20 de novembro de 2018

UM PROBLEMA CHAMADO VERBO SER

Quando Moisés foi à montanha falar com a sarça ardente que, por acaso, era deus, este se definiu assim: EU SOU. (Se não estivesse com preguiça agora, iria tergiversar que ele incendiou alguma árvore aromática que lhe proporcionou um belo... hmm... trip. Mas, vamulá!).

Estava eu no EU SOU.


Deus definiu-se como EU SOU, talvez para dizer o quão grandioso e omnipresente era, tipo, eu sou o céu, eu sou a terra, eu sou o jagudi, eu sou o falcão, eu sou o padre com a bíblia na mão, eu sou a mercadoria escrava a ser abençoada antes de ser embarcada no porão... 'tás a topar a cena?... eu sou o fogo que queima as bruxas, mas... caramba!... eu sou também a puta da bruxa. Enfim, eu sou a contradição.

Mas se o EU SOU de deus trazia a ideia de englobar tudo, o EU SOU humano é apenas uma locução para individualizar, separar e classificar.

O VERBO SER parece SER o fundamento da existência. "Eu penso, logo existo", definirá o ser? A mesa existe, mas não pensa. Mas a mesa também É, sem se proclamar SER. Não sei o que define o SER, mas sei que é uma assunção completamente  humana, pelo menos dentro do espectro do pensamento conhecido; pois não faço ideia se também as bactérias no interior dos vírus dos nossos cérebros reclamam para si o sentido do ser, ou da existência.

Creio que o SER e o EXISTIR, como já discorri algures , são categorias diferentes. Assumo o ser como uma existência consciente e o existir como um estar presente de maneira contável, classificável ou indicável.

O EU SOU categoriza-me, procura dar-me uma definição básica... EU SOU qualquer coisa, e é como se essa qualquer coisa não pode ser outra coisa na mesma categoria de coisas. EU SOU não te deixa a hipótese de não ser. EU SOU guineense, EU SOU português, EU SOU homem, EU SOU mulher, EU SOU preto, EU SOU branco, EU SOU um trolha, EU sou um arquiteto, EU SOU EU SOU Marinho, EU SOU da gasolina... Mas se EU SOU tanta coisa, qual é a validade do EU SOU?

Aristotélicamente falando, os conceitos universais da lógica humana baseiam-se na "IDENTIDADE": "algo" é sempre "algo", esse "algo"; na "NÃO-CONTRADIÇÃO: se "algo" é igual a "aquilo", então "aquilo" é igual a "algo"; e ainda no "TERCEIRO-EXCLUÍDO": "algo" não pode ser "algo" e "não-ser-algo" ao mesmo tempo. Matematicamente, a=a, se a=b, então

b=a, e se a=b=c então c=/a não pode ser. Mas na realidade nós somos humanos, somos os que provam matematicamente que 1=2 (vá, google).

Concentrando-me no SER. O VERBO está tão presente, que até Tarzan começou por aprender: "mim, Tarzan; tu, Jane.". Sim, eu sei que, como já dissera, o ser define a consciência, que é o óculo pelo qual percebemos o mundo. Talvez seja por isso que sempre que vamos aprender uma língua nova, começamos pelo VERBO SER.

O que vou chamar aqui a base da língua, o VERBO SER, combinado com os PRONOMES PESSOAIS (há línguas que até têm pronomes para "existências" que não são pessoas), demarca já a forma das relações e como nos vamos ver ou como temos de ver os outros. É natural, sim é, uma vez que o entendimento é pessoal e nasce da combinação entre as perceções e as sensações de cada um de nós, codificados em experiências e memórias às quais recorremos sempre quando estamos em frente de novas situações. Portanto, sem exceção, o entendimento do mundo é sempre pessoal. Todavia, enterramo-nos tanto nessa ideia de EU que temos tanta dificuldade em nos colocarmos na última categoria do VERBO SER, o que em nada atrapalharia a formulação do SER.


A organização dos pronomes pessoais também não está por acaso.

EU SOU - primeiro eu, mesmo que tu já estivesses cá antes. Aqui entra o sentido da identidade, sem no entanto envolver a noção de "idêntico"; é, portanto, mais identidade, no sentido de "unicidade". Eu, ego, o meu mundo, a minha existência que estou a partilhar com... TU.

TU ÉS - és um corpo fora do EU, mas que reconheço a existência. És o segundo nível do ser. És o "próximo" com quem estou em contacto direto, de quem tanto posso querer proximidade como afastamento.

EL/ É - o terceiro nível. Uma referência mais distante geralmente. O EL/ costuma referir-se ao ausente.

NÓS SOMOS - aqui entra a identidade, com um sentido mais próximo do "idêntico". Quando aparece quer dizer que houve inclusão de TU, TUs, e talvez de EL/.

VOCÊS SÃO (VÓS SÓIS) - outra categorização de outros, também fora do sentido da individualidade, ou talvez num sentido de individualidade agrupada, mais ainda assim, também com uma demarcada próximidade.

EL/S SÃO - o último nível do ser. El/s são é até mais distante do que EL/ É, pois enquanto este individualiza, o outro generaliza e esteriotipa.

 

O EU SOU até poderia não ser tão problemático se logo a seguir não viesse o TU ÉS. E na verdade, nem o TU ÉS seria também problemático se não servisse apenas para categorizar o OUTRO. Eu sei que podem ambos servir para outra coisa, mas vou focar-me aqui no facto de apenas fronteirizarem e distinguirem. Quando o TU ÉS aparece, o EU SOU começa a analisar os pormenores à procura de semelhanças para ser atraído para o TU ou então para justificar um afastamento. O OUTRO carrega sempre um valor de fronteiras. Os mandingas chamaram aos fulbés de "fulas", significando "dois", proutras palavras, mandinga primeiro, fula depois, e os fulas aceitaram o títulos e retorquiram que significa que um fula vale por dois mandingas e os últimos o sabem.

Ah, estava a divagar dentro da minha própria divagação... altamente, isso eleva em grande a qualidade divagatória.

 

O VERBO SER é categórico, não flexibiliza. O VERBO SER é redutor. O VERBO SER justifica as diferenças e as diferenciações. O VERBO SER é fodjido, cara.

Geralmente o EU SOU valida o mundo através de si mesmo, o que até faz sentido uma vez que o mundo que conhece depende da sua capacidade perceptora. E como recentemente fui ensinado, a morte é branca, uma vez que o escuro é a consciência de ter os olhos fechados; e a morte pressupõe ausência da consciência. O meu mundo cessa com a morte do EU SOU, portanto, o EU SOU valida o mundo pela própria perspetiva.

 E... o EU SOU não se casa muito bem com EL-É, porque geralmente só cita o EL-É quando está com o TU ÉS, e o EL-É está ausente, ou quando quer meter o EL-É em alguma caixa, independentemente da vontade deste. E nesse então entra em jogo o NÓS SOMOS, aparentemente agregador, todavia, separatista.

O VERBO SER diz NÓS SOMOS isto, vocês e ELES SÃO aquilo, e é através do SER que ou vamos comer juntos ou separados.


Mas eu só gostava de poder NÃO-SER, imagina a liberdade e a fluidez que poderiam advir do NÃO-SER. Imagina não ter de ser guineense só porque nasci na Guiné, não ter de precisar de um passaporte para viajar entre fronteiras fictícias; imagina não ter de ser homem para ser considerado capaz e merecedor de oportunidades; imagina não ter de ser preto para não ter de andar sempre a levantar escudos contra o racismo ou a entrar em discussões estúpidas e vazia; imagina não ter de ser branco para não ter de passar o tempo todo a justificar o não-racismo; imagina... e imagina poder ser cristão, muçulmano, ateu, jeová, adventista, budista e filhodaputista, tudo ao mesmo tempo.

 

Epá, o NÃO-SER abre imensas possibilidades

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