– Pai! Que história é esta daquelas frutas na Árvore Morta?
– São as frutas da ciência, homem. Não comas delas. Estou a avisar-te. As frutas vivas da Árvore Morta fazem a morte.
– Não percebo, pai. O que é a morte?
– A morte, homem... hmmm… quando desligas o computador e ele apaga-se, não funciona desligado e não liga por si, é a mesma coisa a morte. Depois vem até aqui, temos muito que falar.
Desligou.
Adão contou a Eva o que ouviu de Deus.
– Mas isto é pecado! Por que fazer frutas tão vistosas e cunhá-las de maldade. Semear a morte na delícia. O pai está a pedir a nossa desobediência.
Adão ouvia Eva sem dizer palavra, remoía no seu cérebro as palavras de Deus, tentava descortinar a razão daquelas frutas estarem ali. Sentiu que lhe tinham estendido uma armadilha e estava disposto a não tocar nela, mesmo que isso lhe custasse outra costela. Notou que estava sentado na boca de lobo e, portanto, tinha que tomar cuidado, porque mesmo que o tal lobo fosse manso, os seus dentes eram duros.
Adão não conseguiu entender o porquê daquelas frutas. Como a sua própria consciência não lhe ajudava muito na sua procura, bruto, cortou a relação com ela durante duas semanas; quando quis reatar o laço, a consciência, que tinha descido ao inconsciente, não veio toda, estava a curtir mais a onda de ser inconsciência, o que o levou depois a falar quase sempre com o arcanjo Freud, para ver se recuperava as lembranças que foram para a inconsciência. Depois de Adão ter ido falar com Deus, disse a Eva:
– Por favor, não te aproximes daquela árvore. Tenho um pressentimento negativo.
– Vai ao estúdio, lava-o e vê a fotografia.
– Não estou a brincar, Eva. Não te aproximes da árvore.
– Por quê? Nem para ver?
– Oh, oh! Eva, não sabes o que significa, não te aproximes.
– E se eu me aproximar? – desafiou Eva.
– Eu não perguntei isso a Deus. Limitei-me a obedecer. Por isso, por favor, tenta fazer o mesmo. Mas, para responder a tua questão, se eu te vir a mexer naquela fruta vais saber como sou bruto, vou dar-te uma porrada do caneco.
Acobardada pela ameaça, Eva aceitou imediatamente:
– Está bem, querido. Está bem. Não vou aproximar-me.
Se ele pensa que não vou aproximar-me daquilo, está tremendamente enganado. Não sabe que eu só lhe disse o que ele queria ouvir. Basta desaparecer daqui, vou apanhar sombra naquela árvore... E talvez leve alguns querubins comigo.
Adão: Não acredito nesta ronhosa. Basta virar as costas, ela vai lamber-me a nuca. Não vou afastar-me dela. Aconteça o que acontecer, naquela fruta ela não toca. Porra! Já não se consegue descansar nem no Paraíso.
Adão vigiava a Eva constantemente, não a deixava muito tempo só, com receio que ela fosse mexer na fruta proibida. E Eva, chateada com tanta vigia, acabou mesmo por perder o interesse pela fruta. Que coisa melhor podia fazer para intrujar a vigilância de Adão? Ela já nem passava perto da Árvore Morta, no jardim proibido, e quando Adão aludia ao assunto, bocejava de chatice. Adão começou a acreditar que ela não queria nada com a fruta. Ah, se soubesse...
- Lúcifer... o teu plano é uma merda. - Credo, Deus! Por quê?
- Adão nem liga à fruta.
- E então, a fruta já tem telefone? - trocei primeiro e depois fiz-me sério. - Mas estás à espera que seja Adão a comer aquilo? Fica descansado, ele é mais inteligente do que Tu...
- Lúcifer, mais respeito.
- Desculpa, mas não acabei. Ele é mais inteligente do que Tu… possas pensar. Quem tocará naquilo não será ele, chama-se Eva.
- Eva?
- Exacto, ela mesma.
- Não pode ser. Adão era apenas um esboço, construí Eva com mais perfeição.
- Excesso de perfeição, excesso de fragilidade e de ambição, e a inteligência não se submete à mediocridade.
- Lúcifer, pela última vez, mais respeito.
- Se quiseres acelerar as coisas tens de dizer a verdade a Adão.
- Eu sempre disse a verdade a Adão. Sabes que não gosto de mentira.
- Oh, Deus! Vai pregar para outra freguesia. Eu estive sempre contigo, os esquissos dos teus projectos foram todos meus, só te limitaste a assinar porque eras o dono do atelier, e ambos sabemos que falsifiquei os dados do relatório da criação de Eva, para manter insuflado o ego do Adão e ele não descobrir que o barro da Eva era bem melhor. Por isso não me venhas com essa de não gostar da mentira.
- Porra! - exclamou Deus, para mudar de conversa. - Todo o meu projecto saiu ao avesso.
- Foi porque não projectaste nada. Além de mais, resolveste fazer tudo em apenas seis dias.
- Mudando do assunto - disse-me, em nova tentativa de desviar a crítica -, como vão por lá, no Inferno?
- Nunca estivemos melhor, Deus. Acredita que sim. Um dia eu Te convido para nos vires ver.
- Ah, não, nunca. Deus me livre.
Rimo-nos ambos da piada.
Deus nunca se ressentiu por eu ter ido criar um outro reino, deixou-me toda a liberdade. Sentia que agora que estávamos a governar cada um a sua parcela deste sistema do Universo, ficámos mais amigos. Agora, divertíamo-nos mais. Há coisas que eu Lhe digo agora, mas que tinha perdido antes a coragem de dizer. Quando conheci Deus, tratava-o por tu, Eloim, mas ele tornou-se arrogante depois d’O Grande Projecto, desenho meu, por acaso, e passei a tratá-lo por Vossa Magnificência; agora voltei ao tu, e recuperámos o espírito de antes. Deus adora-me. Basta sentir-se só para discar os números do Inferno. Eu O diverto à brava.
- Voltando à vaca fria...
- Eh, Deus! Não uses essa expressão, é medonha. Vaca fria é vaca morta.
- Como queiras - riu-se Deus. - Mas, se como dizes, será Eva a comer a fruta, por que raio ainda não a comeu?
- Não sei! Deve estar a ser vigiada por Adão, ou talvez lhe falte a motivação necessária.
- Que raio pode motivá-la?
- Como toda a alma perfeita, o poder. Ela adora o poder.
- O poder!, como não pensei nisso?
Porque ultimamente já não pensas, disse eu para mim.
– Obrigado, Lúcifer. Tu pareces conhecer melhor do que eu as minhas obras.
- Hey, sou eu quem faz os desenhos.
- Convencido! Eu é que digo como fazê-los… Olha, tchau, tenho coisas para pôr em dia ou em eternidade.
- Até depois.
Eva continuava a manter distância da árvore, e Adão acabou por se sentir seguro e deixá-la em paz. Eva não se precipitou em ir tomar sombra debaixo da árvore, para não provocar alarme. Depois de algum tempo de quarentena, diga-se, começou a frequentar o jardim proibido. E foi lá que encontrou a serpente. Ela estava estendida, num recanto, ao sol, secando as escamas. Ao ver Eva, levantou-se de um salto, e deslizando, aproximou-se dela, fez uma saudação [não sei dizer como] e falou:
- Avé Eva, cheia de curvas... quer dizer... de graça, bendita és tu pois não tens rival, nem sogra. Eva não compreendeu a saudação e ficou zonza a olhar para a serpente.
- Não tenhas medo, ó Eva, vim dar-te uma boa notícia: engravidarás e terás um filho que se chamará Eman... Ops! Desculpa, declamei a frase errada... - cortou a serpente atrapalhada. Refez-se e recomeçou, sob a estupefacção de Eva: - Bom... Não tenhas medo, ó Eva, vim dar-te uma boa notícia: comerás a fruta e ficarás inteligente.
- Queres que te parta as trombas? - disse Eva furiosa à serpente. - Estás a dizer que sou burra. Não sou loira, não. O meu cabelo é oxigenado.
- Ah! Estou a ver - concordou a serpente. - Burrice artificial.
- Queres ter de começar a andar com muletas? - ameaçou Eva. Volta a chamar-me burra e parto-te as pernas.
- Mas eu não tenho pernas.
- Arranjo-tas e parto-tas - explodiu Eva. - E sai perto de mim.
- Mas Eva...
- Sai!
- Olha, Eva, espera só. Deixa-me fazer o meu trabalho. Tenho de falar contigo.
- Falar sobre quê? A inteligência? Quem te disse que não sou inteligente?
- Ninguém me disse. Mas não é bem assim. Deixa-me explicar. Nunca leste a Bíblia?... Estás a ver. Eu também nunca li, mas correm rumores de que na Bíblia a serpente tentou a mulher.
- Estás a faltar-me ao respeito ou quê? Eu sou tua mulher? Vai tentar a tua mulher e deixa-me em paz.
- Eva, não queres a inteligência?
Eva pegou a serpente pelo pescoço e apertou-o até ela tirar a língua. Com as suas unhas compridas, rasgou-lhe a língua deixando-a bífida. Depois atirou-a para o chão. A resmungar afastou-se da Árvore Morta, dizendo:
- Burrice artificial, hem? Já aprendeste. A inteligência? Eu sou inteligente. Já viste, já aprendeste.
A serpente, refeita da dor e pondo em ordem todos os seus sentidos, afastou-se, a resmungar também: - Bolas! Hoje em dia, já ninguém pode fazer o seu trabalho sem chatice. Estas mulheres de hoje! Julgam que sabem tudo. Mas, pelo menos, ficou claro que isto da inteligência não pega com ela.
Eva já estava farta do Jardim Colorido, o recanto mais bonito do Paraíso, o seu coração. Conhecia de cor a decoração daquele coração, queria que se mudasse aquilo. Sabia onde começavam e acabavam as flores vermelhas, as azuis, amarelas... conhecia a disposição das cores das flores de cor. O prazer que tinha quando se sentava naquele canto para descansar esfumara-se. Já não sentia nada, a contemplação daquele sítio tornara-se monótona e sem alegria, precisava de coisas novas.
O espírito de Eva estava sempre insatisfeito, ela buscava sempre pela perfeição, a decoração do Jardim Colorido já tinha sido mudada trezentas e duas vezes, mas mesmo assim enfastiava-se dela. Decorara todas as mudanças decorativas feitas e só pedia novas mudanças, nunca as que já tinham usado. Por isso é que se dirigiu para a DIABO, para resolver a questão da ornamentação do Jardim Colorido, o seu cantinho preferido. Também queria que trocassem os pássaros daquele local, porque os que lá estavam já lhe pareciam desafinados apesar da sua sinfónica melodia, até mesmo os pássaros mozart e beethoven ela não queria mais ali. Ao entrar na sede da DIABO, Eva deu de caras com uma mulher, bela que se farta, e pensou: Que mulher bonita! Se Adão a ver, vai deixar-me! Sem olhar de novo para a mulher, exclamou para os arcanjos que viu:
- Que criatura tão horrível! Raios! Como Deus pode permitir que coisa igual esteja no Paraíso?
Eva começou a falar, menosprezando a dita. De repente, um anjo muito jovem, cadete de arcanjo, começou a rir e Eva estranhou.
- Que estás a rir? - perguntou, desconfiada.
- Aquilo ali é um espelho, senhora Eva, aquela não é ninguém, é tua imagem. Tu és tão burra...!
- Ah, sou! Estás despedido - disse Eva, irritada. - E pensas que eu não sabia que aquilo era espedo e que estava a ver a minha imagem?
Eva saiu da DIABO furiosa, esquecendo-se do que a levara lá.
- Estou mesmo despedido? - perguntou o anjo cadete ao arcanjo Loos, novo chefe da DIABO, Olmsted tinha vindo comigo para o Inferno.
- Receio que sim, meu caro anjo.
- Mas não é Adão o dono disto?
- Mas é ela a dona de Adão, o resto é fachada.
Já na rua, um tanto distante da DIABO, Eva sorriu:
- Oh! Como sou bonita! - exclamou. - Vou ter de arranjar um espedo para mim. Cristo! Um relâmpago acendeu e apagou:
- Chamaste-me, estou aqui - disse uma voz. - Sou o salvador dos homens.
- Não te chamei, apenas exclamei. Mas como já cá estás, eu queria um espedo.
- O que é isso? - perguntou Cristo.
- Uma coisa para ver a minha imagem. Cristo - perguntou Eva -, achas que sou bela?
- Olha, Eva, não sei dizer. Tu és a única mulher, não tenho com quem te comparar. Não sei se és bela.
- Sou - disse Eva. - Deus fez-me perfeita.
- Pode ser perfeitamente feia - atreveu-se Cristo a dizer.
- Cristo, vai-te embora. Já não preciso que me arranjes espedo, Adão arranja.
- Mas eu é que devo - reclamou Cristo. - Sou o salvador dos homens.
- Vai-te congelar, Cristo. Não és salvador de nada.
- Mas já te salvei duas vezes quando estavas a nadar.
- Salvaste-me, sim, mas eu não sou homem, eu sou mulher. Tu não podes ser salvador dos homens porque aqui só há um homem, Adão. Vai, vai-te congelar.
Eva não gostara nada que Cristo lhe tivesse dito que era feia, por isso é que se vingava.
Através de bocas alheias, Adão soube que Eva foi passear no Jardim Proibido e foi vista na companhia da serpente. Desconfiou que algo estava errado, e foi avisar a Deus:
- Pai, a serpente anda muito a falar com Eva, eu vou escamá-la.