De tempo em tempo inventam-se grupos de palavras gratuitas para serem usados por toda e qualquer pessoa que queira passar por inteligente. Agora a moda guineense (importada, é certo) é esta: "inversão de valores". Ainda não usamos muito a "mudança de paradigma". Sinto-me enjoado sempre que ouço e leio um intelectual guineense a falar de "valores invertidos". Mas qual inversão? De quais valores? A sério, a Guiné-Bissau alguma vez mudou de procedimentos desde que tomamos dos portugueses aquele pedaço de chão? Não. Fomos corruptos, nepotistas, tribalistas e oportunistas armados em espertinhos.
Alguém me diga um único período na Guiné em que a meritocracia tivesse sido regra... Uma vez, por exemplo, em que as bolsas de estudo dadas pelo Governo tivessem sido atribuídas por um concurso limpo e não para os filhos e sobrinhos dos bem-apelidados e do pessoal do Ministério da Educação... Ou de um concurso para a função pública.
Pelamordideus, enquadrem bem os discursos para não parecerem ocos, não pensados e gratuitos. A cantiga costumava ser "mudança de mentalidade", hoje "inversão de valores". Mas o que a Guiné precisa mesmo é de uma "inversão de valores", porque aqueles por que atuamos, de valores nada têm.
Alguém me ajude, por favor, pode ser que eu não esteja a ver bem as coisas, por isso pergunto: quais são mesmo esses valores que estamos a inverter?
Quando andava na primeira classe, no final do ano fiz o exame da segunda classe também, e passei (os meus colegas de Sonaco podem confirmar)...
motivo: tinha uma boa memória, já tinha memorizado todo o livro da primeira
classe e a tabuada, e como não tinha mais nada para memorizar, memorizei também
o da segunda classe, o que me ajudou nos exames. Mas se era bom a memorizar,
não posso dizer que entendia o que memorizava, porque estava escrito em
português.
E eu tinha o grande privilégio de os meus pais saberem
português e de me traduzirem algumas coisas, mas e os meus colegas
desprivilegiados cujos pais nem sequer sabiam ler? Aos 7 anos li uma anedota no
livro da terceira classe, mas só quando tive uns 25 é que me lembrei desse
texto e finalmente me fez rir. Foram precisos 18 anos para a anedota me fazer
rir. O principal motivo, a anedota estava escrito em português, e eu não a
entendia.
Agora, pense-se, tratava-se apenas de uma anedota, lida por
uma pessoa que sabia kriol, cujos sabiam português e que quando saía
da escola e ia para casa ainda ouvia português a ser falado (porque tínhamos
televisão, víamos Rua Sésamo, Vila Faia e outros programas portugueses) e ainda
passava o tempo a tentar memorizar a Bíblia (em português). E os meus colegas
que só ouviam português na escola nos poucos minutos em que o professor o
falava?
Como é possível ensinar numa língua que os alunos não
entendem e querer no final ter bons alunos? Como poderei pensar por mim e
formular conceitos se as referências que tenho são inteligíveis?
fonte: http://memoria-africa.ua.pt
Centrei o meu exemplo na escola primária, mas esta
deficiência persegue-nos até mais tarde. Se mesmo muitos que nascem português,
sempre tenham falado português e vivem em Portugal, leem textos em português e,
a não ser que seja bem mastigadinho, não o entendem, porque não sabem interpretar, pode-se perceber a partir disto a hercúlea tarefa de aprender na
Guiné-Bissau numa língua que não nos é "usual".
No filme "Minha Escola" (a partir do minuto 7) o protagonista (aluno de sexta classe) explica
muito bem a dificuldade de falar português, porque como cada um fala a sua
própria língua étnica, quando se encontram na escola, para melhor se comunicarem
falam em crioulo (guineense)? Vê-se daí a necessidade de oficializar o
guineense a par do português, para facilitar o ensino e criar pensadores e não
repetidores como eu costumava ser.
Nos comentários a um artigo de Didinho, muitos defenderam
essa necessidade de oficializar o guineense, que é a língua franca e realmente
a língua primeira da Guiné-Bissau, mas que não tem esse estatuto, e torná-la a
língua de ensino.
No artigo de Flaviano, Uma Bandeira Falada, lê-se o oposto, que apesar de ser
língua franca não se deve oficializar o guineense por ser ainda demasiado cedo
para tal, na falta de suportes como uma escrita e gramática acordadas.
Esta é uma daquelas discussões onde aparentemente todos têm
razão. No entanto, se por algum milagre o nosso governo decidir oficializar o
guineense, a verdade é que já temos vários suportes: em 1987, a Direção Geral da Cultura criou uma norma ortográfica para o crioulo, e em 1999, Luigi Scantamburlo propôs outra, que eu, pessoalmente acho melhor, sem falar ainda de inúmeros trabalhos da Teresa Montenegro sobre o kriol. Quantos
acordos ortográficos pensam que existe sobre a língua portuguesa? A
língua é uma coisa viva, que modifica constantemente, vai ser sempre preciso
estudos para acompanhar a sua evolução e talvez simplicar a grafia.
Flaviano também disse que Cabo Verde (que oficializou o seu
crioulo) só tinha uma língua, o crioulo, e não uma miríade de línguas com a
Guiné-Bissau, e, portanto, o contexto é diferente. Sim, deveras é, mas África
de Sul tem onze línguas oficiais, creio eu, e o que se pede para a Guiné-Bissau
não é oficializar as nossas mais ou menos três dezenas de línguas, mas apenas o
guineense.
E mais... ensinar Fula e Mandinga nas escolas poderia criar
também vantagens, considerando que são línguas faladas por cerca de 15.200.000
e 11.000.000 de pessoas, respetivamente, nos países vizinhos. Porém isso é
outra história.
A necessidade de oficializar kriol é mesmo urgente, para
acabarmos com a pouca-vergonha de termos deputados no parlamento a ratificarem
leis em português quando nem a sua própria língua e o kriol eles mesmos entendem. Deixo, contudo,
claro que não confundo a capacidade de raciocínio e de ponderação de uma pessoa
com o seu grau de escolaridade... mas para pensar sobre alguma coisa temos
primeiro de entender por que o estamos a fazer, para depois tentar entender a
própria coisa, e quando não entendemos a coisa devíamos honestamente manifestar
isso.
Já agora a tal anedota era esta:
fonte: http://memoria-africa.ua.pt
Livros de leitura da Guiné-Bissau dos anos oitenta (para fins académicos ou puro saudosismo):