou alguns pontos que para os americanos é uma
blasfémia, o que resultou num ataque de críticos que se espalhou
para o mundo todo, aliás, sabe-se que os críticos do lado de cá
não fazem mais nada do que concordar com os americanos, se eles
dizem lá que um filme é bom, estes aqui secundam, o que explica que
filmes como A Ressaca tenham sido muito bem falados quando talvez só
tenham piada para a cultura americana.
Marte Precisa de Mães é
um filme que diverte, com bastante fluência e que se consome
rapidamente, e vou revê-lo com os meus sobrinhos para tirar a prova
dos nove. Porém, o que vou fazer aqui é tentar perceber por que
razão o filme foi maltratado apesar do seu tema, o que fará com que
tenha spoilers.
Eis a história: Milo, um
rapazinho, num daqueles momentos frequentes de ira que todas as
crianças têm, diz à sua mãe que estaria melhor sem ela, e os
marcianos que precisavam de mãe, uma boa mãe que saiba educar, e
que por acaso estavam de olho na mãe dele, resolveram raptá-la para
ir educar as suas crianças. E Milo seguiu a mãe e entrou na nave,
indo acabar em Marte, onde conhece Gribbles, um humano que há vinte
e cinco anos atrás vira a sua mãe a ser raptado e que desde essa
altura viveu nas catacumbas de Marte. A entrar na aventura aparece
Ki, uma marciana sorridente (linda e com um sorriso cativante, deixem-me dizer, apesar da sua
feição marciana) por quem Gribbles acaba se apaixonando. Como vilã
temos a Supervisora, uma espécie de amazona que resolve criar uma
sociedade livre de homens, porque os gajos são preguiçosos e
infantis.
trailer
Eis a história e ao
mesmo tempo os problemas do filme, vou elencar o que desgostou a
crítica americana:
A relação entre
Gribbles e Ki, visto um ser humano e outro marciano. Se a relação
entre um preto e um branco, na América ainda hoje não é
considerado uma relação normal, precisando do apodo interracial
para poder entrar na categoria de relação, imaginem como eles
reagem à uma relação inter-especiés. Não importa que Ki
manifeste emoção, não importa que seja tão inteligente ou mais
inteligente que Gribbles, não importa que ela seja, permitam-me
dizer, um ser superior, não,
o que conta é que ela não é humana, portanto isso é
bestialidade. Aliás, nem importa que Gribbles se sinta mais
marciano do que terrestre por ter passado a vida toda em Marte e com
os marcianos, não, ele não é marciano. Tal como os árabes não
são americanos, tenham ou não nascidos ali, os pretos também não,
os latinos, os chineses, etc, o que justifica os prefixos
afro-americano, sino-americano, entre outros. Nesse sentido, aceitar
o filme, e não classificá-lo mal, seria aceitar a ideia de uma
relação inter-especial, o que para eles é de muito mau gosto.
A
ideia de que nós, os homens masculinos, somos realmente
preguiçosos. No Marte há dois mundo o de cima, onde vivem as
mulheres, e o de baixo, a lixeira, onde vivem os homens, enquanto o
de cima é bem desenvolvido, as mulheres falam, escrever, são
inteligentes, o de baixo, onde vão parar os homens é bastante
primitivo, os homens nem falar sabem, a única coisa que fazem é
esfregarem-se um no outro, revelando sentimentos homo-afectivos (por
favor não confundir com homossexual). Parece que o filme quer dizer
que os homens só são salvos de não serem gays pela existência da
mulher, e os americanos não querem ver isso, não querem saber que
em cada ser humano há um gay que nos leva a fazer amizades fortes e
duradouras com pessoas do mesmo sexo, o que nos leva a querer a
precensa do amigo tal como queremos da namorada, sendo a relação
sexual o único diferencial.
Esse
mundo dividido de Marte, onde a vilã, a supervisora, é
consequentemente feminina, é também um ataque aos feministas, pois
para não o ser, se o mundo fosse governado por mulheres, tinha de
ser justo e imparcial. Nesse sentido, os politicamente correctos
americanos tinham de atacar o filme (embora, não me pareça que
este ponto seja o que realmente os preocupa, mas sim a sua
masculinidade arranhada) usando isso como desculpa.
Outra
desculpa talvez seja a questão mãe. Milos define a mãe como uma
empregada que nos ama. E eles não gostam dessa definição, acham
que o conceito mãe vai mais longe, e que essa é uma ideia errada
para passar às crianças. Porém, na verdade, o que é mãe, senão
aquela empregada, que ainda por cima é patroa, pois dá-nos ordens,
porém que nos ama e por quem temos amor. Que mãe se importa de ser
empregada do seu filho, desde que este lhe diga todos os dias que a
ama ou lhe mostra todos os dias esse amor? O que irrita os
americanos é terem de reconhecer que sim, que eles usam mesmo a mãe
como empregada, por ela ser mãe, mulher, o segundo da hierarquia
familiar.
A referência ao comunismo, o planeta vermelho e tal, e o constante ataque americano a ele pelos americanos, feito por Gribbles, porque é um golpe no orgulho capitalista. Ou seja, o filme é uma inversão polar de Marte Ataca, visto que estamos tanto a observar a eles, como eles a nós, e pelo que parece a objectivo deles é mais cândido.
Enfim,
o filme mostra várias coisas, talvez até mesmo uma apoligia ao
cannabis, mostrando como os hippies davam cores à vida, mostrando
como Marte ficou mais animado depois, sob o lema: O poder
da flores, todo esse conjunto,
deixa de ser um ensaio, para ser uma ofensa para as crianças,
portanto, para fazer do Marte Precisa de Mães um mau filme. No
entanto, se 60% de adultos não conseguem fazer do filme esta leitura
que eu fiz, imaginem se 90 % de crianças conseguiriam. Portanto, a
desculpa para massacrar o filme é para salvar o ego e justificar as
fobias de uma determinada classe americana e não porque o filme não
diverte ou não ensina. Confesso que eu também fiquei preocupado com
a relação inter-especial, mas será essa a razão para negar todo o
valor do filme.
Em
termos técnicos, a animação é muito boa, foi usada a técnica de
captura, tendo actores reais interpretado os personagens, ou seja,
não houve apenas uma interpretação de voz. E houve bastante
realismo nas cenas, e mesmo na história, considerando que se tomou
em conta a questão de gravidade, ou a impossibilidade de respirar
fora da cápsula, e se puderam os marcianos a respirar como os
humanos compreende-se que foi para dinamizar a história. Porém,
isso não tem nada a ver com a técnica. O filme é visualmente
aparatoso, algumas renderizações têm um aspecto plástico, mas no
geral está bem definido e é magnificado pela utilização da luz e cor.
Marte
Precisa de Mães, não se enganem pela crítica, vejam pelos próprios
olhos, é um filme bem divertido, com, pelo menos, uma personagem carismática, e que arranca umas boas gargalhadas.
Porém, também é um filme que diz: Oh, Disney, quando
quiseres fazer uma animação, não te esqueças de levar a Pixar
junto.