Não queria começar a falar de um
evento cultural (ou de arte), relacionando-o com o racismo, mas, oh, está tão
difícil fugir de fazer esse paralelo.
Uma lição básica sobre o
jornalismo é: se um cão morder um homem é azar, mas se um homem morder um cão é
notícia. Porém, se na Cova da Moura mesmo quando o cão morde uma galinha é
notícia, como se explica o silêncio dos media sobre o festival do cinema que se realizou no bairro? Será
que a Cova da Moura só pode e só deve ser notícia quando acontece algum ato de
violência no bairro?
A 6ª Edição da Kova M Festival e
a 2ª da Mostra Internacional de Cinema na Cova, organizadas pela Associação Moinho da Juventude e Nêga Filmes e Producões, aconteceram na semana passada, de
26 a 29 de Julho, mas não se ouviu um pio sobre o assunto nos media (com excepção da RFI)… sim, esses mesmos que semanas
antes estavam como cães esfomeados na Cova de Moura, por um motivo bastante
lamentável.
Uma comunidade trabalha e esforça-se
para se livrar dos estigmas que lhe são colados, mas o que se vê é que os
estigmatizadores parecem não querer que isso aconteça, porém… a cultura
acontece, sob ou fora das objetivas dos media.
E não deixou de acontecer na Cova de Moura.
Durante quatro dias foram dezenas
de filmes vindos de diversas partes do mundo, diferentes temáticas e diferentes
ritmos. O ponto comum de todos esses filmes é o preto, não o africano, mas o preto
(eu explico mais tarde), e esse ponto comum é também espetacularmente o
ponto de distonia entre eles.
Nos filmes vindos das Américas e da Europa
vê-se a luta do preto tentado afirmar-se como ser, como voz, como identidade e como
entidade. Nos filmes vindos da África (tirando um, cujo o tema é sobre o clarear
da pele e alisar dos cabelos) o preto é apenas preto, um ser com voz e com identidade,
os problemas e os anseios são outros. O que me faz lembrar de responder ao
Chico César: Chico, meu caro, ser negão no Senegal não é legal, pois nem sequer
é um problema, porque lá negão não é discriminado como elemento estranho.
Agora a explicação para a linha
em cima: muitas pessoas pensam que preto e africano são sinónimos, mas estão
completamente errados, porque há muitos europeus e americanos que são pretos,
mas não são africanos, não conhecem a África sequer (a não ser que a África
seja uma questão genética e não geográfica). Da mesma maneira, há muitos
brancos africanos. Por isso, eu evito correlações automáticas entre preto e
africano, e por isso, não gosto quando os pretos americanos são chamados de
afro-americanos só porque são pretos, e conheço um afro-americano de verdade,
mas ninguém o chamaria desse jeito porque o gajo é branco.
Bem, esta tergiversação é que me
fez dizer a frase com que comecei este artigo, sabia que iria acontecer, que
iria desviar-me do tema principal. Mas para fechar a parte de racismo, quero
dizer, o silêncio mediático sobre os festivais na Cova da Moura, pode ser
assumido também como um ato de racismo.
E aproveito também para criticar
os mais fervorosos guerreiros africanistas com quem converso: vocês falam das culturas
africana e preta, da necessidade da sua afirmação, mas quando acontece um evento
cultural, como este, não aparecem.
A 2ª Mostra Internacional de
Cinema na Cova reuniu um acervo muito interessante, como já tinha dito, e
também pessoas interessantes, criando uma dinâmica bastante interessante entre
os moradores da Cova da Moura e as pessoas de fora. A minha última sentença é
um enormérrimo agradecimento às organizadoras.
Obs: As fotos são de Vania Brayner.