12 de novembro de 2022

COMO SER UM BOM COLONIALISTA

Há um tempo estive envolvido num filme (esperem por ele, será grande!). A cena que tínhamos que filmar não era nada simpática e mexia com os nervos como se não fosse ficção (aliás era ficcionar a realidade). Todos sabíamos que era uma coisa para um filme, mas todos, como boas pessoas que somos, não nos queríamos ver numa situação parecida. Eu, pelo menos, não me queria ver nisso, e já tinha vivido na realidade algo similar (talvez conte noutra altura).

A cena era sobre um branco num país africano que apresentava a um grupo de amigos (pretos "ocidentais') um serviçal preto africano como alguém bem amestrado. A pessoa que fazia de serviçal não era "ator" (eu também não sou, pelo menos não profissional, mas nem pensei nisso na altura), e o papel que fazia era similar a um dos seus muitos papéis na vida real: cozinhar e servir a mesa. Fez-me isso confusão, porque parecia que ele não saía do papel e tive dificuldade, eu (falando de mim), em separar os tempos entre a ficção e a realidade. Outras pessoas também se sentiam como eu, apesar do realizador nos ter preparado para a cena.

No fim, lá tivemos uma reunião com o realizador sobre a situação e sobre o incómodo em ver essa pessoa a fazer aquela cena, pelo que muitas cenas dele foram alteradas e história teve de ser suavizada, e ele teve menos participação do que o esperado. E estávamos sempre a agradecê-lo, ao "ator/serviçal", sempre que nos servia, porque nos sentíamos incomodados e queríamos mostrar que era "nosso igual", nós, pretos europeus.

Dias mais tarde, em Bissau, estava num restaurante e uma pessoa veio servir-me, disse-lhe o obrigado cortês de praxe, com direito a sorriso e tudo, e lá continuei a conversa com a pessoa com a qual estava, não senti nenhum incómodo por estar a ser servido, afinal era o "papel" dela, era um trabalho dela naquela altura, não era o que a definia. Então e o "ator/serviçal"?

Bateu-me naquele momento : "Que paternalista do caralho sou eu! Que colonialista".

Não nego que não haja exploração da imagem de pessoas, pretas africanas da África, principalmente (as redes sociais estão cheias disso), mas não era esse o caso, porque o "ator/serviçal" estava a ser pago para isso e tinha-lhe sido explicado tudo sobre o filme. O que me incomodava mesmo? O que me incomodava mesmo? O que me incomodava mesmo?

Achava-me iluminado e protetor da "ignorância" de outrem contra exploração? O que me incomodava mesmo? Achava que a dita pessoa não era inteligente o suficiente para saber o que estava a acontecer a sua volta? O que me incomodava mesmo?

O meu incómodo era porque achava que o "ator/serviçal" não estava iniciado nos caminhos do "pós-des-de-anti-colonialismo" e que estava a fazer esse papel porque não tinha escolha. Achava que ele não tinha a noção completa da situação, mas ele só não tinha "a minha" noção das coisas, tinha a dele, a sua própria perspectiva. E a verdade era que ele estava a divertir-se imenso com aquela merda, estava a gostar de participar no filme. Estava a "atuar", fazendo uma coisa que sabia fazer bem e que não se importava de fazer. E de repente vê-se numa reunião com todos a decidirem sobre a sua participação, porque "precisavamos de o proteger e à nossa consciência".

É isso ser colonialista. É pensar que tenho mais visão que o outro, que conheço melhor os meandros da exploração (ou do desenvolvimento) e por isso devo desenhar eu o caminho do outro. Mas se fizer tudo com estilo e usar termos como liberdade (de expressão, principalmente), democracia, direitos humanos, anti-isto-e-anti-aquilo, creio que serei um "bom colonialista", desde que a luta seja para não colocar o meu próprio conforto em causa, como no caso descrito. Chifres na cabeça de cavalo.

Isso lembra-me uma vez que uma conhecida ativista negra em Lisboa me mandou e a meus irmãos falarmos português, porque era desrespeitoso falar kriol numa mesa onde havia pessoas que não falavam a língua.

Na luta anti-colonial, é tão, mas tão, mas muito tão fácil ser o colonialista.

16 de maio de 2022

CARO AMIGO POLIAMORISTA (DA ETICIZAÇÃO)

Caro amigo poliamorista,

Espero que esta missiva te encontre de boa com a vida e na crista da onda, onde andas como especialista a fazer revista na tua boa lista de poliamoristas e outras em vista de te fazerem festinhas. A sério desejo mesmo que não estejas num ermo, a sentires-te enfermo, mas a curtir amores em cheio com o sucesso de envolvimentos plenos.

Caro amigo poliamorista, nós, seres humanos, somos todos falhos e metemo-nos em trabalhos, porque nunca queremos as mesmas coisas, cada um de nós poisa os seus ideais nas suas próprias notas, e é por isso que todos criamos regras e guias para as nossas vidas ou escolhemos seguir as linhas que o nosso indica como onde se respira mais sentido nesta via. Todavia, se algumas dessas regras parecem menos cegas ou são mesmo menos bestas que outras, não significa que não possam ser escrotas ou que sejam perfeitas e feitas para além da crítica. Cri e vi cá que o poliamorismo pode ser boa prática, sendo genérico, é certo; mas lá porque dizemos, às vezes histéricos, que o poliamorismo é "consentimento ético", não quer dizer que seja assim mesmo, e nem que o "consentimento ético" seja um exclusivo do poliamorismo.

É muito comum, sem freio nenhum, ver-te a chamar aos "monogâmicos" de traidores, quase como se fossem seres inferiores, que não sabem gerir os ciúmes e as dores e os ardores. E para provar quão errados são os monogâmicos, dizes que a monogamia é uma fantasia, uma construção social, logo está mal por não ser natural. Também dizes que a monogamia é da autoria do capitalismo, mas... hey... a monogamia é bem anterior ao capitalismo, pelo menos o capitalismo formal que conhecemos hoje, do qual até o diabo foge tomado de medo, e ao qual todos apontamos o dedo. E, caro amigo, o capitalismo também usa o poliamorismo, usa as não-monogamias e com todas as mordomias usa qualquer movimento capaz de aglutinamentos... o capitalismo não descura nichos, dá e tira com capricho e trata a todos como bichos.

Enfim... dizes assim e com tanta certeza: "Os animais na natureza não são monogâmicos, logo o ser humano não é feito para ser monogâmico." Bem concordo contigo, caro amigo, quando dizes que os animais não são monogâmicos...mas nem são poligâmicos... muito menos poliamoristas... todavia há espécies que só têm um parceiro e há os porreiros que não precisam de sequer do sexo e reproduzem por si e consigo mesmos, mostrando que a função do sexo talvez não seja meramente...Atenção, não estou com essa menção a dizer que a copulação serve só para reprodução, aliás nem define a reprodução, uma vez que, como acabei de dizer, há espécies que reproduzem sem foder... Largando este papo para outro espaço vou retomando: nem o ser humano é monogâmico ou poligâmico ou poliamorista, ele pode praticar tudo isso da lista, mas como espécie não o caracteriza. O ser humano não é um ser orientado apenas pelas básicas lógicas biológicas, mas faz as suas próprias, psicológicas e sociológicas. Destarte reduzir o ser humano a apenas uma camada: a animal, é negar que o pensamento e a organização social fazem parte da nossa evolução e nos ajuda com resoluções, e que foi o que nos ajudou a sobreviver a sérios novelos de desvelos, e paradoxalmente, a criar o antropoceno.

Nós deixamos de ser meramente "natural", quando começamos a criar, é só observar. Usamos óculos para melhorar os olhos, fones para ouvir melhor, adoçantes para o sabor, pacemaker para fazer bater o coração, e injeção e inoculação e vacinas para estender a vida, resistindo mais às adversidades biológicas. Transformamos e transformamos. Por exemplo, os dentes que que antes arreganhávamos para assustarmos os outros, hoje com novos modos arreganhamo-los como engodos, em sorrisos rasgados, para criar contactos. Ou por exemplo, hoje falamos tanto mesmo do problemático que é a masculinidade tóxica, da qual a gente não se quer próxima, filha da cultura do macho-alfa, e da qual se quer dar um basta, mas a natureza está cheia de exemplos de machos-alfa, o que, todavia, não nos faz falta, razão pela qual a ideia não se salva, pois não queremos descer a escarpa a louvar a cultura alfa. Em resumo: somos também construtos sociais e não mais apenas animais tintos com instintos não distintos.

Repito e remarco, a monogamia é tanto uma construção social quanto as não-monogamias. E de forma fria, também o amor é uma construção social, porque a noção do amor ou da sua demonstração também varia de sociedade para sociedade e é apreendido socialmente... Mas lá porque algo é uma construção social, não significa que seja do mal. "Não matarás! Não roubarás! Não foderás o teu vizinho... a não ser que ele peça com carinho!", são construções sociais, mas ajudam a sociedade a funcionar de forma mais capaz. 

Entendes caro amigo?, não obstante ser difundido como padrão e destruído formas de relação e de ligação, o conceito da monogamia não é problema por si mesmo e nem devia. Só quando os seus cônegos e crentes gastam fôlego e tempo e agem de modo cego a atacar as outras formas de relação, aí sim, entra a questão da problematização.

Hoje a monogamia é norma (regra, entenda-se)... as normas podem ajudar até deixarem de fazer sentido, até serem casos perdidos, ou começarem a causar mais mal do que bem, mas todos vivemos com normas, tanto que às vezes a forma como comportas com a questão do poliamor parece que não queres dar respostas, mas substituir uma norma pela outra, que ainda não tem a mesma expressão política e expressão opressora. Sim, falo de substituição e de opressão e não de alteridade, porque da forma como te vejo a policiar a poliamoridade parece-me que não queres deixar espaços para a liberdade de amar, embora seja o que andas a advogar. Caro amigo poliamorista, ama, deixa amar, deixe-se amar, sinta o amor, lambe-lhe a cor, toque-lhe o odor, olha o seu som, cheira-lhe a textura, sem gráficos complicados a qualificar os envolvimentos... aliás, não é o que pedimos aos monogamistas?

Caro amigo poliamorista, falas tanto do "consentimento etico", mas há muitas formas de relacionamentos que são éticas, como já tinha dito, e não é só o poliamorismo. A monogamia pode ser ética, a poligamia também pode ser ética, embora esteja a sua mais comum forma, a poliginia, fundamentada no poder macho (atemo-nos ao mundo humano, para evitar a cena dos alfas, embora o que não nos falta seja animalidade).

Sobre o consentimento ético, na Guiné-Bissau, a título de exemplo, é bastante comum a poliginia... o contrário não se verifica... todavia, apesar disso muitas vezes são questões acordadas, muitas vezes propostadas pela mulher, porque precisa de ajuda nos campos e na casa e no poço e nos trabalhos e nos trampos diários e no etecétera, enquanto o marido se senta o dia todo sozinho a sacudir moscas com um rabo de vaca ou a coçar os testículos numa outra tabanca. Claro que as suas circunstâncias é que as levam a isso, e se conhecessem ou vivessem noutra realidade, quereriam outra coisa com maior equidade. Apesar de tudo, algumas, dentro dessa sua prisão e da sua limitação, escolhem e consentem.

Anos antes do capitalismo pintar as sociedades guineenses, a poligamia (poliginia) já existia, e em uma dessas sociedades fala-se da existência outrora da poliandria, mas da qual nem sombra se vê hoje em dia, provavelmente resultado das evangelizações ou de outras razões. Quanto às sociedades poligínicas, o número das esposas dependia dos posses do homem, quanto mais campos e mais gados, mais esposas e mais filhos (mãos de obra). O capitalismo ainda não tinha ali chegado, a economia era centrada no sector primário e configurava e influenciava as relações ditas amorosas. Hoje ainda é a mesma coisa em todo o mundo, porque no fundo só a economia mudou, a relação do poder continuou.

Falei disto para dizer que nem a monogamia nem a poligamia são frutos imediatos do capitalismo, ou pelo menos do capitalismo formal moderno, embora, sim, sejam usados pelo capitalismo (tal e qual o poliamoriasmo). Há uma sociedade guineense que é poligínica, mas que tem mecanismos para a mulher vazar as suas frustrações com outro indivíduo masculino que lhe seja querido, não precisa do consentimento do marido, o marido pode até sentir-se traído, mas não há castigo, não há punição. E essa noção é a razão por que pode haver "consentimento" na "traição". E a chamada "traição", se calhar, não é de todo não-ético. Pessoas dormem com outras e "traem" por diferentes razões a que razão pode conhecer ou talvez não; algumas traições são necessárias pelas suas próprias razões, pode ser por sobrevivência mental ou material ou emocional ou social ou seja qual for, é preciso sempre contextualizar... a não ser que a ideia da ética seja mesmo uma forma de dogma. "Não matarás" é ético com certeza... mas... e se for em legítima defesa?

Caro amigo poliamorista, tenha isto em perspetiva, não somos e nem percebemos mais ou melhor do amor do que monoamoristas, só por sermos ou por nos dizermos poliamoristas, apenas temos um diferente entendimento. Aliás o poliamorismo pode ser tão tóxico quanto o monogamismo, porque a questão, caro amigo, não é a prática, mas quem a pratica e a forma como a ela se dedica.

Sob a capa do poliamorismo, também abrimos abismos e também temos predadores sexuais, stalkers (reais e virtuais); também passio-dependentes que usam outras gentes para a satisfação pungente dos seus vícios; 
temos visto gente com medo de compromisso que por isso transita entre corações sofridos para se abster de se comprometer com alguém, magoando antes com medo do distante; temos machos a defender a política de pénis único, com argumentos túrgidos, ciumentos como tudo, a controlar e a abusar de mulheres;  temos pessoas traumatizadas a traumatizar outras almas; temos pessoas mentirosas, traidoras e manipuladoras; temos pessoas em dezenas de relações (superficiais) sem a consideração que o amor e a afeição exigem tempo e cuidado, e que o nosso coração pode ser uma imensidão, mas o nosso tempo não (não sei o que é o amor, mas sei o que para mim não é amor); temos pessoas a usarem a questão das relações como se de uma religião se tratasse, como se de um produto se tratasse, capitalizando dela, virando gurus de tudo e mais alguma coisas e manipulando almas confusas que abismos cruzam... enfim, resumo, por não poder elencar tudo, pode te parecer absurdo, repito, mas não é sobre a prática em si, mas sobre quem a pratica. E ser poliamorista não é ser anticapitalista, é só ser poliamorista.

Usar o poliamor como uma bandeira política é parte da vida, quando uma escolha consentida e objetiva. Mas quando o poliamorismo se revolve num ativismo extremo, que quer roubar os remos e que vemos a chamar a todos os monogâmicos de cegos, de imbecis e de carneirada afogada na traição e na ilusão, que não faz mais senão traição (como se a limitação da traição seja sexual ou como se a traição seja um exclusivo do monoamorismo), aí fica difícil acreditar que o teu poliamorismo não seja só clubismo. Até entendo que recém-convertidos ao poliamorismo sejam irritantes, porque como parece que descobriram uma novas verdades,  mas antes distantes, 
sentem-se arrogantes e tornam-se mais chatos que um recém-vegano ou um recém-ateu iniciado. Mas mais chato mesmo é um récem-ateu e recém-vegano recém-convertido ao poliamorismo. Por isso, há quem te supere, caro amigo.

Caro amigo poliamorista, o consentimento, esse vem em diferentes pacotes, com diversas texturas e diversos sabores e diversos toques e diversos odores, e, olha lá, embora se creia universal, a ética, se calhar, depende de contextos. Mas o que é certo certo certo certo mesmo é que o poliamor tem tanto peso e tanto problema quanto o monoamor, não fosse o poliamor uma prática desenvolvida por seres não perfeitos e tão insatisfeitos e inquietos como os humanos. Por isso, meu caro, às vezes, o mais claro é relaxarmos apenas, aliviar as penas, abrir as pernas (ou outras cenas) e vivermos a nossa verdade, protegendo-a, é claro, de ataques bárbaros, mas sem andarmos despertos e soberbos a emular os atacantes num jogo fedorento e, com asco, nos colocando no lugar do carrasco. 

A não-monogamia não é por si só ética. Ponto.




14 de janeiro de 2022

CARO AMIGO BRANCO (DA REVERSÃO)

Caro amigo branco, posso parecer chato, mas não penses, no entanto, que sou apenas um gajo irritado e frustrado a descarregar o seu desagrado em ti, escrevendo, assim tanto, caro branco, porquanto os textos que endereço aos amigos pretos costumam ser mais extensos.. (a comparação com o preto é só para te deixar mais brando)... Dito isso, prossigo.
Caro amigo branco, para ser franco, sim, sinto-me frustrado, frustrado por não conseguir ter um intercâmbio calmo contigo quando o assunto é racismo. Mal pronuncio o termo, parece que te desperto medos, ou mexo no teu credo, pois quase recebo um decreto de degredo, pois acendo em ti um fogo com que te coloco logo em modo de guerra, com paus e pedras, a sentires-te atacado e pronto para dar o pago por te ter incomodado. Quando falo de racismo, dizes que faço extremismo e dizes que a minha conversa é uma pista de que os pretos são ainda mais racistas.
Dizes que os pretos são mais racistas, e... bem, nisso até concordo contigo, alguns são, pelo visto, mas por motivo distinto, pois está mais que visto que o preto é o objeto do racismo, e que o racismo diminui o preto no seu humanismo e o transforma num bicho ou num lixo perante a superioridade branca. A bronca é que há tanta, mas tanta gente preta que aceita essa ideia da chamada superioridade branca, e por via disso reproduz o racismo e trata outros pretos com desdém, reproduzindo o que convém para manter a superioridade do branco. Nesse caso, claro, o preto é mais racista, e mais do que isso, é burro, porque alimenta uma cena que só o prejudica. Pior racista é o auto-racista. Nisso concordo contigo, repito. Mas, caro amigo, quando vens com o termo racismo-reverso, penso aqui dentro que não estás a ser honesto, nem comigo, nem contigo...
Vá lá, calma, eu explico.
Caro amigo branco, é mais do que claro que o racismo é branco. É tão branco, tão branco, tão branco que quando és discriminado por um preto, nem o chamas de racismo, mas de racismo-reverso. Será que consideras que a discriminação preta não tem o pedigree necessário para ser racismo, mas é apenas um tipo ou uma amostra ou uma tentativa de emular a coisa? Às vezes até admiro que não o chames de afro-racismo ou etno-racismo, como fazes com tudo o resto que não está no centro do teu ocidentalismo, como por exemplo, músicas étnicas, vestimentas étnicas, etno-filosofia, afro-literatura, etno-matemática, entre outros exemplos. Sei que pareço repetitivo com isto, mas infelizmente tenho de repeti-lo tantas vezes para que o seu sentido te fique no ouvido.
Caro amigo branco, nota, por favor, nota que consideras o branco como a cor padrão, razão por que com vazão chamas a todas as outras pessoas de pessoas de cor, porque o branco não tem cor, naaaaá, não tem, não. Mas se passares pano nos teus autos, verás, no entanto, que branco é uma autodenominação. Os pretos chamam-vos de brancos, porque vocês se chamaram a si mesmos de brancos. Os pretos, podes estar certo, conhecem a cor-branca, meu caro amigo cara-pálida (como vos chamaram os "vermelhos"), e a cor branca não é nada parecida com a vossa cor-de-rosa. Se fossem os pretos a denominar-vos, e se calhar até denominaram mas vocês rejeitaram, talvez vos chamassem de "couro-de-porco" ou de "ânus-de-porco", devido a similaridade cromática... Naaaaaaaaaá, não é minha prática, longe de mim querer insultar-te, caro amigo branco (tsc, tsc, estou a piscar o olho esquerdo, meu caro).
Vocês criaram a cor para os outros, porque o branco é aquele que é por si mesmo, feito a imagem de deus, não é como o preto que, segundo a tua bíblia, é o filho amaldiçoado por Noé para ser escravo dos irmãos brancos justos e puros, essa bíblia que empunharam, junto com outras armas, e com a qual amansaram até ao sopé da sua alma os desesperados pretos, e essa bíblia que nós empunhamos agora em auto-flagelo... Está bem, aceito, não acreditas em Deus, és ateu, mas não te esqueças da ciência da raça que criaste para a desgraça dos outros... Não foste tu? Como não? Se dizes que levaram a língua e civilização a povos pretos, se dizes que fizeram os descobrimentos, se dizes que fizeram tudo isso, por que queres retirar-te agora do plano do racismo?
Caro amigo branco, quando as pessoas falam do racismo, falam de um sistema ridículo construído por uns brancos ricos no alto do seu imperialismo e que tem diminuído vários indivíduos, arrastando-os para um abismo de auto-depreciação. O racismo é uma ação baseada no poder e na dominação, o racismo aliou-se ao capitalismo, o racismo é parte de um sistema económico, político e social de controlo das mentes, que atira gentes contra gentes, convencendo gentes de que são mais gentes do que outras gentes.
Não há lugar para racismo-reverso quando o balanço do poder continua o mesmo. Além do mais, o racismo é racismo, no seu verso, no inverso e no reverso. Atitudes discriminatórias baseadas na pele, é, sim, racismo, vindo da parte de quem venha. Sim, os pretos podem ser racistas e os pretos também são racistas. Mas quando um preto te discrimina, ele está em defensiva, usando a ofensiva que os brancos criaram. Mas quando um preto te discrimina, o que é que te acontece? Nada! Sentes-te discriminado e ferido e injustiçado e dás ali por isso tudo por terminado, pois não te sentes nem perdido, nem desnorteado, porque tens um mundo para te apoiar e ainda te elogiar pelo teu aproximar, e ele ainda até é visto como o bicho ingrato que mordeu a mão que lhe deu um prato; porém quando tu discriminas um preto, não é só esse teu gesto sem afeto que o afeta, mas tens de ter tento que tens do teu lado todo um sistema perverso e um universo de dejetos construído em séculos de sofrimento de povos opressos que esmagam o desgraçado.
Entendeste por que não faz sentido o teu hino de racismo-reverso? Não? Então, pensa num gigante com luvas de aço a boxear contra um magricelas sem um braço e com os olhos vendados e com o árbitro do outro lado, e ainda o gigante a dizer todo exaltado que é um confronto equilibrado porque é entre dois humanos. Não é justo, pois não? De facto! E neste cenário perturbante és tu o gigante.
Volto a dizer a mesma coisa que antes, os pretos também são racistas. Vai à Guiné, caro amigo branco, e vais notar que vais ser tratado melhor que os outros fulanos, só pelo simples fato de seres branco, porque o tom da tua pele está associado a mais dinheiro e a mais poder e a mais influência, portanto é bom que caias nos nossos encantos para que nos beneficie de algum modo. E relacionamos tanto o branco ao dinheiro que chamamos de branco a um preto vindo da Europa com aparente matéria na carteira. Caro amigo branco, há pretos a serem racistas com pretos em favor do branco, porque fomos assim ensinados desde que fomos colonizados, e quando falamos que escapamos desse antro, notamos que evacuamos para um campo minado, a reproduzir a todo o pano atos que só nos causam dano ("no sai na pilon, no kai na balei"). E tu ainda vens com esse papo de racismo-reverso?
Vai à África e verás tantos tontos a tintar a pele, a tragar tolices e a estragar a pele, tentando ser mais "brancos" para corresponderem a uma ideia de superioridade idiota. Vai à África e verás um culto aos mulatos e um ódio aos mulatos porque são mais brancos que pretos, mas não são brancos o suficiente para serem tratados com cuidado e portanto são os melhores alvos de ódio deslocado. Vai à Guiné e verás mulatos (vermelhos) a discriminarem pretos, a tratarem-nos como insectos, porque se acham "mais" superiores e mais corretos, porque se veem como intersectos do mundo branco. E ainda falas de racismo-reverso? Pelamordideus, caro amigo branco, tira o crânio do próprio rabo e analisa os dados que te são dados. Porque praticado pelo branco, praticado pelo preto, quem é beneficiado pelo ato és tu, ó caro branco.
Quando se fala de anti-racismo, não se está a falar de te quebrar, está-se a falar de quebrar um sistema, um sistema que não te afeta por não teres a cor preta. Quando se está a falar do anti-racismo e se está a falar de destruir os teus privilégios, não é racismo-reverso, é simplesmente porque os privilégios, os sociais, pelo menos, significam para outros ausência de direitos.

Dois pesos... Dois medos... Dois dedos de testa e atesta-te com pensamentos isentos do teu privilégio e verás como é perverso o teu credo de racismo-reverso. Podes ser vítima da "branquitude", podes ser vítima do capitalismo, mas não és vítima do racismo.
Resumindo, quando um preto te discrimina na base da tua cor, o ato é racista, sim, e aquela tua dor é aflitiva, sim. Mas não te atrevas a comparar um ato (o seres discriminado uma vez por ano, por uns dois bacanos zangados, num canto qualquer do Bairro Alto) com um sistema (o seres discriminado todos os dias do ano por todo um estado e por uma horda de asnos que nem sabem que o fazem e que o negam em grandes espasmos de virtuosidade, batendo no peito, torcendo os ventres e rasgando as vestes), um sistema que faz ainda seres discriminado pelos teus próprios manos apanhados naquele buraco no racismo criado. Não te atrevas, caro amigo branco, não te atrevas porque estarias a mijar no rio Sado com o plano de deixá-lo salgado.