20 de dezembro de 2021

MANIFESTO DEPRIMENTE DO MOVIMENTO DEPRESSIVO

Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos do mundo inteiro, unamo-nos.
Juntos somos mais fortes e conquistaremos este monte de merda desta sociedade mercantil.
Unamo-nos contra os médicos e contra os psiquiatras e contra as farmacêuticas e, principalmente, contra os gurus e os vigaristas de auto-ajuda que se escondem atrás da capa da depressofobia só para nos entupir de pílulas e conceitos pífios de felicidade, yogados e ahuyascados.
Quem precisa de felicidade? Pfffft!
Sem chacota, mas felicidade no fim das contas é coisa para fracotes. Nós somos fortes, com força à fartote, por isso o nosso mote é navegar neste bote, culpando ou não a sorte.
Navegamos pela vida deprimidos, de peito enchido porque temos costas largas, temos costas fortes e aguentamos a pressão, por isso estamos deprimidos, mas não explodidos. Gente sem vértebra não se deprime, gente sem vértebra se comprime, pois vive no medo e besta, tira os dedos da testa e se suprime perante as regras patetas que a oprime. Mas nós, naaaaaaão, nós ficamos deprimidos, porque tentamos dar sentido a este mundo regido por regras ridículas.
Não dá para ser feliz sem ser egoísta, numa falsa conquista dos prazeres da vida; não dá pra ser feliz sem se ser hedonista e sugar a vida sem amanhã à vista e fazer vista grossa a toda a fossa à nossa volta, e praticar o culto antigo de venerar o próprio umbigo.

Felicidade, pfffft, isso é coisa pra fracotes, nós, deprimidos, nós somos fortes.
Estão a tentar enganar-nos, estão a tentar afundar-nos numa miséria séria e fétida para passarmos por essa vida etérea a sentirmos pena da nossa própria cena, mas é bem claro neste cenário quem é que envenena a quem.
Pensem bem, essa coisa de pensamento positivo, pfffft, é coisa de mente pequena. É claro que estar triste o tempo todo é de um modo um problema, mas estar a sorrir o tempo todo é de todo um problema.

Tanto o riso como o choro lavam a alma, portanto neguemos essa barca onde gente se enfarta nos remos a todos os termos a tentar rejeitar os sentimentos que temos e a chamá-los de prejudiciais.
Há quem ria mais, há quem chore mais, há quem seja capaz de transformar um sentimento num outro de outro tento, há quem veja tristeza na alegria, há quem veja alegria na tristeza, há quem suje a pureza, há quem se refastele com sageza no sujo.
Ninguém está feliz, andam todos por aí a empinar o nariz numa atitude que diz que são os maiorais no sorrir, mas, é, camaradas, tudo a fingir. Tudo a fingir.
Nós, nós temos o dever de manifestar a propriedade da nossa depressão, e com isso acordar o resto da população estrangulada, a quem é empurrada a obrigação de ser feliz.
Pensamentos positivos a tempo inteiro é doentio. A tristeza faz parte da vida, faz parte do balanço, todas as emoções fazem parte da vida. Não devemos é deixar uma dominar as restantes, mas agora quando todos nos dizem que somos errados porque estamos com depressão, porra, isso é opressão.
Deprimidos de todos o mundo, unamo-nos, porque só um idiota, sem capacidade de reflexão e de análise, passa por esta vida, neste mundo demente de fundo deprimente, sem se sentir deprimido.
Quando nos sentirmos sufocados e sem saída, só temos que ver que nesta vida há tanta e muita gente como nós e em cuja voz questões como as nossas são refletidas. Muita coisa assim muda, pois se a nossa alma estiver muda, só temos de pedir ajuda, pois há muitos deprimidos à escuta. Mas livros de auto-ajuda... não, nada, só ajudam a quem os escreve, o teu bolso fica leve, mas a tua alma ainda ferve. Eles só estão interessados em explorar a tua fragilidade, não te querem e nem podem ajudar de verdade, pois, senão, com tantos livros de auto-ajuda, teríamos menos gente deprimida e mais gente autoconsciente, menos gente iludida e menos gente a dizer lérias para ganhar dinheiro com a nossa miséria.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.
Deprimidos unidos, jamais serão vencidos.


16 de dezembro de 2021

DIÁRIO DE UM ETNÓLOGO GUINEENSE NA EUROPA (dia 8 )

 15 de dezembro – dia do pretuguês


Ai, minha mãe de mim que me pariu! A Tugalândia é complicada. Por mais que tente não consigo acompanhar as coisas, é tudo tão rápido e tão sacalatado. Antes de acabar de pensar numa coisa para a entender, já está a acontecer outra.

Tivemos uma coisa aqui chamada Web Summit Con, uma mistura de Sumo e Kumite, onde pessoas pagam muito dinheiro para entrar num ringue ou fazer apostas para conseguir o número de telefone de algum alguém endinheirado. A Camarada Municipal de Lisboa diz que é para ajudar os pobres, só que “con”, na língua dos tugas ingleses, que são os donos desta Web Summit Con significa trapacear e intrujar pessoas. Eu pensava que tinha a ver com homem-aranha, mas afinal, nada disso. Mas vou… hei de pensar sobre isso com mais calma… algum dia… eventualmente.

Bem, antes de mais (ou ‘depois’ de mais, considerando que já escrevi dois parágrafos), nos últimos tempos não escrevi nada e desta vez é por preguiça mesmo… Quer dizer, não é preguiça preguiça propriamente, mas vontade de inação. Acordar de madrugada para voltar à casa à noite não deixa tempo para pensamentos e reflexões, principalmente quando tudo parece acontecer tão rápido, a cabeça fica tão cansada que só se quer ver um filme de Vandam e dormir. Por isso digo que não é preguiça, porque preguiça é um luxo hoje que na Tugalândia é destinado só a alguns. O tio Paulo Bano sempre me disse que a preguiça é uma escolha, mas eu não o entendia. Mas não é só a preguiça que é destinado a alguns, tem outras coisas também.

Muitas coisas têm acontecido por cá que eu deixo passar, não por serem pouco relevantes, mas porque são bastante recorrentes que muitos até pensam que fazem parte da normalidade. Não estou a falar da PSP, nem dos banqueiros tugas que roubam milhões e lesadores tugas que fogem da justiça, e são bem guardados na sua casa, com segurança à porta, enquanto miúdos que roubam telemóveis aparecem mortos na prisão, aparentemente pelos próprios guardas, menos ainda do gajo multado porque filmou um polícia a abusar da sua autoridade sobre pretos. Estou a falar da tugaliose… aquela doença que imbeciliza nacionalistas.

O orgulho tuga é manifestado em quatro elementos: os descobrimentos, o Santo António Salazar, o 25 de Abril e o Cristão Ronaldo e todos eles parecem contraditórios, e todos eles têm estátuas…

… Quê!!!!!? Salazar não tem? Então e aquela da Santa Comba Dão? E aquela dos Descobrimentos, que é tão venerada hoje, não é obra do Santo Salazar? O tio Paulo Bano disse que os tugas quando querem ser conhecidos constroem coisas gigantescas e dizem que é para o povo, mas aquilo fica com o nome deles, por isso andam sempre a inaugurar coisas e a cortar fitas. Parece que ninguém entende que o Santo Salazar não precisa ter a sua cara escarrapachada num jardim qualquer para ser imortalizado? O maior tuga de sempre precisa lá de estátuas quando toda a Tugalândia e os Pão-de-Ló são sua criação… (Errata: não é Pão-de-ló, mas PALOP, só que a maneira como são comidos pela Tugalândia faz deles mesmo pão-de-ló.) A questão das estátuas tem sido uma guerra nos últimos tempos.

Há dias um tal Mário Lúcido Sousa escreveu que Lisboa não era africana o suficiente e que o Marquês de Pombal não sabe falar caboverdiano e só ficava ali na praça, no Tarrafal, sem fazer nada, enquanto miúdos pulavam sobre a sua cabeça, e falou mal das estátuas. Alguns tugas leram e não gostaram e um deles que sofre de tugaliose crónica, um tal Miguel Ventura... não, Miguel Sousa Dav'ares (acho que já não dá mais ares... sabem é aquele gajo que chamou o ex-presidente tuga, o Babaco, de palhaço), sentiu-se ofendido e, num furor agalmatófilo, todo cavaleiro em defesa da honra das estátuas, escreveu uma rabulice contra esse Mário Lúcido de Sousa, onde vomitou tanta besteira e tanto racismo encardido de meter orgulho ao André Tontura.

Eu primeiro pensei, ahhhhh, são todos primos, Mário Sousa, Miguel Sousa, Marmelo Rebelde de Sousa… entre primo e primo não se mete a… o... (como é que rimo?)… eles que são primos que se entendam. Mas depois não entendi nada do que o Miguel Dav’ares dizia, porque… Então Miguel, decida-se, omé. Portugal é colonialista ou não é? Percebo que se deve ter baldado a algumas aulas de história (na verdade, mesmo que tivesse ido às aulas, não lhe iriam ensinar isso), mas os portugueses não morreram em Cabo Verde a lutar contra o fascismo e o colonialismo, ná, ná, menino, eles levaram-nos lá. Os portugueses não morreram em nenhuma das áfricas a lutar contra o fascismo e o colonialismo, eles iam para lá matar uns pretos para evitarem ser presos aqui. Entende, Miguel, entende? Que o menino se tenha baldado às aulas de história até que se compreende, além do mais deixou o liceu há já não sei quantas décadas e na altura era fascismo declarado, por isso, compreende-se que a sua memória possa estar obnubilada, mas, Miguel, como um comentador de atualidades, dizer que Lisboa tem um monumento em homenagem às vitimas da escravatura portuguesa não é estar desinformado? Qual monumento? O Colombo? Olha, os miúdos pretos gostam do Colombo, mas não acho que eles pensam que é um monumento, talvez seja porque foram os seus pais e irmãos que bumbaram duro para o ereger e são as suas mães e irmãs que o mantêm limpo, logo sentem-se no direito de apropriar.

O Miguel Sousa ainda diz que o Lúcido Sousa não sabe usar o pretuguês, a “extraordinária língua que lhe deixámos em herança” (palavras do primeiro), e depois o mesmo diz “não há chicotes nem correntes em minha casa e não oiço uivos de dor vindos da sanzala dos meus escravos”. O Miguel não se decide, quer estar com o pé nos dois lados: faz parte dos que deixaram a língua como herança, mas não tem escravos. Sou dos colonialistas… Mas não sou… Estou lá… Não estou… Estou lá… Não estou… Miguel olha para esquerda e pisca-pisca, Miguel olha para a direita e pisca-pisca.

E o Miguel ainda acha que o português da Tugalândia é que é o tal, quando por todo o mundo há mais gente a falar o pretuguês. Miguel, toda a língua tem as suas variantes e todas as variantes são válidas, mas se quisermos ser democráticos, vamos fazer aritmética básica. Há 10 milhões na Tugalândia a falar português, e desses há um grande número vindo dos Pão-de-Ló e muitos pretos nascidos cá; nos Pão-de-Ló há cerca de 50 milhões (na verdade, boa parte desses não fala a língua), no Brazil são mais de 250 milhões. Por isso, hoje, pela graça que me foi concedida como herdeiro da língua, tal e qual foi concedido ao Miguel, eu, de acordo com a proposta do Apolo do Caralho e do Marinho que Pina, rebatizo a língua como PRETUGUÊS. Podia ser brasileiro, mas considerando que maioria dos brasileiros é preta, então PRETUGUÊS faz mais sentido. E para dar mais solenidade, o dia 15 DE DEZEMBRO passa oficialmente a ser o DIA DO PRETUGUÊS, o que se justifica pelo seguinte:

Quando o Mário Lúcido escreveu que Lisboa não era africana o suficiente, a Camarada Municipal de Lisboa disse: “Não, credo! Nós não somos racistas! Com que então já vos prometemos uma estátua em memória das vossas vítimas e ainda andam com essa boca por aí?”

O que a Camarada Muncipal de Lisboa parece não ter percebido é que um agressor fazer um monumento em memória da vítima é como um gajo entrar na casa de alguém violar a filha desse alguém e depois fazer um monumento à violação no seu próprio quintal e dizer ao pai que é para apaziguar (onde anda a filha no meio disso?). Contudo, acho que não é só a Camarada que não percebe isso, mas muitos dos pretugueses também…

Continuando, a Camarada Municipal, para mostrar como Lisboa é bem africana, resolve fazer no dia 13 de dezembro uma festa para premiar os 100 pretos mais cool da PRETUGALÂNDIA, os pretos com mais seguidores no facegram, os mais influentes … Ahhhhh…
Pera, pera, disseram-me que a iniciativa não foi da Camarada Municipal mas de uns pretos que andam a brincar a individualismo em nome de uma causa que se pretende comunitária e em nome de todo um grupo mal representado. É tudo um processo de reparação, dizem. Maaaaaas… reparação faz-se a nível individual?

Gostaria que a minha mãe tivesse sido nomeada como a empregada de limpeza mais influente de Lisboa, mas penso que essa classe não se considera. Pois, parece que as pessoas que não podem se dar ao luxo de preguiça não são chamadas para este tipo de evento. Afinal andam apenas naquela velha cerimónia de cultuar o próprio umbigo. O Web Summit Con pretuguês. O capitalismo a colonizar as mentes e as vontades.

Por isso acho a Tugalândia complicada, o tuga olha muito para o seu próprio umbigo, não importa a sua cor da pele, defende sempre a tugalidade.

E falando nisso da defesa da tugalidade do tuguismo, há outra batalha para além da dos Sousas, é entre uma tal Grada Kizomba e um tal Nuno Crepes, que é sobre quem é o tuga mais apto para representar a Tugalândia num bi-anal qualquer em Veneza. A Kizomba disse que a melhor maneira de mostrar a Tugalândia é mostrar como é racista, o Crepes disse que a proposta da Kizomba não mostra suficientemente o quão a Tugalândia é racista, e então a Kizomba disse que o Crepes é racista e exige reparação. Maaaaaaaaas… reparação faz-se a nível individual?

De qualquer forma, o que é para reter aqui é que a língua agora é chamada de PRETUGUÊS, e o dia 15 DE DEZEMBRO é o dia. Sabem, é para termos mais feriados: 1 de dezembro, feriado. 8 de dezembro, feriado. 15 de dezembro, toooooma! É o culminar e o balanço da festa dos melhores pretugueses da pretugalândia e para manter o ritmo de sete dias. E uma pena que não dá para antecipar o natal para 22, seria bem cool.

Santo Salazar, ó meu maroto, o teu lusotropicalismo está a bater bué.

A Tugalândia é tão complicada que não consigo pensar bem, são tugas brancos a serem racistas, são tugas pretos a serem classicistas, são tugas assim-assim a serem assado-assado, e eu aqui apanhado em pensamentos confusos e contraditórios, querendo deixar esta tarefa inglória de estudar os tugas e voltar para Guiné, mas a Guiné estar numa situação ainda mais merdosa.

PS: Como não quero cometer um suicídio social, por isso fiz essa conclusão com a Guiné-Bissau, a ver se o pessoal se distrai de tudo o que disse mais acima.

9 de dezembro de 2021

CATORZINHAS... UM PROBLEMA DE HOMENS ADULTOS (cronices crónicas)

Há uns anos escrevi sobre Clara de Sabura (http://montedepalavras.blogspot.com/.../a-guine-bissau...), um filme que abordou ligeiramente mais ou menos e involuntariamente a questão das "catorzinhas", mas de uma forma terrível, colocando-as, através da protagonista, no lugar de perpetradoras, em vez de vítimas. E depois, quando escrevi o artigo "ajoelhou vai ter que rezar" (http://montedepalavras.blogspot.com/.../ajoelhou-vai-ter...), prometi que iria discorrer sobre o tema "catorzinhas", mas fui deixando passar até agora. Só me referi a isso porque os dois textos vão ajudar-me a construir o análise. Bora!
Catorzinhas, segundo o vocabulário popular, são miúdas de catorze anos (e menos) que se envolvem em relações sexuais com homens adultos. Consideradas miúdas terríveis, destruidoras de casamento, putas, entre outras caracterizações mais simpáticas. São as "meninas que estão a estragar a nossa sociedade", na fala de alguém.
O fenómeno não é só guineense. Depois da guerra civil em Bissau, muitas pessoas refugiaram-se em Cabo Verde e quando voltaram trouxeram a expressão "pikena", para se referirem às namoradas (na Guiné dizíamos e ainda dizemos "mininu" e é só aplicado às raparigas com quem se tem relacionamento sexual, não propriamente ou necessariamente como namorada). Pensando sobre a provável origem dos termos não me pareciam algo nascido entre os jovens, porque pessoas da mesma idade não chamariam meninos uns aos outros (lembro-me que uma vez uma “menininha” foi fazer queixa do meu irmão à minha mãe e referiu-se a ele como "aquele rapaz" - ele tinha 5 anos - rimo-nos do tratamento, porque rapaz seria eu que tinha 12, embora eu fosse também menino para a minha mãe). O termo "pikena" e "mininu", terão certamente sido originado de adultos que se relacionam com miúdas novas, diria mesmo, menores de idade, "mininus" (no Braziu é novinha).
Na questão das catorzinhas, na Guiné, quem é vista de revés e como problemática são as próprias meninas que se relacionam com homens que deviam ser considerados pedófilos. A exploração delas é celebrada pelos homens adultos e, atrevo-me mesmo a dizer, pela sociedade guineense que não vê mal nisso, pelo menos da parte do homem.
Tabanka Djass, nos anos 90, cantou uma música, SUB-17, onde o protagonista diz que dormiu com uma menina que no fim lhe diz "amor, só tenho 15 anos", falava de meninas abaixo dos dezassete anos, menores. Okay! Vamos dizer que ele não sabia até a revelação final, mas ainda no mesmo álbum tinha a música "RUSGA DI 7 I MEIA", com história do "Ntoni Mansebu" que "paka mininus na skola, leba kubiku" (engata miúdas na escola e leva para o quarto). Aquilo era e é a normalidade de Bissau, ninguém estranha ouvir isso numa música, a própria música não foi feita para questionar a prática, apenas para contar a história de um "maaaaaaacho".
Ramiro Naka, mais recentemente canta "NDURO TENE PO GROS" (o Nduro tem o pau grosso), na qual diz" atenson katorzinhas" (e quinzenhas e dezasseiszinhas e dezassetezinhas... nunca chegou às 18zinhas, serão velhas demais?). Tudo em modo de celebração (bem, a Guiné é um local onde até músicas de exéquias são feitas em modo celebrativo, olhem a tina por exemplo). De qualquer maneira esses artistas não problematizam, mas normalizam a pedofilia (aceite socialmente) em torno das catorzinhas.

Chachá di Charmi também tem a sua música sobre ir buscar uma catorzinha para festa, "katorzinha djanti de, abo k Cha na pera" (Catorzinha vem depressa, és tu que o Cha deseja), é para festeja porque não igual a catorzinha. Se os outros não são tão muito explícitos, a música de Chachá é declaradamente um hino pedófilo.
Como disse antes, as catorzinhas são as más da fita, são elas que "vestem tchunas para atrair homens mais velhos e nossos maridos e não querem andar com os seus colegas, porque esses não têm dinheiro para lhes dar".
Mário de Max Poss na música, "RELATÓRIO", diz "katorzinhas ta durmi ku kolegas di se pape" (as catorzinhas dormem com pessoas da idade dos seus pais). É verdade, também. Mas o problemático mesmo nessa relação são os pais que dormem com colegas das suas filhas, menores.

Há muitas músicas a falar mal das catorzinhas, muitas mesmas e ainda não ouvi (pode existir, eu é que não sei, porque nunca ouvi)... ainda não ouvi uma única a colocar-se do lado das catorzinhas e a culpar ou responsabilizar os adultos que fomentam essa prática.
O filme CLARA DE SABURA fala de uma menina que se safa na vida a dormir com pessoas. Pessoalmente, nada contra, cada um usa as habilidades que dispõe para sobreviver e estar confortável, o problema é quando retiram a alguém todas as possibilidades e só lhe resta essa. Mas o maior problema, no filme, é que Clara estava na ciclo preparatório e dormia com o professor (subentenda-se professores) para passar e depois com um ministro(?). É a realidade. Todavia, o filme sobre isso não disse nada e em vez de questionar essas figuras de poder que se aproveitavam dela, batia o tempo inteiro na Clara, deixando-a basicamente na posição daquela que corrompia os pobres homens.
Parece que não se quer ver que o problema das catorzinhas é de facto uma questão de homens adultos.
Há duas situações que concorre(ra)m para normalizar o fenómeno catorzinha na Guiné: i) a dita tradição, e ii) a pobreza.
Há duas situações que concorre(ra)m para normalizar o fenómeno catorzinha na Guiné: i) a dita tradição, e ii) a pobreza.
Sobre a primeira: Guiné-Bissau, tal como o resto do mundo, é machista e patriarcal e, como praticamente todos os países africanos que conheço, poligínica (não sou contra este último modelo, desde que as partes estejam de acordo e não por causa de uma tradição machista patriarcal e desde que a poliandria seja permitida).
Todavia, enquanto que em algumas partes do mundo, apesar de muito precariamente, as meninas são "protegidas" de abusos pela lei, essa estrutura é praticamente inexistente na Guiné. Ainda hoje há casamentos forçados, meninas, meninas mesmo, menores de idade, são obrigadas a casar com homens maduros (alguns, velhos a cair de encurbadeça), e se isso é uma prática dita não-assim-tão-normal hoje, na geração do meu pai era bastante normalizada, e eles ainda controlam as coisas, e nós aprendemos com eles e reproduzimos.
Estamos habituados a que um homem tenha muitas esposas, habituados a marcar casamentos quando se descobre que a pessoa nasceu com uma vagina (e ainda nem sequer lhe demos um nome), às vezes, o casamento é marcado com homens já com outras esposas e com netas mais velhas que a recém-nascida. Habituados a que o homem possua mulheres (em todas acepções da palavra), que quando vemos um homem a desfilar com catorzinhas, assumimos simplesmente que ele está no seu direito e que ela é que é puta.
Segunda situação: pobreza.
Numa conversa, com um alguém (ele sabe quem é), ele estava a acusar as catorzinhas de vida fácil e de falta de perspectiva (nisso concordo, e já explico), e que os homens não têm culpa porque muitas vezes são seduzidos por causa do que podem oferecer, e quando lhe perguntei se não tinha medo que a sua filha, menor, fosse seduzido por um desses gajos e o que diria, se acontecesse, ele sentiu-se ofendido e respondeu: "não, não estou, pois não há sequer essa possibilidade! eu eduquei muito bem os meus filhos e nunca lhes faltou nada, dei-lhes sempre tudo, não são ilusionados". A conversa todavia não desenvolveu porque outra pessoa chegou. Depois tive um quase eureka: "os homens aproveitam-se das catorzinhas porque sabem que elas não têm tudo, então seduzem-nas com bens materiais" É da carência. Sabemos que a carência fragiliza as afirmações e facilita o exercício de poder, por isso alimentamos a prática e mantemos o ciclo.
A Guiné é um país de machos, uma sociedade onde um homem ameaça outro homem dizendo-lhe "n na bidantau mindjer!" (vou tornar-te numa mulher!), para mostrar a sua força . Duas ideatices se refletem nesta frase: i) que um homem é superior à mulher, por isso é humilhante um homem ser reduzido a essa posição. ii) tornar alguém mulher faz-se com o pénis... bater na pessoa não bastará, será preciso violá-la? (eu vejo nisto, na verdade, um incofesso desejo homo-erótico, também nada contra, desde que não seja por violência).
O que tem essa descrição atrás a ver com a pobreza? Se calhar nada e eu só quis falar dela. Todavia, o cerne é que o macho tem que mostrar poder, não podes ter força se não tiveres muitas mulheres e nas nossas sociedades mais terra-a-terra, quanto mais ricos os homens, mais mulheres "possuem". O que se verifica no facto de mal um homem ascender a uma posição social mais endinheirável, começa a colecionar "casas dois" por tudo o que é canto.
O poder, em todas as suas formas, ainda está concentrado na mão dos homens, e um bom homem, na nossa concepção, é aquele capaz de pôr almoço e jantar em cima da mesa. Agora imagina que esse homem põe isso e ainda põe teto sobre a cabeça, roupa sobre o corpo, saldo no telemóvel, luz em casa, água canalizada no quintal, saldo no telemóvel, carro na garagem, dinheiro no bolso, saldo no telemóvel, entre outras coisas, torna-se em não um bom homem, mas num espetacular homem.
As mulheres são treinadas desde criança a fisgar um bom homem e a estar numa boa porta de casamento, porque oportunidades para as mulheres sempre foram poucas, portanto elas têm de trabalhar muito para não serem trocadas e serem Apilis (https://www.youtube.com/watch?v=-tqtYw-dKts), o que significa aceitar a submissão. Estando os homens a ocupar as posições de poder, dormir com um bem posicionado é a forma mais rápida para encontrar trabalho ou um bom cargo, conforme a ambição, é certo, desde trabalhar na presidência da república, a conseguir uma bolsa de estudos, umas notas favoráveis, a lavar a roupa de um zé-ninguém qualquer capaz de pagar o suficiente para pôr mafé em arroz branco. O corpo passa a ser uma moeda de troca. Então com tudo nas mãos dos homens, o que resta às mulheres? O que restas às catorzinhas?
A adolescência é a idade onde somos mais impressionáveis. Quem de nós já não esteve apaixonado por uma figura de autoridade que levante um braço. Eu pessoalmente, houve um ano em que só apanhava 20 em biologia porque estava apaixonado pela professora. E experiências dessas repetiram-se várias vezes. No caso das meninas, professores homens aproveitam-se disso para abusarem das suas alunas.
Adolescentes apaixonam-se por pessoas mais velhas, adolescentes são impressionáveis, e num contexto onde uma menina vê muitas à sua volta com um simples relógio que ela não pode obter, pensem no quão fácil é ela ser seduzida por um telemóvel. Elas estão na idade de experimentação e de desafiar o mundo, muitas vezes acham que é uma afirmação da sua identidade e da sua autonomia dormir com um adulto. Portanto, cabe sempre ao adulto o trabalho de não corromper e de não facilitar.
Há situações em que é a catorzinha que põe o pão na mesa, porque dorme com este ministro ou com aquele comerciante lá do bairro, ou porque vai para os hotéis com homens da idade do pai (e os hotéis não querem saber da sua idade). A primeira vez que entrei num hotel de 5 estrelas, fartei-me de mandar fotos às pessoas, agora imaginem a impressão que isso não terá numa menina que nunca dormiu num molaflex antes.
Os pais fecham os olhos porque não há alternativa, o governo já não paga há 9 meses e estão a viver de mon-di-timba, o pai vive com vergonha, passa o tempo a cobar-mal à filha para levantar a cara à frente dos vizinhos, mas não deixa de exigir o peito de frango na sua tigela, embora desde há muito tempo que não dá o dinheiro de mafé e o pouco dinheiro que desenrasca é para a sua casa-dois ou para a catorzinha que ele por sua vez quer impressionar. A mãe também finge entre saber e não saber, mas lá aconselha quando estão sozinhas "faz um jeito para apanhares barriga, porque esse kriston-matchu tem dinheiro".
Não há emprego para jovens na Guiné, os gajos passam tempo nas bancadas, e elas, cuidadoras da casa e da família desde mais novas, arranjam alternativas para alimentar os irmãos, futuros maaaaaachos, sentados nas bancadas a falar mal das catorzinhas e a moldarem-se no machismo. Essa falta de oportunidades, essa falta de perspetiva é que pesa sobre as meninas e que lhes molda o caminho. Se mesmo mulheres formadas e super-inteligentes precisam de dormir com presidentes e presidentes de assembleias e ministros e deputados e diretores e ministros e professores e padres e ministros e cobradores de toca-toca e/ou qualquer um que tenha algum poder, e isso é tão normal, qual é a perspetiva para uma catorzinha?
Recentemente alguém me falou que houve em Bissau, numa discoteca (não vou dizer o nome, porque má publicidade é publicidade), um evento chamado de algo como "festa das catorzinhas arrombadas" (aposto que foi um gajo nos seus quarenta ou cinquenta a organizar aquilo), isto é o que eu disse atrás, uma celebração da pedofilia e da impunidade.
Queria ver os governantes a tomar uma posição sobre esta questão, mas sendo eles os maiores financiadores da prática, não tenho fé nisso. Portanto, temos de ser nós a tomar atitude, a discutir cada vez mais o assunto, a chamar pedófilo aos pedófilos e a largar o pé das catorzinhas. Não me venham pra cá com merdas de tradição.