31 de dezembro de 2020

AS PALAVRAS

este texto já tem quase uns 20 anos, da altura em que achava que chegaria a ganhar o prémio nobel do rap. o texto não é tão fluído, porque me faltava prática - embora eu já me achasse um perito -, fazendo com que muitas rimas fossem mesmo apenas pela rima e não fizessem muito sentido dentro do contexto.



AS PALAVRAS

As palavras têm vidas, algumas são sentidas,
Outras abrem feridas, outras são perdidas.
Há palavras esquecidas, obstruídas e sem saídas,
Contidas e oprimidas, comprimidas e deprimidas.

Há palavas que são brigas, outras querelas antigas,
Algumas enchem barrigas, com outras só te perigas.
Palavras que são cantigas, são intrigas ou dão fadigas,
Palavras com que mendigas, palavras em que te abrigas.

Há palavras vividas, repetidas, escritas e imprimidas,
Que são precisas para que alegria exista nas nossas vidas,
Palavras que metem te numa fria, por teres a cabeça quente,
E há palavras que esfriam até mesmo os mais combatentes.

Há palavras que mentem à mente e faz a mente demente,
Que me deixam doente só de se chegarem à frente,
Há palavras eloquentes, quentes e imponentes,
Mas a falar com outras gentes são tão impotentes.


Caso as palavras e componho o raciocínio,
Mas caso nas palavras que ponho perca o domínio,
Começo a cosê-las como fazes em malhas,
O começo é cozê-las em fases sem falhas.



Palavras belas, mas que exprimem nada,
Palavras feias, cheias de ideias elaboradas,
Palavras, uma a uma, somadas dão um romance,
Palavras, há algumas apanhadas só de um lance.

As palavras que falo são duras e têm calos,
Mas com aquelas que eu calo o meu âmago escalo,
Com regalo consigo atravessá-lo num estalo,
E me abalo no halo das palavras que não calo.

Já vi ideias, ideais, feias e letais,
Cheias e anormais, sérias e banais,
Velhas e mortais, plenas de ais,
Obscenas e canibais, sem cenas de paz,

Medonhas e sepulcrais, não as ponhas no meu cais.
Olha onde vais, encolha que não sais,
Trolha, estás a mais, olha que eu sou ás,
Tu és bolha eu sou gás, põe rolha e dou-te paz.


Caso as palavras e componho o raciocínio,
Mas caso nas palavras que ponho perca o domínio,
Começo a cosê-las como fazes em malhas,
O começo é cozê-las em fases sem falhas.



A palavra que sai da minha boca,
toca, parece louca, evoca lembranças gordas,
invoca tamanhas forças e derroca, sem sacrifícios,
os edifícios de suplícios morais com artifícios amorais.

Emaranho as palavras, ficam viscosas como ranho,
Apanho as palavras faço-as vistosas dou nelas banho,
Uso verbos e advérbios, temática da gramática,
lógica matemática?... não sei… tenho prática.

Só sei que com as palavras sinto-me um rei,
De usar e abusar delas sempre eu hei,
Pra domá-las e forjá-las faço eu mesmo a lei,
A ideia é ser um poeta que palavreia bué cá!

Uso tantas palavras que parecem não ter sentido,
São estas as lavras em que sei ser perito,
Uso o raciocínio e palavreio com fascínio,
No meu raciocínio não há freio nem domínio.

1 de dezembro de 2020

DIÁRIO DE UM ETNÓLOGO GUINEENSE NA EUROPA (dia 5)

1 de dezembro – dia dos restaurantes tugas


O tio Paulo Bano contou-me uma vez que os tugas de Portugal tinham sido colonizados pelos tugas da Espanha, e quando finalmente se libertaram dos tugas espanhóis, criaram o Dia da Restauração, onde iam todos eles a restaurantes para festejar. Não sei muito bem o que se passou, mas provavelmente devem ter ficado fartos dos tacos, dos gaspachos e das tortillas. Porque não vejo nada que justifique um dia só para restaurantes.

Mas o tuga adora comida. Uma boa comidinha que se reflete naquela barriguinha de cervejinha bem redondinha do tuga que é típico daquelas ilustrações dos postais para turistas que se vendem no Rossio e no Bairro Alto. Rossio fica em Lisboa, mas acho que todos os guineenses sabem disso, pois é onde tiramos postais para confirmar que viemos a Lisboa. Guineense que diga que veio a Lisboa, mas não tem um postal no Rossio, é mentiroso. Bem, desculpem-me a distração, vou voltar aos tugas.

Sabem, só agora descobri que há uma grande mentira na história dos tugas. Afinal, enquanto estavam lá nas Áfricas a dizer que esta ou aquela era a sua colónia (o que não era na verdade)… afinal, eles mesmo estavam colonizados… afinal, eles eram espanhóis… afinal, se as colónias eram para ser de alguém na altura seriam dos tugas espanhóis… afinal…

Este ano, na Tugalândia, ou Portugal, como eles gostam de a chamar, o dia da restauração não está a correr nada bem, por duas razões:

Primeira, os empresários tugas do dia da restauração resolveram fazer greve de fome, acho que ficaram com saudades dos tacos e das tortillas. Isso é muito preocupante, se os donos da comida fazem greve de fome, imagina quando chegar a vez dos mendigos. Se a moda pega, o sindicato dos políticos… os políticos têm sindicatos? Bem, pela forma como são tratados e insultados pelo povo, se ainda não têm, acho que deviam… Como estava a dizer, se a moda pega os políticos ainda vão começar a fazer greve contra a corrupção, e os banqueiros contra as altas taxas dos bancos, e, como disse a tia Luzia Roubado, os patrões contra a precariedade. Será que estou a confundir as lutas? Sei lá, mas que é confuso, é. Só quem tem a barriguinha cheinha se atreve a fazer greve de fome, porque sabe que depois da greve tem a comidinha à espera.

A segunda razão, relacionada à primeira, é que os chefes dos tugas, o Marmelo e o Crosta (acho que é assim, mas vou confirmar depois), decidiram não deixar os tugas saírem da casa hoje, porque é perigoso lá fora: há um bicho pequenino, chamado Covid, a apanhar os tugas lá fora (não apanha turistas, nem imigrantes, estes podem ir trabalhar à vontade, e nem apanha os tugas coitados que têm trabalho de merda), por isso, quando o sol está no zénite é hora de começar a voltar para a casa, porque é quando o bicho acorda para apanhar os tugas preguiçosos, e estes precisam de ficar em casa, para encomendar e receber tudinho no quentinho do seu sofazinho, enquanto vomitam críticas contra as pessoas que têm de ou que querem estar na rua.

Então, por conta disto, não se pode fazer o dia da restauração como deve ser, os tugas devem ir para as suas casas e fingir que é um restaurante, se não souberem cozinhar, problema deles. E é isso que enfurece os empresários tugas do dia da restauração: como é que querem matar séculos de tradição tuga? Mas os chefes tugas dizem que os tugas têm que ser menos egoístas e mais solidários com os outros tugas, porque não há camas e aparelhos suficientes nos hospitais para descovidar toda a gente. Então os tugas, obedientes, vão para a casa. Antes ficavam contentes com isso e até batiam palmas e tocavam panelas na varanda, mas já estão fartos disso.

Os chefes tugas gostam de apelar à solidariedade, porque não há camas suficientes nos hospitais. Há muitas camas em muitas casas vazias, mas muita gente sem teto a viver na rua e muita gente a rezar para que os chefes dos tugas não façam um sinal para ser despejada; há muitas casas vazias e muitos tugas a viverem na rua, mas descobri que para os chefes tugas parece que a solidariedade tem a ver apenas com as camas dos hospitais e apenas para doentes da Covid.

Os chefes tugas continuam a querer jogar dinheiro aos seus amigos tugas dos bancos, das TAPs, da saúde privada e fechar as pessoas em casa, ao invés de investir na saúde pública e comprar mais camas para não favorecer o bichinho, e, enquanto isso, os tugas coitados estão a ir para o desespero. E isto dá medo, pois, há muiiiiiiiitos anos quando os tugas entraram em desespero, encheram-se em barcos e foram para África brincar a empresários… e não correu nada bem, para os africanos, é claro. Mas agora, por conta de desespero os africanos também vêm cá à Tugalândia tentar brincar a empresários, mas são mandados logo para as obras.

Os amigos tugas dos chefes dos tugas estão a despedir muitos tugas coitados e quando isso acontece, sempre mandam os tugas coitados emigrar. Por exemplo, há não muitos anos, um chefe tuga chamado Caço Coelhos também fez o mesmo, deu muito dinheiro aos seus amigos tugas donos dos bancos e despediram os tugas coitados e mandaram-nos emigrar. “Vá!, todos para o Norte, emigrem para a Europa, saiam da Tugalândia.” Nada mais fazia sentido para mim, eu a vir para a Tugalândia e o tuga, todo complacente e piegas, a fugir da Tugalândia.

Mas eu tenho um objetivo na vida, eu vim a Portugal para ajudar os tugas, para lhes ensinar a ser de cara menos fechada e mais sorridentes, para pararem de arrastar o corpo pelas estações do metro de manhã, como cadáveres vivos. Vou criar uma ONG aqui para ajudar os tugas a serem mais firmes e a saberem o que são os direitos humanos e a conhecerem a democracia, para não terem de aceitar complacentemente tudo dos seus chefes ditadores tugas, enquanto ficam em casa a serem piegas e a escreverem na Internet.

A minha ONG vai ser sem fins lucrativos, mas eu e os meus colaboradores que vou mandar vir de África, temos de ter um salário chorudo, afinal a Guiné-Bissau não é assim tão perto e eu sou um expatriado, não imigrante, imigrante é coisa de pobres, como os tugas coitados. E os tugas com quem vou trabalhar aqui podem fazer voluntariado, dou sandes e sumo todos os dias e tá-se. Vou chamar o tio Paulo Bano para coordenar, porque ele é um especialista em Estudos Tugas. Vamos fazer workshops sobre “como ser um bom cidadão tuga”, e ensinar aos tugas a culinária guineense, pois acredito que é a única forma de honrar o dia da restauração tuga, senão os restaurantes aqui vão continuar todos fodidos. Os meus alvos mais imediatos são a PSP e o Parlamento, a TVI fica para a segunda fase.

A sério, é preciso e é urgente restaurar o tuga e criar “homem novo tuga”, porque estes tugas estão cada vez mais a namorar com os bafientos netos do Salazar, porque não sabem realmente o que a democracia é. É bom que saiam do armário, sim, é bom, por isso é que a minha ONG tem o trabalho missionário de recebê-los e civilizá-los, para largarem esses hábitos selvagens e essa falsa religião e o seu Papa Ventura, que os leva a adorar o Santo Salazar e o Santo Hitler. Desta vez não vou falar que PORTUGAL É RACISTA, para evitar polémicas vazias.

Eu só estou aqui para educar os tugas sobre a sua própria história e civilizá-los, porque há uns anos vi o pedido de ajuda do chefe tuga Sovaco?… Babaco?… Palhaço?… bahhhh, não interessa, está na foto. Acho que ele estava com saudades dos tacos e das tortillas.

17 de outubro de 2020

DIÁRIO DE UM ETNÓLOGO GUINEENSE NA EUROPA (dia 4)

17 de outubro – etnólogo dos enólogos

 

Os problemas da Covid não me têm ajudado muito em focar-me nos últimos meses. Queria escrever sobre tanta coisa, mas falta tempo, quer dizer, tenho muito tempo de sobra, só não sei o que fazer com ele. É que os tugas, tanto os de Portugal, como os tugas da Europa têm andado a obrigar as pessoas a ficarem fechadas dentro das suas casas, dizendo que é para não apanharem Covid. Não entendo nada, primeiro diziam que os seus velhotes andavam sem-vida, agora por causa da Covid, mandam-nos ficar em casa, sem visitas e sem-vida, e ainda chamam à doença de Covid. Qual com vida!

O tio Paulo Bano Bajanca tinha-me ensinado para ficar desconfiado quando os tugas me mandam ficar em casa, ele disse assim: “Sobrinho!, fica desconfiado quando os tugas te mandam ficar em casa e te dizem para não sair, porque, de repente, quando te mandam sair, já nem a tua casa te pertence. Foi o que fizeram na Guiné.”

Eu, às vezes, pensava que o tio Paulo Bano exagerava, mas descobri que não. Toda a história dos tugas da Europa é desse tipo, tios que matam sobrinhos para tomar o poder, irmão que mata a irmã, irmã que guerreia irmã, primo que mata o sobrinho, tio que casa a sobrinha, uiiiiii.

Aqui em Portugal, por exemplo, os tugas têm aquele gajo que eles chamam de Avenida Don Afonso Henriques, aprendi que o rapaz da mãe dele entregou-lhe um castelo, e ele, de repente, disse que o castelo lhe pertencia e mandou bater na mãe e ficou com o castelo e foi lá que ele que inventou Portugal, ou descobriu Portugal, nem estou certo. Os tugas tiveram assim um mau arranque, estás a ver?, mas o pior é que ficaram a copiar o seu inventor, foram à Mouraria, fingiram que foram ver azulejos e tomaram aquilo, foram ao Algarve, fingiram que só tinham ido à praia e ficaram com aquilo (agora os tugas ingleses estão a fazer-lhes a mesma coisa) , chegaram ao Brasil, fingiram que eram amigos e tomaram aquilo, foram à Guiné, fingiram que eram amigos e tomaram aquilo, Angola, Moçambique, Timor, os impostos dos outros tugas coitados. Por isso é que o tipo Paulo Bano diz que os tugas são como macacos, se lhes estenderes a mão, eles sobem-te pelos ombros. Mas também, disse ele: “Toma muito cuidado, conhece primeiro alguém antes de julgar esse alguém. Não é a cor ou a raça de alguém que faz com esse alguém seja bom alguém… por exemplo, olha só para os que mandam na nossa terra.”

Hoje, como os tugas tomadores já não podem tomar de qualquer maneira as coisas dos outros de outras terras, então os chefes dos tugas tomadores começaram a tomar as coisas dos outros tugas mais coitados. Por exemplo, arranjam um amigo tuga, metem-no num banco, esse rouba muito dinheiro às pessoas tugas coitadas e as pessoas tugas coitadas ficam sem dinheiro e choram; então os chefes dos tugas tiram o amigo tuga do banco, metem outro amigo tuga e tiram novamente o dinheiro às pessoas tugas coitadas para pagar o estrago que o primeiro amigo tuga fez, e enquanto isso o novo amigo tuga fica a tirar o dinheiro às pessoas tugas coitadas outra vez e, de repente, às pessoas tugas coitadas ficam sem casas, sem empregos, porque o amigo tuga dos chefes dos tugas tomou-lhes o dinheiro todo. Muitos desses tugas coitados acabam por desesperar e matar a cabeça. Mas achas que os chefes tugas se importam? Nem pliu.

Quando contei isso ao tio Paulo Bano, ele disse: “Olha só para veres!, se eles fazem isso com os seus irmãos tugas, achas que é a ti que vão perdoar?”.

Ontem um dos chefes dos tugas, o Marmelo ou Martelo, não me lembro direito do seu nome, só me lembro que ele gosta de abraçar os tugas coitados. Ele e o Papa Francisco, um tuga que vive na Itália e pensa que fala com Deus (mas ninguém o mete no centro mental), eles parecem estar numa competição de quem abraça mais coitados. E ficam tanto a falar dos coitados e da coitadeza, enquanto comem do bom e do melhor. Ah, quase que me esquecia, sou muito distraído… O tuga Marmelo disse que muitos outros países democráticos obrigam as pessoas a usar máscaras, logo está bem Portugal obrigar as pessoas a usar máscaras. O Marmelo esqueceu-se que muitos países democráticos invadem outros países e fazem merdas em outros países (como a frança e o seu Franco CFA na África Ocidental), sem deixarem de se chamar democráticos, mas não quer dizer que isso é bom ou justo… naaaaaá, acho que ele sabe, porque pelo visto, lê muito quando não está ocupado a abraçar os pobres.

O tio Paulo Bano disse que quando Amílcar Cabral estava a lutar para libertar a Guiné dos tugas maus, ele publicou lá na Inglaterra, com o nome Abel Djassi, um trabalho que mostrava o mal que os tugas faziam na Guiné. Mas... que esses mesmos ingleses que apoiaram a publicação, estavam na África do Sul a castigar os pretos. “Não te fies, sobrinho, os poderosos sempre ficam do lado um do outro e apoiam-se uns aos outros e dão aqueles prémios chamados Prémios Ignóbeis de Paz um ao outro, enquanto o resto do mundo continua em guerras”.

Depois de ter ouvido estas palavras do tio Paulo Bano fiquei muito preocupado com a Guiné-Bissau, a terra que deixei para trás por causa desta minha vontade de etnólogo de estudar a raça tuga. Os chefes dos tugas estão agora a olhar muito para a Guiné-Bissau, a prepararem visitas e tal, e eu fiquei com a pulga atrás da orelha, será que querem é ir atrás da madeira?, pois parece que da última vez perderam para os tugas da China. E agora que os nossos tugas-de-terra começaram a sangria de novo, os tugas de Portugal não querem ficar de fora. Ou será que é por causa do Petróleo que vai ser cavado na Guiné numa zona protegida como Reserva da Biosfera? Ou têm é outra ideia na forja?

Epá, esses chefes tugas são mesmo como o Avenida Don Afonso Henriques, querem tomar tudo para si e para os seus compadres e compadriagens. Agora querem é entrar no nosso telemóvel… entrar é fácil, o problema vai ser tirá-los de lá depois, pois uma vez dentro, vão começar a arranjar outras razões para lá ficarem. Não se deve dar aos ivan dráculas a permissão de entrarem na tua casa, é um mau precedente. Perguntem à mãe do Avenida, ela que vos diga.

Mas os chefes dos tugas sabem que conseguem fazer o que querem dos tugas, porque os restantes tugas, tanto os coitados como os assim-assim, aqueles chamados de Zé Povinho, são todos uns porreiros: reclamam, escrevem artigos na Internet, dão entrevistas, escrevem livros, mas depois "bebem vinho verde e vão às putas" , disse um tuga europeu qualquer, e ficam todos calmos e vão pagar impostos de novo para salvar algum banco ou alguma TAP. Os tugas são enólogos, sabem tudo sobre vinhos, desde que haja vinho, está tudo bem, bebem até na autoestrada. E se os tugas Zé Povinho deixam os chefes tugas meterem a mão nos seus bolsos, achas que é um aplicativo no telemóvel que os vai preocupar?

Adoro os tugas, pá, são tão calmos e tão passivos com os seus chefes tugas, que até se entalam e morrem num portão lá em Martim Moniz só para deixar os chefes tugas contentes. A única maneira de espevitar os tugas é dizer-lhes que Portugal é racista. Aí, juro, cai o Cravo e a Maternidade.

 

P.S.: Disseram-me que Covid afinal não significa com-vida, e que não foi o tuga português que o descobriu. Ai, que descobrimento.

17 de agosto de 2020

CARO IRMÃO REVOLUCIONÁRIO (os 10 mandamentos)

Caro irmão revolucionário,


Espero que esta carta te encontre de boa saúde, a gozar a juventude em toda a sua plenitude, que nunca madures e que continues sempre cheio de ideais nobres de uma mudança que valha o seu nome, pois, meu caro, da forma como isto anda nesta banda, esta demanda de mudar o mundo está cada vez mais a ir para o fundo e eu acho, meu caro revolucionário, que neste caso, ao contrário do que proclamamos, o problema somos nós. Pois…

… Enchemos a cabeça de conceitos e preconceitos, e achamos que daqui somos os melhores sujeitos, os poucos com a visão clara do que é o mundo; e dizemos facundos que este mundo absurdo é imundo; que este conjunto de humanos moribundos no fundo não são mais que defuntos; e que nesta baia todos são da mesma laia, vistam calças ou vistam saia, escravos do capital, dominados e formatados pelo sistema social, a fazer um caminho trivial, vivendo com mordaças na andança de um Sísifo, sonhando com o idílico num pesadelo nítido, mas com os olhos húmidos e túmidos, empurrando montanhas, comprando banhas de cobra, por isso só lhes sobra a nhanha que transborda pela boca, pois nem uma foda decente este povo invoca; todos Sísifos estúpidos que vivem em falácias.

Até memorizamos os nomes dessas falácias, em latim, pois assim dá pra fazer mais chinfrim e mostrar que somos a nata beata desta casta de intelectuais, e mais, usamos os nomes dessas falácias para atirarmos com audácia, cagança e pujança na cara de todos os outros, porque os outros são uns grossos. Intelectuais?... os intelectuais somos nós, sim, podem ser os outros, mas só uns poucos e só um pouco, só na medida em que concordam connosco. Reclamamos todos nós, no alto da intelectualidade de sermos os donos da verdade, ou quando muito somos os amigos dos donos. E como o resto do mundo está enganado, cabe então a nós a tarefa de acordá-lo.

Caro irmão revolucionário, a revolução será desta vez, pois somos donos da sensatez, somos fiéis às nossas fés de que vamos desfazer à desfaçatez dessa gente incoerente sem viés decente. Será a revolução final, pois será a revolução mental, por isso, é preciso ensinar a esses tipos que querem fazer este serviço os 10 MANDAMENTOS para ser um revolucionário convicto.

Revolucionários! Em marcha!



ARTIGO PRIMEIRO: O revolucionário tem que ser porreiro. Então dá jeito teres uma camisola à altura, que manifeste a tua postura. Revolucionário que se preze dever ter uma camisa estampada com a cara de Che Guevara, comprada ali na Zara ou em qualquer outra banca… coitado do Che Guevera, que odiava o capitalismo e agora é vendido pelos tipos contra os quais lutava aos tipos que dizem que o amam... mas na falta de Che Guevara aceita-se um pano estampado com uma folha de canábis, pois revolucionário de verdade tem que puxar no haxix, pois isso é que é fixe, e tem de dizer que o mundo só é infeliz porque aqui o haxixe é tratado como se fosse um vício, por isso lá na Jamaica é que é o paraíso, pois pelo visto ali é só festa e dança e o sofrimento não existe.

ARTIGO SEGUNDO: O revolucionário tem de parecer imundo. Por isso, pára de te pentear, o tempo à frente do espelho é para desarranjar, só desta forma é que mostras que cagas nas normas. Usa dreadlocks, cortes loucos, penteados a Zé, camisa de Bob Marley, pano camuflado, gorros jamaicanos e charros, é claro. Se puderes, vai mais além e pára de te lavar, com essa atitude vais mostrar que estás ciente dos teus privilégios, aproveita esse ensejo de não banhar para mostrar que ao poupar água estás a ajudar as pobrezinhas das criancinhas na África que não têm água potável nem sequer para beber.

ARTIGO TERCEIRO: O revolucionário deve ser expresso. Tens que criar uma marca para a revolução, uma marca que abarca a tua preocupação, mesmo que seja uma coisa banal, por exemplo… hmmm… usa um chapéu como o de Amílcar Cabral, um boné caído à Pantera Negra, usa a cor preta, combina-a com verde, vermelho e amarelo. Não importa se esses cotas eram autênticos e originais e que todo o mundo topa que sem tento te esvais a fazer cosplay. Vai lá, vai! O teu nome original é ordinário para revolucionário, escolhe um nome de uma paleta africana (?), escreve-o com YpsYlon, dabliW e Kappa, porque essas letras são africanas(?), percebes a manha?... Não? Lê o MYA KOWTO e vais entender a piada. Como bom revolucionário, tens de vestir sempre um pano de batik, mesmo que esse pano seja originário de Indonésia, não tem problema, porque nesta cena, tudo o que não é branco privilegiado é então irmão amado, além do mais, esse pano é agora africano.

Revolucionários! Em marcha!


ARTIGO QUARTO: O revolucionário tem de odiar os bancos (e brancos, se der jeito, mesmo que sejas um, mesmo que só a fingir). Por isso não pára de mostrar a este povo ordinário que se mata a trabalhar para um mísero salário, de que o melhor a fazer é despedir-se, e que só ganha mal porque quer continuar nesse trabalho infernal que só alimenta o capital. Grita a plenos pulmões que odeias o capital, mas não faças o pecado de negar de herdar o dinheiro do papá… ou da mamã. Fala mal da burguesia, mas não largues a mordomia de ter o pilim todos os dias. Passa o tempo nos bares a fazer esgares, em conferências de copos, onde possas gritar como louco de como é um nojo que o nosso povo insosso não tenha nem um pouco para encher o bojo.

ARTIGO QUINTO: O revolucionário tem de ser distinto. O motivo mais lindo de um revolucionário é também fazer um trabalho de missionário. Lembras-te do Che Guevara, o homem que nunca parava, que andava de terra em terra atrás de uma boa guerra? Pois, não te peço esse preço, mas tens que mostrar o teu apreço indo para a África ajudar os pobres pretos, pois isso é o mais certo. Mas enquanto estás em aqui no centro, podes continuar cego às pessoas ao teu cerco, pois este esterco europeu não merece o teu zelo, aliás nem tem estilo ajudar esses matrapilhos, porque se fizeres fotos não ganhas muito gostos como os que ganhas quando fazes fotos com miúdos pretos. Louco, hein!, certo?

ARTIGO SEXTO: O revolucionário tem de ter um doutoramento. Não podes ser um pé-de-chinelo intelectual, tens de saber te movimentar pelas filosofias de quintal, conhecer os autores e citá-los tal e qual, mas ao mesmo tempo não te podes calar, tens que continuar a falar mal do sistema académico, enquanto preparas a tua tese respeitando o arquétipo para saíres dali doutorado e com mérito. Um bom revolucionário é aquele que é um dos três A: ou Académico, ou Artista ou Ativista, mas se fores um A3 ou um Triplo A, acredita, revolucionário mais chato que tu não há.

Revolucionários! Em marcha!


ARTIGO SÉTIMO: O revolucionário deve ser ético. Mas não deixes que isto de ser ético te torne caquético, porque se fores muito reto a tua revolução vai falhar. Tens de batalhar pelo teu politicamente correto, desde que não te afete, entretanto, não vás com jeito de olhar para os campos cinzentos, agarra-te apenas ao teu conceito, mesmo que se torne abjeto falar em nome da tua liberdade para asfixiar a liberdade de outras gentes.

ARTIGO OITAVO: O revolucionário deve defender os direitos humanos. Não tem necessariamente de ser todos os humanos, mas quanto mais fulanos tiveres debaixo dos teus braços ou cobrires com as tuas asas, melhor é para as tuas causas. Não faças pausas, continua, faz a luta, se faltarem inimigos, espeta o próprio umbigo; vá, continua, cria figuras, inventa brumas, ebraceja, donquixoteia, afinal os moinhos estão aí mesmo para isso. E se não te chegarem os humanos, há os direitos de animais, mas não queiras ser vegano, nem partilhar com os demais, pois todos os animais são iguais, mas um revolucionário é o mais igual dos animais.

ARTIGO NONO: O revolucionário dever mover o povo. Até aqui, nada de novo, pois esta sociedade move-se como uma roda, e todo grande conservador já foi um passado revolucionário, e todo o grande revolucionário é um futuro ditador. Por isso, tens de começar a treinar novas formas de despotismo, cria novos classismos, novos ismos, mesmo que cópias maquilhadas de ismos já antes urdidos, porque depois da revolução vais reclamar com vazão o direito de ser potestade, porque foi o teu ativismo que libertou a sociedade.

Revolucionários! Em marcha!


ARTIGO DÉCIMO: O revolucionário deve escrever textos. O revolucionário escreve longos textos para debitar as suas rimas e as suas críticas vazias, onde fala de problemas sociais, de outros tantos e muito mais; onde fala de revolucionários bem-intencionados que não fazem um caralho para ajudar os outros ao seu lado, e que só procuram estrelato usando os outros como planos; fala de revolucionários perdidos em questões existências e que não sabem mais o que procuram e então se entretêm a brincar a anti-isto e anti-aquilo, mas que não arredam um centímetro e mandam tudo para os brejos quando se mexem com os seus privilégios; fala que a sociedade está zumbificada, parecendo por vezes que ele conhece a estrada; fala, num discurso igual, que é preciso uma mudança radical para acabar com o capital, mas consumista também não vive sem comprar e nem quer abandonar o conforto de um lar, de uma casa e de uma cama, e no resto dos dias da semana, também anda com a manada. Mas a contragosto, diz ele, vê-se no meu rosto. 

E... o revolucionário gosta de cenas alternativas, se é preto vai à música céltica, se é branca vai ao B'leza.

Revolucionários! Em marcha!



Caro irmão revolucionário, perdoa-me pelo comprimento deste texto, eu quis explorar a maior parte dos contextos, e perdi-me em subtextos, mas podes usar isto como um pretexto para protesto contra o que eu acabei de dizer. Eu queria mostrar-te algum caminho, mas confesso que também estou perdido e ando nisto muita vezes sem saber se é por raciocínio ou apenas por instinto… instinto de sobrevivência. Mas caro irmão revolucionário, não é só uma questão da resistência, mas também... da existência.

13 de junho de 2020

DIÁRIO DE UM ETNÓLOGO GUINEENSE NA EUROPA (dia 3)

13 de junho – o tuga e os símbolos

 

Não tenho feito registos nos últimos tempos, mas não foi por ter perdido interesse em estudar e entender os tugas, foi, sim, por falta de tempo. Não é fácil estudar os tugas ou estudar qualquer coisa que seja quando se tem que se levantar às seis da manhã para ir bumbar nas obras e voltar para a casa com os ossos todos moídos.

Na verdade, mesmo nas obras aprendo com os tugas, sei que eles gostam de ser chefes e de mandar em pessoas, e quando a pessoa não sabe falar português bem, uiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, eles não dão tempo mesmo, eles dizem que falas pretuguês. Espera, mas isso é quando és preto, porque os ucranianos simplesmente não sabem falar bem português, os brasileiros falam brasileiro, só os tugas falam português. Alguns deles, preocupados com o meu pouco desenvolvimento linguístico, disseram-me assim: “Um dia hádes falar bem português. Mas, caralho, tu estivestes a trabalhar á treuze meses atrás com agente apenas e ainda não cabeu na tua cabeça aprender a falar bem. Não é que ténhamos de te ensinar, mas que perca de tempo.” Claro que coube, mas como diz o meu amigo brasuca: “O portugueis edifício, mermão”.

O tuga tem muito orgulho do português, tanto orgulho que muitas vezes o mistura com o inglês ou o americano... uadevá... mas tem tótil orgulho da tugalidade, tanto orgulho que até tem um dia para a liberdade tuga, um dia para a língua tuga, outro dia para a raça tuga e ainda outro dia para a república tuga. Quando eu descobri isso só pude pensar: “Santo António Vieira de meninos índios!, tantos dias! Que complexo estão a tentar esconder com essas tantas lembranças da tugalidade?” Ah, quase que me esquecia do dia para a Virgem Maria Tuga e do dia para o Santo António. A propósito, o que é isso do Santo António estar sempre rodeado de meninos ou de colocar o menino no colo? Isso é alguma espécie de pornografia doentia para os padres? Oh, já estou de novo a divagar.

Os tugas são até gajos fixes, muito fixes mesmo. Estão sempre preocupados comigo e com como vão as coisas no meu país e dizem-me: “Epá, estais a ver, desde que saímos do teu país, vocês só andaram a fazer merda. Mas a culpa é nossa, por causa que não sabiemos vos dar uma boa independência”.

O tio Paulo Bano Badjanca já me tinha falado que os tugas acham que só eles são grandes e sabem fazer as coisas e que ninguém mais sabe nada. Disse que os tugas quando fazem qualquer coisa, metem lá um símbolo. O tio Paulo contou-me que aquela estátua enorme da Maria da Fonte em Bissau quem na verdade a construiu foram os guineenses, que nem foram bem pagos ou sequer foram pagos, mas quando acabaram a estátua, os tugas pegaram na estátua, disseram que foram eles que a fizeram e chamaram-na “Esforço da Raça”, mas não era o esforço da raça guineense, não, mas esforço da raça tuga, como se tivessem sido eles que derramaram ali suor e sangue. O tio Paulo Bano disse que os tugas têm orgulho e vaidade nesses símbolos de poder, de violência e de opressão, e que não toleram quem não os respeite. Os tugas chegaram à Guiné, destruíram todos os símbolos das pessoas, dizendo que eram maus símbolos, e colocaram os símbolos deles. Contou-me, por exemplo, que os tugas têm uma cantiga e que obrigavam a toda a gente na Guiné a aprender essa cantiga, porque era uma forma de mostrar como eram importantes e como eram grandes e como até o próprio mar era nada diante de um tuga. O tio Paulo sabia a cantiga de cor e dizia assim:

“Herói do nada, pobre povo

são-lazarento imoral.

Caramba! Caramba!

sobra a guerra, sobra o mal.

Caramba! Cramba!

Há carrapata no ar,

coçar os colhões

murchar, murchar!”

Mas o tuga não vê nenhum sinal de violência nesta cantiga, para ele é simplesmente uma cantiga sagrada e que não deve ser conspurcada, pois o tuga é aquele que dá “novos mundos ao mundo”, como se o velho mundo do mundo fosse uma coisa má.

O tuga adora símbolos, mas só os seus, os dos outros são afrontas, são para serem substituídos pois não têm valor e não refletem a importância de quem os tem (se não forem americanos, é claro. – E falando em tugas americanos, esses mataram há uns dias um gajo chamado Jorge Freud, o gajo que fez aqueles filmes chatos sobre o sexo, e parece que os tugas de Portugal não gostaram nada, mas vou falar disso depois).

Mas… como estava a dizer antes, o tuga adora símbolos, porque esses símbolos mostram a sua grandeza, por isso os meus colegas do trabalho disseram-me: “Já comestes pastel de Belém, caralho? Epá, não podes dizer que vivestes enquanto não comeres um pastel de Belém, representa Portugal. A receita foi dada aos três pastorinhos pela Virgem Maria em pessoa, é o mesmo pastel que ela fazia para o menino Jesus em Belém.”

Santo António do menino Jesus me acuda!, o tio Paulo Bano não me tinha dito que até Deus adora os tugas. Será que é por isso que os pastéis de Belém se fazem perto de um mosteiro?

29 de maio de 2020

WAKA-QUÊ? - BLACK PANTHER (uma treta de representatividade)

Resisti imenso a falar aqui sobre o filme Black Panther… o ficcional. Mas alguém ter citado Wakanda por conta do que se está a passar hoje nos EUA levou-me a escrever. Quando o capitalismo se apossa das causas sociais, temos isto.

O filme, apesar da estética e do formalismo maravilhoso, é narrativamente bastante fraco, um filme onde o vilão consegue ser mais consistente e mais sólido que o herói. Mas tirando todas as falhas do conceito e da execução do filme, o marketing do mesmo foi genial.

Black Panther foi vendido como um filme negro, um filme para negros, um filme afro-futurista(?), e o marketing foi tão bem feito com ajuda dos próprios movimentos negros e o filme ganhou o hype que ganhou (e o dinheiro que ganhou). Mas na verdade Black Panther é um filme tão negro-representativo como Wonder Woman é um filme feminista, aliás, eu já vi filmes pornos mais feministas que Wonder Woman.

Voltando ao Black Panther, o que faltou na análise é que a história do filme não representa sequer a África ou os negros. Black Panther é a história de privilegiados que querem manter os seus privilégios. Wakanda é todo futurista, assim como Nova Iorque é cheia de prédios, mas como vivem as pessoas, como vivem os pobres? Por que é preciso um sistema monárquico e todo à la Rei Leão (inclusive com o herói a ter visão do pai)? Por que é preciso um sistema de força onde machos-alfas lutam pela coroa? Por que o herói que perdeu a luta, dentro das leis locais, volta para cometer um golpe de estado? Por que o vilão que é mais coerente e que só quer liberdade para o seu povo teve a sua filosofia distorcida, tornando-o um genocida? Há mais coisas.

Para simplificar a leitura, mostro alguns problemas da representação do filme que mostra com ele é bem branco e panfletariamente americana:

1. Dentro de Wakanda, uma sociedade ultra-desenvolvida, a questão da liderança é resolvida à força através de lutas tribais.

2. A tribo "Jabari" que não quer a tecnologia é representada como "primitiva", nem veste roupas, anda o tempo todo pintado e quando aparece fica a ulular.

3. A CIA que foi inimiga dos Black Panthers reais é representada no filme como amigo, e até Wakanda que é fechada à restante África foi aberta ao amigo branco da CIA.

4. O príncipe acha que agora Wakanda vai abrir-se para o mundo, então a primeira coisa que faz foi ir para os Estados Unidos abrir um centro qualquer, em vez de fazer acordos com os países africanos que sofrem da opressão do capitalismo.


Black Panther é um filme com atores negros, trabalhadores negros, mas, não é um filme sobre negros ou sobre a luta dos negros, aliás a única pessoa que representa a luta dos negros é o vilão (entendem a relação?). E no final do dia, com todos os negros a comprarem bilhetes, brinquedos, camisolas e merchandises de Black Phanter (ou mulheres, no caso de Wonder Woman), quem fica ainda muito mais rico no final do dia são os donos dos estúdios americanos, homens brancos e ricos como os Harvey Weinstein.

Africanistas a dizer Wakanda Forever… pelamordideus, basta de masturbação. Voltem para a realidade. Resumo: se não desenharmos nós mesmos as nossas lutas, fora dos sistemas controladores, vamos continuar a wakandar forever enquanto a situação continua a mesma.

Ah, a propósito, a cena de cruzar o braços em X é muito mais antiga do que Black Panther.


18 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM ETNÓLOGO GUINEENSE NA EUROPA (dia 2)

18 de maio – conquistando

 

Epá, eu adoro os tugas. Acho os tugas muito fixes, muito boa gente, cinco estrelas. Eu gosto de todo o mundo, não faço distinção. Tirando que estão sempre de cara fechada, os tugas adoram indicar o caminho. Acho que isso vem de uma mania de grandeza deles, porque os tugas, pelos menos aqueles de Portugal, acham que foram eles que descobriram todo o mundo.

O tio Paulo Bano já me tinha falado disso, disse que os tugas acham que até mesmo o Cristo Bom Codjon, aquele homem que pensava que estava a ir para a Índia, mas foi parar à América… sabem?... Acho que o nome dele em espanhol é Cristóban Colón… Hahaha… o pai dele não devia gostar mesmo dele: cólon, colón, codjon, não sei qual é o pior… o facto é que era mesmo um colono... Bem, estava a dizer, os tugas dizem que até esse tal Codjon é também tuga de Portugal, e não tuga de Itália, isso para poderem dizer que foram eles que descobriram o mundo todo. E estão tão convencidos de terem descoberto o mundo que disseram que vão fazer agora um museu de descobridagem… bom, eu disse descobridagem, porque eles ainda estão incertos entre “descoberta” e “descobrimento”, acham que são diferentes… hahahaha, esses tugas matam-me com graça… parece que nem sabem a própria língua, terei de escrever-lhes também uma gramática?

Ai, eu divago muito. Voltando ao assunto, acho que essa coisa de pensarem que são descobridores ou descobertadores deve ter metido uma mania de grandeza qualquer na cabeça dos tugas, porque acham tudo pequenino, diminuem quase tudo, menos a sua própria importância. Por exemplo, o tuga, de manhazinha, quando sai da caminha, toma um cafezinho e vai para o trabalho. Ah, o trabalho eles não diminuem, acham sempre que é muito. Olha só, o tuga passa horas a regar um vaso na sua varanda e depois fica muito cansado porque trabalhou muito… epá, ainda bem que não v,ivem na minha tabanca, senão morríamos todos à fome, não haveria lavoura, receberiam dinheiro dos outros tugas para não lavrarem as próprias terras… Ah, o tuga também não diminui o tamanho da pila, o tuga não tem uma pilinha, tem um pilão… Continuando… O tuga sai da casinha, desce umas escadinhas e, se encontrar a vizinha, cumprimenta-a com um beijinho. Sabem, beijinho ainda até entendo, mas quando o tuga me manda um “beijinho grande”, aí fico completamente embaralhado… qual é o tamanho de um “beijinho grande”? é igual ao de um “beijo”, então por que não mandou logo um beijo?, se é maior que o “beijo”, então por que não um “beijão”?

Enfim, mas o tuga e essa coisa de que é grande é muito complicado, é a única coisa que não gosto muito nos tugas, pelo menos os de Portugal. Por exemplo, os tugas de Portugal dizem que o português deles é que é, porque 10 milhões deles o falam, e nem querem saber que no brasil são 200 milhões. E sentem-se muito orgulhosos quando eu falo kriol, acham que o kriol é menos importante, porque tem uma origem portuguesa… coitados, não sabem que o português foi também um crioulo do latim. Alguns tugas ainda me fazem mais graça, pois nem sabem onde se situa a Guiné-Bissau e que língua falamos, ficam bastante surpresos quando digo que falamos também purtuguiss. Eu divirto-me imenso, eles são tão ingénuos, acham que são grandes descobertadores, mas não sabem o quê supostamente descobertaram.

Eu acho que quando voltar para a Guiné-Bissau, vou fazer um museu para mim mesmo. Claro que não fui o primeiro a ir à terra-branco, por isso não posso falar propriamente de ter sido eu a descobri-lo, mas descobri muitas coisas sobre os tugas, sou um conquistador de verdades sobre os tugas.

Por exemplo, eu pensava que os tugas tinham só uma raça, pois é isso que eles escrevem nos livros, e na sua constituição, até descobrir que eles têm outras também, por exemplo, tem uma raça que eles chamam de ciganos, eles não gostam nada desses ciganos. Eu fico, tipo: Kumekié, caralho!? 'Tão!, vocês vão lá para a Guiné com os vossos padres e as vossas ONGs a falar que devemos nos juntar e mamar como irmãos, e vocês aqui não gostam uns dos outros! Caralho!

Ah, os tugas gostam de dizer caralho. Quando estão contentes é caralho, quando estão tristes é caralho, quando não estão nada é caralho, só para praticar. Uma dica: se quiseres falar como um tuga tuga mesmo tens de dizer muito caralhos, foda-ses, merdas, porras e tal. Tem aquela outra raça dos tugas, chamados tripeiros, uiiii, esses são caralhentos pa caralho, não dizem um caralho sem dizer caralho.

Voltando aos ciganos, os tugas não gostam nada dessa raça. Eu pensava que os tugas não gostavam de pretos, mas já falei com muitos e me disseram assim: Epá, eu adoro os africanos. Acho os pretos muito fixes, muito boa gente, cinco estrelas. Eu gosto de todo o mundo, não faço distinção, tirando os ciganos… pois esses…

17 de maio de 2020

COMO ESCREVER EM KRIOL (PARTE 2)


Esta é a segunda parte de um exercício que comecei aqui:

Apesar de se escrever cada vez mais kriol, há uma série de “erros” que continuam a aparecer nessas escritas e vou elencar alguns de uma forma simplificada, mas que possa permitir posteriormente discussões mais profundas.


2. PROBLEMA NA SEPARAÇÃO DAS PALAVRAS

Não são incomuns textos onde aparecem palavras como “BADJA” em vez de “BA DJA”, por exemplo, para significar “Já te tinha dito...”, escrevem “N’ falau BADJA…”, ao invés de “N’ falau BA DJA…”. “Badja” significa “dançar, bailar”. “BA DJA” seria o correto, uma vez que “BA” é um marcador de passado e “DJA” é um advérbio de tempo. Mas vamos tentar deixar aqui a complicação nomenclatural para os gramáticos e os linguistas e tentarmos ficar mais na terra.

Escreve-se muitas vezes sem separar a palavras que quando não separadas significam outra coisas, tal como BADJA / BA DJA, há muiiiiiiiitas outras, mas vou elencar aqui apenas algumas:

AMINA, AMI NA, BOTA, KUTA, KUNO, IKUMA, SIBIME, DIDIME, NEGADE, NONA, NOTA, INA, ITA, NOSBA, KUM MOSTRAU, IKATA, BANHUS, NKUME.

A maior parte destas palavras têm em comum os seguintes marcadores:


2.1. MARCADORES LINGUÍSTICOS

BA – marcador de passado – Aparece sempre depois do nome/pronome ou do verbo. “Djon BA ki fala” ou “Djon ki fala BA” (O João é que tinha dito).

BA – marcador plural associativo – aparece sempre antes do nome próprio “BA Djon na se bairu” significa “As pessoas do bairro do João”. (Prometo dar mais e melhores explicações sobre este marcador nas minhas aulas de KRIOL EM 42 LIÇÕES, quando sentir vontade de voltar a elas).

KA – marcador de negação – “i KA sibi” (ele/a não sabe). Nota: para quem está habituado com o inglês, “KA” funciona como o “DON’T”, não dizes o “KA” para dizer “Não”, mas para fazer frases negativas.

TA – marcador de aspeto habitual – usa-se para descrever algo que fazes com frequência, “Djon TA djuga tudu dia” (O João costuma jogar/joga todos os dias); para descrever um estado “Djon TA djuga na Futebol Clube de Sonaco” (o João joga no futebol clube de Sonaco); para descrever uma atitude ou ação ou qualidade que caracteriza uma coisa ou uma pessoa: “Djon TA djuga bem” (O João joga bem /O João é bom jogador) ou "Tchuba ta tchubi nam na agustu" (Chove muito em agosto).  

NA – marcador de aspeto contínuo / ou do futuro (depende do contexto) –  Ex. de contínuo: “Pera un bokadu, n’ NA kume.” (espera um bokadu, estou a comer); ex. de futuro: (Amanha n’ NA kume tok.” (vou comer muito amanhã). No inglês é basicamente o “ING”.

Enfim, acho que esta descrição acaba por servir mais para os não falantes de kriol ou os que estão a aprender a língua, porque os falantes de certeza sabem disto claramente. Mas para os escreventes de kriol, serve isto apenas para mostrar que KA, BA, TA e NA, são palavras independentes com a sua própria categoria gramatical, por isso não devem ser escritas juntas às outras palavras.

Sobre algumas palavras acima listadas:

IKA / ETA / UNA / BUTA / BOTA / BONA /. O mais certo seria: I TA, E NA, U NA, BU TA, BO TA, BO NA. Pensem nisto: “I” “U” “BU” “BO” são pronomes, pronome são palavras que podem ser substituídas por nomes. Então, tal como não escreverias juntos “DjonTA fala” “JoanaNA kume”, então faz sentido separar os pronomes dos marcadores, "N' TA", "BO TA", "KU TA" "KU NO", além do mais "BOTA" é um sapato, “KUTA” é nome de mulher, e “KUNO” é nome de pampana (dependendo da pronúncia, é certo). 



2.1.1. BA e BA

Também há quem use o “BA” para referir o passado, ligando-o imediatamente ao verbo. É uma influência do português, que usa o “VA” para o pretérito imperfeito, por exemplo, ESTAVA – ESTA(r) (verbo) + VA(sufixo) – logo, alguns escrevem também “STABA”, “CALABA” “KUMEBA” “FALABA”, entre infinitos verbos. A questão é que o “BA” não é um sufixo, mas um termo independente, um marcador do passado (neste caso específico). E “BA”, como observado, pode vir depois do NOME e do VERBO, como no exemplo acima: “Djon BA ki fala” ou “DJON ki fala BA”, por isso acho que escrever “falaBA” transforma o “BA” num sufixo quando ele não o é. Mas, de qualquer forma, isto é apenas uma observação, escreve “fala ba” ou “falaba”, apenas escreve, a língua kriol agradece.

NOSBA (i papia ku NOS BA – tinha falado connosco, definitivamente escreve-se separado).


Quanto ao segundo BA. 

Alguns escrevem “BANHUS” (para dizer “os senhores) ou “BANHARAS” (as senhoras). Mas como BA é também uma palavra por si, e tal como não escreveríamos “BADjon”, mas “BA Djon”, e tal como “nhara” (senhora) é uma palavra independente, por exemplo, as “nharas” de Cachéu, ou o “nhara-sikidu” (o arbusto, alguém se lembra?), penso que o mais certo aqui seria “BA nhus” “BA nharas”. Mas outra vez vou dizer, isto é apenas uma observação não imposição.


2.2. SEPARAÇÃO ENTRE PRONOMES E VERBOS

IKUMA, NKUME… entre outros. Seguindo os exemplos acima, penso que devemos separar os pronomes “I” “N”, e os restantes, do verbo, porque não escreverias  “DjonKUME”.
NKUME é juntar o “N” ou “ N’ ” depende do código escolhido por quem escreve, com o verbo logo a seguir.  Mas imagina que o verbo fosse “NVENTA”, então escrever-se-ia “NNVENTA”.

AMINA, AMI NA… Aqui falta o pronome forte “ N’ ”. Notemos que em kriol, dizemos “AMI” “ABO”, etc, para fazer referências às pessoas, mas para conjugar verbos temos de dizer “ N’ ”, “BU / U”, entre outros. AMI NA bai, significa que a pessoa com o nome AMI está a ir, não que eu estou a ir. “AMI N’ NA bai” já é outra questão. Mas entre AMINA e AMI NA, por favor, escreve AMI NA.


2.3. SEPARAÇÃO ENTRE OUTRAS PALAVRAS E AS PARTÍCULAS DISCURSIVAS

ME, DE, PON/PO, BO, NAN, PRO, GORA (não me lembro de outras agora), são partículas discursivas, quase sempre enfáticas, também termos independentes dentro do seu próprio contexto. Quando digo independentes não significa que podem ser usadas sozinhas, pois estão sempre condicionadas a um contexto, mas pertencem a categorias próprias. Se calhar são advérbios, pois alguns comportam-se com algumas palavras ou termos que em português são advérbios ou locuções adverbias.

NEGADE é claramente um erro, “i nega DE” (ele negou mesmo), parece-me mais certo, pois ainda podemos dizer “i nega GORA DE” ou ainda dar mais ênfase “i nega NAN GORA DE”, e sei lá, talvez até possamos exagerar e dizer: “I NEGA NAM GORA DE BO”.

Penso então o DIDIME deve obedecer à mesma separação das palavras (DIDI ME), principalmente porque usamos o DIDI sozinho, e o ME no "DIDI" so adiciona o ênfase. "DIDI mursegu ka ta bota ovu", "DIDI ME mursegu ka ta bota ovu" (Afinal os morcegos não põem ovos).



Bem, isto acabou por ficar muito mais comprido do que eu contava. 

Vou, portanto, ficar por aqui, por enquanto, depois mostro outros exemplos sobre os problemas em escrever kriol.