12 de novembro de 2022

COMO SER UM BOM COLONIALISTA

Há um tempo estive envolvido num filme (esperem por ele, será grande!). A cena que tínhamos que filmar não era nada simpática e mexia com os nervos como se não fosse ficção (aliás era ficcionar a realidade). Todos sabíamos que era uma coisa para um filme, mas todos, como boas pessoas que somos, não nos queríamos ver numa situação parecida. Eu, pelo menos, não me queria ver nisso, e já tinha vivido na realidade algo similar (talvez conte noutra altura).

A cena era sobre um branco num país africano que apresentava a um grupo de amigos (pretos "ocidentais') um serviçal preto africano como alguém bem amestrado. A pessoa que fazia de serviçal não era "ator" (eu também não sou, pelo menos não profissional, mas nem pensei nisso na altura), e o papel que fazia era similar a um dos seus muitos papéis na vida real: cozinhar e servir a mesa. Fez-me isso confusão, porque parecia que ele não saía do papel e tive dificuldade, eu (falando de mim), em separar os tempos entre a ficção e a realidade. Outras pessoas também se sentiam como eu, apesar do realizador nos ter preparado para a cena.

No fim, lá tivemos uma reunião com o realizador sobre a situação e sobre o incómodo em ver essa pessoa a fazer aquela cena, pelo que muitas cenas dele foram alteradas e história teve de ser suavizada, e ele teve menos participação do que o esperado. E estávamos sempre a agradecê-lo, ao "ator/serviçal", sempre que nos servia, porque nos sentíamos incomodados e queríamos mostrar que era "nosso igual", nós, pretos europeus.

Dias mais tarde, em Bissau, estava num restaurante e uma pessoa veio servir-me, disse-lhe o obrigado cortês de praxe, com direito a sorriso e tudo, e lá continuei a conversa com a pessoa com a qual estava, não senti nenhum incómodo por estar a ser servido, afinal era o "papel" dela, era um trabalho dela naquela altura, não era o que a definia. Então e o "ator/serviçal"?

Bateu-me naquele momento : "Que paternalista do caralho sou eu! Que colonialista".

Não nego que não haja exploração da imagem de pessoas, pretas africanas da África, principalmente (as redes sociais estão cheias disso), mas não era esse o caso, porque o "ator/serviçal" estava a ser pago para isso e tinha-lhe sido explicado tudo sobre o filme. O que me incomodava mesmo? O que me incomodava mesmo? O que me incomodava mesmo?

Achava-me iluminado e protetor da "ignorância" de outrem contra exploração? O que me incomodava mesmo? Achava que a dita pessoa não era inteligente o suficiente para saber o que estava a acontecer a sua volta? O que me incomodava mesmo?

O meu incómodo era porque achava que o "ator/serviçal" não estava iniciado nos caminhos do "pós-des-de-anti-colonialismo" e que estava a fazer esse papel porque não tinha escolha. Achava que ele não tinha a noção completa da situação, mas ele só não tinha "a minha" noção das coisas, tinha a dele, a sua própria perspectiva. E a verdade era que ele estava a divertir-se imenso com aquela merda, estava a gostar de participar no filme. Estava a "atuar", fazendo uma coisa que sabia fazer bem e que não se importava de fazer. E de repente vê-se numa reunião com todos a decidirem sobre a sua participação, porque "precisavamos de o proteger e à nossa consciência".

É isso ser colonialista. É pensar que tenho mais visão que o outro, que conheço melhor os meandros da exploração (ou do desenvolvimento) e por isso devo desenhar eu o caminho do outro. Mas se fizer tudo com estilo e usar termos como liberdade (de expressão, principalmente), democracia, direitos humanos, anti-isto-e-anti-aquilo, creio que serei um "bom colonialista", desde que a luta seja para não colocar o meu próprio conforto em causa, como no caso descrito. Chifres na cabeça de cavalo.

Isso lembra-me uma vez que uma conhecida ativista negra em Lisboa me mandou e a meus irmãos falarmos português, porque era desrespeitoso falar kriol numa mesa onde havia pessoas que não falavam a língua.

Na luta anti-colonial, é tão, mas tão, mas muito tão fácil ser o colonialista.