Eu fui criança nos anos 1980, quando ainda o PAIGC era o único partido legal autorizado, e outros como o Fling tinham sido amordaçados e eram perseguidos se se atrevessem a falar de democracia ou multipartidarismo.
As escolas serviam para criar seguidores do PAIGC, os heróis nacionais eram comemorados, contava-se sobre Amílcar Cabral e sobre a luta de libertação de uma forma básica, propagandista, doutrinária e superficial (e depois no ciclo tínhamos Formação Militante), mas contava-se, sabíamos alguma coisa sobre o processo da Luta, sabíamos sobre outros resistentes africanos, o que infelizmente não acontece hoje.
Como não podia deixar de ser, eu fiz parte dos “Flores de Setembro” e depois “Pioneiros” e a minha aspiração na altura era chegar a “JAAC – Juventude Africana Amílcar Cabral” quando fosse grande, para depois ser membro do partido, PAIGC, tal era a doutrinação. Eu era tão orgulhoso de ser um “Pioneiro” e por ter Cabral no meu nome dizia (porque pensava) que era parente de Amílcar Cabral, afinal erámos os dois vermelhos e descendentes de cabo-verdianos (eu era parcialmente) e ele e a minha avó tinham sido vizinhos em Cabo Verde.
Naquela altura, todavia, Cabral era um enorme quebra-cabeça para mim. Era algo que não conseguia entender, principalmente quando diziam “CABRAL KA TA MURI”, mas todos os 20 de Janeiro, “celebrava-se” o assassinato de Cabral. Como se falava de Cabral Imortal e de assassinato, levou-me algum tempo até perceber que assassinar era matar, e que Cabral tinha sido morto. E era isso que eu não entendia, como alguém imortal estava morto?
Duas figuras iam para além da minha compreensão: Amílcar Cabral e Jesus Cristo, e para mim eram similares.
1. Jesus Cristo tinha morrido para salvar o mundo. Cabral tinha morrido para salvar a Guiné-Bissau. (Eu achava que a morte de Cabral fazia mais sentido, porque a de Jesus não salvara a Guiné, mas o meu catequista, João Lima, disse-me que falar esse tipo de coisas podia levar-me para o inferno, e eu tinha seis ou sete anos, portanto fiquei cheio de medo). Em suma: eram ambos Messias.
2. Na escola nunca tinha aprendido nem sobre o pai de Cabral, muito menos sobre a sua mãe. Por isso pensava que ele também tinha nascido de uma virgem. E ele tinha um meio-irmão, Luís Cabral, que estava sempre com ele, como Jesus que tinha o seu meio-irmão Tiago.
3. Todos os anos, tinham feriados e “comemoravam-se” os dias de nascimento, morte, ressurreição tanto de Cristo como de Cabral (para mim a ressurreição de Cabral comemorava-se no dia 24 de Setembro).
4. Cristo tinha 12 apóstolos, Cabral tinha os seus companheiros e outros heróis nacionais: Domingos Ramos, Pansau Na Isna, Francisco Mendes (estavam no dinheiro), Luís Cabral, Nuno Vieira, Aristides Pereira (blá, blá, blá, conseguia contar-lhe 12 companheiros).
5. Jesus tinha sido traído por Judas e condenado tanto por romanos (dominadores) como por judeus (dominados). Cabral tinha sido traído por Momo (da Guiné), Seco Turé (de Conacri) e Spínola (de Portugal) – as minhas informações não eram coerentes – ou seja, tanto por portugueses (colonialistas) como por guineenses (colonizados). E depois, como todo o mundo varria palha ao Nino Vieira, o discurso era que Luís Cabral também tinha traído o sonho do irmão, por isso é que se fez o golpe de 1980, portanto, eu considerava Luís Cabral também uma espécie de Judas.
6. Jesus tinha a Maria Madalena. Cabral tinha Titina Silá. Eu pensava que eles eram casados.
7. Tanto Jesus como Cabral tinham sido mortos, mas ambos eram imortais.
8. Tanto Jesus como Cabral tinham morrido para salvar as pessoas, mas os problemas ainda continuavam a existir e pelo que me diziam, eu tinha ainda de continuar a trabalhar para salvar a minha alma, ou para garantir o meu futuro e o futuro da Guiné. No final, parecia-me que os dois tinham morrido amonton, porque eu ainda tinha de fazer o trabalho todo (dizer isso foi-me desaconselhado tanto pelo meu catequista como pelo meu formador de pioneiro, Aliu Nhamadjó).
9. Tanto Jesus como Cabral tinham deixado adoradores. Uns chamavam-se cristãos, outros chamavam-se guineenses. (Se fosse hoje teria dito, uns chamam-se cristãos, outros cabralistas, mas provavelmente 95% deles nunca leu a Bíblia ou os escritos de Cabral).
10. Invejava os dois porque tinham lutado e morrido por “causas nobres” e eu pensava que não já não tinham mais causas nobres pelas quais lutar ou morrer. (Só recentemente alguém me fez ver o quão é mórbido uma criança pensar em morrer por alguma causa. Na altura, eu julgava que isso faria de mim um imortal e que valeria a pena, pois ressuscitaria… não é como se fosse perder muito na verdade. Por isso sempre pensei que o “sacrifício” de Cristo não foi lá muita coisa, porque depois foi ressuscitado e deram-lhe o universo para governar como prémio).
Ainda hoje se fala de Cabral em todos os 20 de Janeiro. Alguns políticos não o fazem, porque isso é como dar visibilidade ao PAIGC, uma vez que não se pode separar do partido a figura. E desta forma a figura da nossa única referência parece desbotar-se da memória coletiva, sendo conhecida mais como sobra de alguma coisa de que como uma imagem vívida.
Na escola estudamos na História (só em três anos):
No 7º ano, a origem do ser humano, as raças humanas (caucasianos, mongoloides e negroides – nem dizem brancoides), o paleolítico, o neolítico. Não sei os capítulos todos porque a greve sempre interrompe as aulas.
No 8º ano, o império de Gana, Mali, Songai, o império de Gabu é o último capítulo, mas eu não lá cheguei porque a greve sempre interrompe as aulas.
No 9º ano, os três setores da produção, a revolução industrial, as teorias malthusianas, não sei os próximos capítulos porque a greve sempre interrompe as aulas.
Enfim, estuda-se sobre tudo, mas estudar sobre a Guiné-Bissau e a sua história, nada, porque os outros partidos parecem temer que estudar sobre isso é favorecer a doutrinação paigcista. Mas como querem separar o PAIGC da História da Guiné? Lubu, negal te, ma ka bu dal padja di bobra. E o pAIGC tem medo que se descubra que fazem tudo menos seguir os preceitos do homem que usam como bandeira (pois atuam como se fosse o PAIGC que gerou Cabral e não o oposto).
As disciplinas chamadas “Educação Social” que podiam focar-se sobre a sociedade Guineense, ao invés pareciam introdução ao direito internacional; a única coisa que me lembro disso é que andei a estudar a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” e tive de fazer um exame onde o professor perguntava algo como “o que diz a 15ª lei, ponto 2, alínea c), da declaração”? Ou seja, mesmo essa coisa era para ser memorizada e não entendida.
E isso eu estudei entre 1991 e 1994, e pelo que me disseram, o programa escolar continua a ser, em 2019, a mesma merda.
Para quando vamos começar a estudar Cabral e as suas ideias na escola? E para quando vamos começar a estudar sobre as outras figuras (femininas, princialmente), como a Titina Silá que hoje está completamente esquecida?