De Víbora na Mão, de Hervé Bazin, é daqueles livros que podemos classificar de fantasticamente fantástico, sem que isso se torne redundante. O autor escreve com muito humor enquanto disseca a psique humana, ou pelo menos parte dela. O livro é um murro terrível nos cornos de Freud, apresenta a criança perante os pais (a mãe, propriamente), sem aquela treta de impulsos sexuais a dirigir tudo. Não há aqui o complexo de Édipo, talvez o complexo de Prometeu, na medida em que apesar de conhecer o poder de Zeus ainda lhe rouba o fogo por lhe ser necessário, embora saiba das possibilidades de castigo.
Vou tentar fazer uma síntese da obra: Uma mãe cria três filhos sob as mais ridículas condições e um regime pior que o das madrastas de contos de fada. Não há essa relação amor-ódio a pontuar tudo, mas antes ódio-ódio, o que leva a admiração mútua entre oponentes. Três filhos perante uma mãe odienta, rica, mas sovina, e que os cria numa situação mais que parca, não como uma lição, para aprenderem a valorizar as coisas simples da vida, mas simplesmente porque quis; três filhos que se desenvolvem, relacionando-se com essa mãe, cada um à sua maneira: um preferindo vencê-la no seu próprio, outro tentando sobreviver apenas, e o último que, por não poder vencer o inimigo, prefere unir-se a ele.
Podemos deslocar a comparação e usá-la como uma metáfora social, porque na sociedade praticamente as pessoas se dividem, quando vêm os seus interesses em jogo, em grupos iguais aos desses irmãos.
O livro podia ser cruel, quando apresenta três crianças a tentarem envenenar a própria mãe, três crianças contentes porque a mãe está à beira de morte, três crianças expectantes, torcendo para que a mãe morra afogada, mas nem por isso é cruel, aliás, nesses momentos até que se torna mais humano. Humano, talvez porque o próprio homem é cruel, pois vemo-nos também a conjurar com eles para que seu desejo se realize... e a mãe, hum, é bastante forte.
Falando tanto da mãe e dos filhos, pergunta-se: então, e o pai? O pai está sempre presente, como o próprio Deus, ambos os pais em quem as crianças não acreditam porque são fracos e nunca vem ao socorro. A sociedade é masculinizada e patriarcal, o poder da mulher embora imenso, costuma ser discreto, e tradicionalmente costuma vergar-se à decisão masculina, por isso os filhos não entendem por que o chefe da família é apenas uma figura, uma marioneta que dança ao ritmo da sacerdotisa, que embora lhe seja garantido posse de poderes, não os consegue manifestar.
No entanto, o livro não faz uma apologia à ditadura masculina no seio da família, porque aquele pai tanto podia ser uma mãe, que o desprezo seria o mesmo causado pela sua inacção; na verdade, a crítica é mesmo dirigida à inacção, porque duas pessoas fazem os filhos, duas pessoas encabeçam à família, por que duas pessoas não devem tomar decisões sobre o que acontece na família?
Como já referi, nem só a família é retratada no livro, mas a sociedade em geral, as suas fraquezas, a sua passividade, os seus líderes, e principalmente a falta de acção e o aceitar ou o negar apenas por reacção. E ainda aponta alguns outros vícios, por exemplo, tem uma parte no livro que o personagem diz: a velha está mais acostumada a acariciar cachorinhos do que crianças; e isto é só um dos retratos caricatos da nossa humanidade hipócrita que aparece no livro.
Para conhecer De Víbora na Mão é preciso ler mesmo, porque conhecê-lo de qualquer outra forma não se conseguirá penetrar no seu âmago e envolver-se na enleante emoção que proporciona. E para quem quiser saber mais sobre os personagens história, pode procurar A Morte Do Cavalinho, do mesmo autor. São dois livros que ligados formam um único, mas que são independentes um do outro. Eu li os dois e gostei dos dois. Reli os dois e gostei ainda mais, embora continue a preferir este de que aqui falo. E é um dos 100 Títulos a Ler antes de Morrer.