Estava eu no EU SOU.
Deus definiu-se como EU SOU, talvez para dizer o quão
grandioso e omnipresente era, tipo, eu sou o céu, eu sou a terra, eu sou o
jagudi, eu sou o falcão, eu sou o padre com a bíblia na mão, eu sou a
mercadoria escrava a ser abençoada antes de ser embarcada no porão... 'tás a
topar a cena?... eu sou o fogo que queima as bruxas, mas... caramba!... eu sou
também a puta da bruxa. Enfim, eu sou a contradição.
Mas se o EU SOU de deus trazia a ideia de englobar tudo, o
EU SOU humano é apenas uma locução para individualizar, separar e classificar.
O VERBO SER parece SER o fundamento da existência. "Eu
penso, logo existo", definirá o ser? A mesa existe, mas não pensa. Mas a
mesa também É, sem se proclamar SER. Não sei o que define o SER, mas sei que é
uma assunção completamente humana, pelo
menos dentro do espectro do pensamento conhecido; pois não faço ideia se também
as bactérias no interior dos vírus dos nossos cérebros reclamam para si o sentido do ser,
ou da existência.
Creio que o SER e o EXISTIR, como já discorri algures , são
categorias diferentes. Assumo o ser como uma existência consciente e o existir
como um estar presente de maneira contável, classificável ou indicável.
O EU SOU categoriza-me, procura dar-me uma definição
básica... EU SOU qualquer coisa, e é como se essa qualquer coisa não pode ser
outra coisa na mesma categoria de coisas. EU SOU não te deixa a hipótese de não
ser. EU SOU guineense, EU SOU português, EU SOU homem, EU SOU mulher, EU SOU
preto, EU SOU branco, EU SOU um trolha, EU sou um arquiteto, EU SOU EU SOU
Marinho, EU SOU da gasolina... Mas se EU SOU tanta coisa, qual é a validade do
EU SOU?
b=a, e se a=b=c então c=/a não pode ser. Mas na realidade
nós somos humanos, somos os que provam matematicamente que 1=2 (vá, google).
Concentrando-me no SER. O VERBO está tão presente, que até
Tarzan começou por aprender: "mim, Tarzan; tu, Jane.". Sim, eu sei
que, como já dissera, o ser define a consciência, que é o óculo pelo qual
percebemos o mundo. Talvez seja por isso que sempre que vamos aprender uma
língua nova, começamos pelo VERBO SER.
O que vou chamar aqui a base da língua, o VERBO SER,
combinado com os PRONOMES PESSOAIS (há línguas que até têm pronomes para
"existências" que não são pessoas), demarca já a forma das relações e
como nos vamos ver ou como temos de ver os outros. É natural, sim é, uma vez
que o entendimento é pessoal e nasce da combinação entre as perceções e as sensações
de cada um de nós, codificados em experiências e memórias às quais recorremos
sempre quando estamos em frente de novas situações. Portanto, sem exceção, o
entendimento do mundo é sempre pessoal. Todavia, enterramo-nos tanto nessa
ideia de EU que temos tanta dificuldade em nos colocarmos na última categoria
do VERBO SER, o que em nada atrapalharia a formulação do SER.
EU SOU - primeiro eu, mesmo que tu já estivesses cá antes.
Aqui entra o sentido da identidade, sem no entanto envolver a noção de
"idêntico"; é, portanto, mais identidade, no sentido de
"unicidade". Eu, ego, o meu mundo, a minha existência que estou a
partilhar com... TU.
TU ÉS - és um corpo fora do EU, mas que reconheço a existência.
És o segundo nível do ser. És o "próximo" com quem estou em contacto
direto, de quem tanto posso querer proximidade como afastamento.
EL/ É - o terceiro nível. Uma referência mais distante
geralmente. O EL/ costuma referir-se ao ausente.
NÓS SOMOS - aqui entra a identidade, com um sentido mais
próximo do "idêntico". Quando aparece quer dizer que houve inclusão
de TU, TUs, e talvez de EL/.
VOCÊS SÃO (VÓS SÓIS) - outra categorização de outros, também
fora do sentido da individualidade, ou talvez num sentido de individualidade
agrupada, mais ainda assim, também com uma demarcada próximidade.
EL/S SÃO - o último nível do ser. El/s são é até mais
distante do que EL/ É, pois enquanto este individualiza, o outro generaliza e
esteriotipa.
O EU SOU até poderia não ser tão problemático se logo a
seguir não viesse o TU ÉS. E na verdade, nem o TU ÉS seria também problemático
se não servisse apenas para categorizar o OUTRO. Eu sei que podem ambos servir
para outra coisa, mas vou focar-me aqui no facto de apenas fronteirizarem e
distinguirem. Quando o TU ÉS aparece, o EU SOU começa a analisar os pormenores
à procura de semelhanças para ser atraído para o TU ou então para justificar um
afastamento. O OUTRO carrega sempre um valor de fronteiras. Os mandingas
chamaram aos fulbés de "fulas", significando "dois",
proutras palavras, mandinga primeiro, fula depois, e os fulas aceitaram o
títulos e retorquiram que significa que um fula vale por dois mandingas e os
últimos o sabem.
Ah, estava a divagar dentro da minha própria divagação...
altamente, isso eleva em grande a qualidade divagatória.
Geralmente o EU SOU valida o mundo através de si mesmo, o
que até faz sentido uma vez que o mundo que conhece depende da sua capacidade
perceptora. E como recentemente fui ensinado, a morte é branca, uma vez que o
escuro é a consciência de ter os olhos fechados; e a morte pressupõe ausência
da consciência. O meu mundo cessa com a morte do EU SOU, portanto, o EU SOU
valida o mundo pela própria perspetiva.
O VERBO SER diz NÓS SOMOS isto, vocês e ELES SÃO aquilo, e é através do SER que ou vamos comer juntos ou separados.
Mas eu só gostava de poder NÃO-SER, imagina a liberdade e a
fluidez que poderiam advir do NÃO-SER. Imagina não ter de ser guineense só
porque nasci na Guiné, não ter de precisar de um passaporte para viajar entre
fronteiras fictícias; imagina não ter de ser homem para ser considerado capaz e
merecedor de oportunidades; imagina não ter de ser preto para não ter de andar
sempre a levantar escudos contra o racismo ou a entrar em discussões estúpidas
e vazia; imagina não ter de ser branco para não ter de passar o tempo todo a
justificar o não-racismo; imagina... e imagina poder ser cristão, muçulmano, ateu, jeová, adventista, budista e filhodaputista, tudo ao mesmo tempo.
Epá, o NÃO-SER abre imensas possibilidades