4 de maio de 2019

DIÁRIO DE UM ETNÓLOGO GUINEENSE NA EUROPA

04 de maio – introdução

 

O meu interesse pela Europa, bem, herdei-o de um tio meu. Não era mesmo meu tio, mas um homem-grande lá da tabanca que toda a gente chamava de tio. O tio Paulo Bano Badjanca tinha vindo a Europa uma vez e tinha visto tugas. Ele contou que os tugas eram muito coitados, estavam sempre a correr de um lado para outro, com a cara fechada e muito infeliz, e alguns deles não tinham nem mesmo onde morar, nem roupas, andavam com trusses e calcinhas e deitavam-se na areia, perto do mar. O tio Paulo tinha sentido muita pena deles, pois parecia que já tinham desistido de viver e só estavam à espera que o mar subisse e os levasse, coitados!

Essa impressão do tio Paulo despertou em mim um sentimento intenso e eu decidi que quando fosse grande iria até Europa para ajudar a sua gente a ser menos pobre e mais feliz. 

Então comecei a estudar sobre os tugas e sobre a Europa para os entender melhor. Primeiro falei, na Guiné, com aqueles que tinham conhecido brancos ou a Europa, para ter uma base, depois passei a ler livros sobre a Europa. Isso confirmou que a ideia do tio Paulo Bano de que eles eram mesmo infelizes estava certa. Eu li livros enormes, mas eram só sobre guerras e guerras; guerras tão grandes que eles as chamavam de mundiais, guerra de cem anos, guerra fria, guerra de golfe (ou de golpe, ou de golfo, já nem me lembro), guerra de… Bolas!, era tudo sobre guerra! Guerras e problemas, dinheiro, dinheiro, dinheiro, guerras, guerras, guerras, problemas, problemas, problemas…

Não entendia como é que os tugas conseguiam viver na Europa e por que gostavam tanto de escrever sobre problemas. Eu pensava que eles também deviam ter coisas boas, como a música, por exemplo… mas disseram-me que os brancos não sabem dançar, e isso eu não entendia muito bem, visto que também eu li que eles tinham pimba, valsa, passo doble, gavotte, mazurka, dança da roda, branle, quadrilha… entre outros nomes difíceis. Eu sempre achei a cultura da Europa muito interessante e tão exótica, e acho tão engraçado os tugas terem todos esses tipos de danças e não saberem dançar.

Voltando ao assunto, depois da pesquisa, decidi vir à Europa conhecer os tugas. Queria mesmo vir também tirar-lhes a medida dos pés, das mãos, da cabeça, do pénis… ah, dizem que eles têm pénis muito pequeno. Talvez seja por isso que não têm muitos filhos e não gostam nada dos pretos. Também sei que as mulheres tugas gostam muito de sexo, um colega meu, etnólogo guineense, WJ, que estudou também os tugas, falou disso no seu trabalho “Nha Carta”, numa frase dirigida à sua namorada que ficou na Guiné-Bissau: “si kontra bu fixi, nha fofa, fixi mas tem li; si kontra bu bagri, nha fofa, bagri mas tem; si bu bom na kama, brankus, kilas e ta fasi nam filmi”.

Bom talvez tenha de falar agora de uma questão confusa aqui, pois ao que parece tugas não significa brancos, mas portugueses. Aconselharam-me, portanto, a usar o termo de maneira menos preguiçosa e mais exata, e para não confundir os tugas com os europeus, porque nem todos os europeus são tugas. Mas se essas mesmas pessoas falam de africanos como um grupo único, e falam da cultura africana como se fosse única, e falam de gente preta como sendo automaticamente africana, então, não entendo, por que razão não posso chamar a tugas de brancos, ou a brancos de tuga, ou de europeus.

Eu vim à Europa para estudar a etnia tuga e é isso que vou fazer, e é sobre isso que vou continuar a escrever.

20 de janeiro de 2019

OS MESSÍASES: AMÍLCAR CABRAL E JESUS CRISTO - cronices crónicas

Eu fui criança nos anos 1980, quando ainda o PAIGC era o único partido legal autorizado, e outros como o Fling tinham sido amordaçados e eram perseguidos se se atrevessem a falar de democracia ou multipartidarismo.


As escolas serviam para criar seguidores do PAIGC, os heróis nacionais eram comemorados, contava-se sobre Amílcar Cabral e sobre a luta de libertação de uma forma básica, propagandista, doutrinária e superficial (e depois no ciclo tínhamos Formação Militante), mas contava-se, sabíamos alguma coisa sobre o processo da Luta, sabíamos sobre outros resistentes africanos, o que infelizmente não acontece hoje.

Como não podia deixar de ser, eu fiz parte dos “Flores de Setembro” e depois “Pioneiros” e a minha aspiração na altura era chegar a “JAAC – Juventude Africana Amílcar Cabral” quando fosse grande, para depois ser membro do partido, PAIGC, tal era a doutrinação. Eu era tão orgulhoso de ser um “Pioneiro” e por ter Cabral no meu nome dizia (porque pensava) que era parente de Amílcar Cabral, afinal erámos os dois vermelhos e descendentes de cabo-verdianos (eu era parcialmente) e ele e a minha avó tinham sido vizinhos em Cabo Verde.

Naquela altura, todavia, Cabral era um enorme quebra-cabeça para mim. Era algo que não conseguia entender, principalmente quando diziam “CABRAL KA TA MURI”, mas todos os 20 de Janeiro, “celebrava-se” o assassinato de Cabral. Como se falava de Cabral Imortal e de assassinato, levou-me algum tempo até perceber que assassinar era matar, e que Cabral tinha sido morto. E era isso que eu não entendia, como alguém imortal estava morto?

Duas figuras iam para além da minha compreensão: Amílcar Cabral e Jesus Cristo, e para mim eram similares.

1. Jesus Cristo tinha morrido para salvar o mundo. Cabral tinha morrido para salvar a Guiné-Bissau. (Eu achava que a morte de Cabral fazia mais sentido, porque a de Jesus não salvara a Guiné, mas o meu catequista, João Lima, disse-me que falar esse tipo de coisas podia levar-me para o inferno, e eu tinha seis ou sete anos, portanto fiquei cheio de medo). Em suma: eram ambos Messias.

2. Na escola nunca tinha aprendido nem sobre o pai de Cabral, muito menos sobre a sua mãe. Por isso pensava que ele também tinha nascido de uma virgem. E ele tinha um meio-irmão, Luís Cabral, que estava sempre com ele, como Jesus que tinha o seu meio-irmão Tiago.

3. Todos os anos, tinham feriados e “comemoravam-se” os dias de nascimento, morte, ressurreição tanto de Cristo como de Cabral (para mim a ressurreição de Cabral comemorava-se no dia 24 de Setembro).

4. Cristo tinha 12 apóstolos, Cabral tinha os seus companheiros e outros heróis nacionais: Domingos Ramos, Pansau Na Isna, Francisco Mendes (estavam no dinheiro), Luís Cabral, Nuno Vieira, Aristides Pereira (blá, blá, blá, conseguia contar-lhe 12 companheiros).

5. Jesus tinha sido traído por Judas e condenado tanto por romanos (dominadores) como por judeus (dominados). Cabral tinha sido traído por Momo (da Guiné), Seco Turé (de Conacri) e Spínola (de Portugal) – as minhas informações não eram coerentes – ou seja, tanto por portugueses (colonialistas) como por guineenses (colonizados). E depois, como todo o mundo varria palha ao Nino Vieira, o discurso era que Luís Cabral também tinha traído o sonho do irmão, por isso é que se fez o golpe de 1980, portanto, eu considerava Luís Cabral também uma espécie de Judas.

6. Jesus tinha a Maria Madalena. Cabral tinha Titina Silá. Eu pensava que eles eram casados.

7. Tanto Jesus como Cabral tinham sido mortos, mas ambos eram imortais.

8. Tanto Jesus como Cabral tinham morrido para salvar as pessoas, mas os problemas ainda continuavam a existir e pelo que me diziam, eu tinha ainda de continuar a trabalhar para salvar a minha alma, ou para garantir o meu futuro e o futuro da Guiné. No final, parecia-me que os dois tinham morrido amonton, porque eu ainda tinha de fazer o trabalho todo (dizer isso foi-me desaconselhado tanto pelo meu catequista como pelo meu formador de pioneiro, Aliu Nhamadjó).

9. Tanto Jesus como Cabral tinham deixado adoradores. Uns chamavam-se cristãos, outros chamavam-se guineenses. (Se fosse hoje teria dito, uns chamam-se cristãos, outros cabralistas, mas provavelmente 95% deles nunca leu a Bíblia ou os escritos de Cabral).

10. Invejava os dois porque tinham lutado e morrido por “causas nobres” e eu pensava que não já não tinham mais causas nobres pelas quais lutar ou morrer. (Só recentemente alguém me fez ver o quão é mórbido uma criança pensar em morrer por alguma causa. Na altura, eu julgava que isso faria de mim um imortal e que valeria a pena, pois ressuscitaria… não é como se fosse perder muito na verdade. Por isso sempre pensei que o “sacrifício” de Cristo não foi lá muita coisa, porque depois foi ressuscitado e deram-lhe o universo para governar como prémio).

Ainda hoje se fala de Cabral em todos os 20 de Janeiro. Alguns políticos não o fazem, porque isso é como dar visibilidade ao PAIGC, uma vez que não se pode separar do partido a figura. E desta forma a figura da nossa única referência parece desbotar-se da memória coletiva, sendo conhecida mais como sobra de alguma coisa de que como uma imagem vívida.

Na escola estudamos na História (só em três anos):

No 7º ano, a origem do ser humano, as raças humanas (caucasianos, mongoloides e negroides – nem dizem brancoides), o paleolítico, o neolítico. Não sei os capítulos todos porque a greve sempre interrompe as aulas.

No 8º ano, o império de Gana, Mali, Songai, o império de Gabu é o último capítulo, mas eu não lá cheguei porque a greve sempre interrompe as aulas.

No 9º ano, os três setores da produção, a revolução industrial, as teorias malthusianas, não sei os próximos capítulos porque a greve sempre interrompe as aulas.

Enfim, estuda-se sobre tudo, mas estudar sobre a Guiné-Bissau e a sua história, nada, porque os outros partidos parecem temer que estudar sobre isso é favorecer a doutrinação paigcista. Mas como querem separar o PAIGC da História da Guiné? Lubu, negal te, ma ka bu dal padja di bobra. E o pAIGC tem medo que se descubra que fazem tudo menos seguir os preceitos do homem que usam como bandeira (pois atuam como se fosse o PAIGC que gerou Cabral e não o oposto).

As disciplinas chamadas “Educação Social” que podiam focar-se sobre a sociedade Guineense, ao invés pareciam introdução ao direito internacional; a única coisa que me lembro disso é que andei a estudar a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” e tive de fazer um exame onde o professor perguntava algo como “o que diz a 15ª lei, ponto 2, alínea c), da declaração”? Ou seja, mesmo essa coisa era para ser memorizada e não entendida.

E isso eu estudei entre 1991 e 1994, e pelo que me disseram, o programa escolar continua a ser, em 2019, a mesma merda.

Para quando vamos começar a estudar Cabral e as suas ideias na escola? E para quando vamos começar a estudar sobre as outras figuras (femininas, princialmente), como a Titina Silá que hoje está completamente esquecida?

20 de novembro de 2018

UM PROBLEMA CHAMADO VERBO SER

Quando Moisés foi à montanha falar com a sarça ardente que, por acaso, era deus, este se definiu assim: EU SOU. (Se não estivesse com preguiça agora, iria tergiversar que ele incendiou alguma árvore aromática que lhe proporcionou um belo... hmm... trip. Mas, vamulá!).

Estava eu no EU SOU.


Deus definiu-se como EU SOU, talvez para dizer o quão grandioso e omnipresente era, tipo, eu sou o céu, eu sou a terra, eu sou o jagudi, eu sou o falcão, eu sou o padre com a bíblia na mão, eu sou a mercadoria escrava a ser abençoada antes de ser embarcada no porão... 'tás a topar a cena?... eu sou o fogo que queima as bruxas, mas... caramba!... eu sou também a puta da bruxa. Enfim, eu sou a contradição.

Mas se o EU SOU de deus trazia a ideia de englobar tudo, o EU SOU humano é apenas uma locução para individualizar, separar e classificar.

O VERBO SER parece SER o fundamento da existência. "Eu penso, logo existo", definirá o ser? A mesa existe, mas não pensa. Mas a mesa também É, sem se proclamar SER. Não sei o que define o SER, mas sei que é uma assunção completamente  humana, pelo menos dentro do espectro do pensamento conhecido; pois não faço ideia se também as bactérias no interior dos vírus dos nossos cérebros reclamam para si o sentido do ser, ou da existência.

Creio que o SER e o EXISTIR, como já discorri algures , são categorias diferentes. Assumo o ser como uma existência consciente e o existir como um estar presente de maneira contável, classificável ou indicável.

O EU SOU categoriza-me, procura dar-me uma definição básica... EU SOU qualquer coisa, e é como se essa qualquer coisa não pode ser outra coisa na mesma categoria de coisas. EU SOU não te deixa a hipótese de não ser. EU SOU guineense, EU SOU português, EU SOU homem, EU SOU mulher, EU SOU preto, EU SOU branco, EU SOU um trolha, EU sou um arquiteto, EU SOU EU SOU Marinho, EU SOU da gasolina... Mas se EU SOU tanta coisa, qual é a validade do EU SOU?

Aristotélicamente falando, os conceitos universais da lógica humana baseiam-se na "IDENTIDADE": "algo" é sempre "algo", esse "algo"; na "NÃO-CONTRADIÇÃO: se "algo" é igual a "aquilo", então "aquilo" é igual a "algo"; e ainda no "TERCEIRO-EXCLUÍDO": "algo" não pode ser "algo" e "não-ser-algo" ao mesmo tempo. Matematicamente, a=a, se a=b, então

b=a, e se a=b=c então c=/a não pode ser. Mas na realidade nós somos humanos, somos os que provam matematicamente que 1=2 (vá, google).

Concentrando-me no SER. O VERBO está tão presente, que até Tarzan começou por aprender: "mim, Tarzan; tu, Jane.". Sim, eu sei que, como já dissera, o ser define a consciência, que é o óculo pelo qual percebemos o mundo. Talvez seja por isso que sempre que vamos aprender uma língua nova, começamos pelo VERBO SER.

O que vou chamar aqui a base da língua, o VERBO SER, combinado com os PRONOMES PESSOAIS (há línguas que até têm pronomes para "existências" que não são pessoas), demarca já a forma das relações e como nos vamos ver ou como temos de ver os outros. É natural, sim é, uma vez que o entendimento é pessoal e nasce da combinação entre as perceções e as sensações de cada um de nós, codificados em experiências e memórias às quais recorremos sempre quando estamos em frente de novas situações. Portanto, sem exceção, o entendimento do mundo é sempre pessoal. Todavia, enterramo-nos tanto nessa ideia de EU que temos tanta dificuldade em nos colocarmos na última categoria do VERBO SER, o que em nada atrapalharia a formulação do SER.


A organização dos pronomes pessoais também não está por acaso.

EU SOU - primeiro eu, mesmo que tu já estivesses cá antes. Aqui entra o sentido da identidade, sem no entanto envolver a noção de "idêntico"; é, portanto, mais identidade, no sentido de "unicidade". Eu, ego, o meu mundo, a minha existência que estou a partilhar com... TU.

TU ÉS - és um corpo fora do EU, mas que reconheço a existência. És o segundo nível do ser. És o "próximo" com quem estou em contacto direto, de quem tanto posso querer proximidade como afastamento.

EL/ É - o terceiro nível. Uma referência mais distante geralmente. O EL/ costuma referir-se ao ausente.

NÓS SOMOS - aqui entra a identidade, com um sentido mais próximo do "idêntico". Quando aparece quer dizer que houve inclusão de TU, TUs, e talvez de EL/.

VOCÊS SÃO (VÓS SÓIS) - outra categorização de outros, também fora do sentido da individualidade, ou talvez num sentido de individualidade agrupada, mais ainda assim, também com uma demarcada próximidade.

EL/S SÃO - o último nível do ser. El/s são é até mais distante do que EL/ É, pois enquanto este individualiza, o outro generaliza e esteriotipa.

 

O EU SOU até poderia não ser tão problemático se logo a seguir não viesse o TU ÉS. E na verdade, nem o TU ÉS seria também problemático se não servisse apenas para categorizar o OUTRO. Eu sei que podem ambos servir para outra coisa, mas vou focar-me aqui no facto de apenas fronteirizarem e distinguirem. Quando o TU ÉS aparece, o EU SOU começa a analisar os pormenores à procura de semelhanças para ser atraído para o TU ou então para justificar um afastamento. O OUTRO carrega sempre um valor de fronteiras. Os mandingas chamaram aos fulbés de "fulas", significando "dois", proutras palavras, mandinga primeiro, fula depois, e os fulas aceitaram o títulos e retorquiram que significa que um fula vale por dois mandingas e os últimos o sabem.

Ah, estava a divagar dentro da minha própria divagação... altamente, isso eleva em grande a qualidade divagatória.

 

O VERBO SER é categórico, não flexibiliza. O VERBO SER é redutor. O VERBO SER justifica as diferenças e as diferenciações. O VERBO SER é fodjido, cara.

Geralmente o EU SOU valida o mundo através de si mesmo, o que até faz sentido uma vez que o mundo que conhece depende da sua capacidade perceptora. E como recentemente fui ensinado, a morte é branca, uma vez que o escuro é a consciência de ter os olhos fechados; e a morte pressupõe ausência da consciência. O meu mundo cessa com a morte do EU SOU, portanto, o EU SOU valida o mundo pela própria perspetiva.

 E... o EU SOU não se casa muito bem com EL-É, porque geralmente só cita o EL-É quando está com o TU ÉS, e o EL-É está ausente, ou quando quer meter o EL-É em alguma caixa, independentemente da vontade deste. E nesse então entra em jogo o NÓS SOMOS, aparentemente agregador, todavia, separatista.

O VERBO SER diz NÓS SOMOS isto, vocês e ELES SÃO aquilo, e é através do SER que ou vamos comer juntos ou separados.


Mas eu só gostava de poder NÃO-SER, imagina a liberdade e a fluidez que poderiam advir do NÃO-SER. Imagina não ter de ser guineense só porque nasci na Guiné, não ter de precisar de um passaporte para viajar entre fronteiras fictícias; imagina não ter de ser homem para ser considerado capaz e merecedor de oportunidades; imagina não ter de ser preto para não ter de andar sempre a levantar escudos contra o racismo ou a entrar em discussões estúpidas e vazia; imagina não ter de ser branco para não ter de passar o tempo todo a justificar o não-racismo; imagina... e imagina poder ser cristão, muçulmano, ateu, jeová, adventista, budista e filhodaputista, tudo ao mesmo tempo.

 

Epá, o NÃO-SER abre imensas possibilidades

3 de novembro de 2018

TEM BONS DENTES?... NÃO? ENTÃO FORA…

Theresa May disse que depois de efetivar o Brexit vai passar a ser o Reino Unido a escolher e a decidir quem entra no território e só vão ser “pessoas qualificadas”.

Nem o tema, nem o processo são estranhos. Durante o comércio de escravos também só eram levadas as “pessoas qualificadas” para a Europa (ou América), pois elas trabalham e geram riquezas (a condição do trabalho não importa aqui, desde que elas trabalhem). E a questão não se encontra circunscrita ao Reino Unido, mas é toda uma postura da Europa. Recentemente, durante a crise de refugiados, fartamo-nos de ouvir e ver argumentos iguais por tudo o que é lado.

O coordenador do Observatório da Emigração disse que Portugal precisa urgentemente de imigrantes para resolver o problema da falta de mão de obra. A política de imigração de Merkel foi de facilitar a entrada de pessoas “educadas” na Alemanha. Macron há pouco tempo deu documentos a um herói escalador de paredes… enfim…

Cá em Portugal, os do “contra-imigrantes” dizem: “esses PRETOS (como se os imigrantes fossem só pretos, os do norte europeu são bem-vindos, ó, expatriados) só vêm cá para viver da segurança social e dos nossos impostos e não querem trabalhar um corno”. E os “pró-emigrantes”, da esquerda, dizem: “os né... os AFRICANOS são gente produtiva que trabalha bastante para sustentar a família, por isso devemos abrir-lhes as portas, pois eles são comprometidos com o trabalho e nem todos são maus”.

Pois, claro que não, nem todos são maus, alguns têm bons dentes, servem para bumbar nas obras, para jogar na seleção, para correr no atletismo, e para pintar algumas fotos “à la Benetton” para podermos falar da diversidade e da solidariedade. Enquanto isso, só vamos abrir portas à gente “qualificada”.

Abomino as reportagens a mostrar como os imigrantes se enquadraram bem na sociedade europeia, se aculturaram e se tornaram produtivos… é uma lógica esclavagista.

A única forma em que isto difere dos tempos do comércio triangular é que os imigrantes (guineenses neste caso - pelo menos são os que conheço) vêm para cá “voluntariamente” para serem escravizados, principalmente quando a qualificação não é académica ou atlética, mas força nos braços para limpar casas de banho e centros comercias.

Será possível falar da imigração fora de uma perspetiva capitalista e nacionalista, mas humanista?

1 de novembro de 2018

SINTIDUS - REVISTA DE ESTUDOS CIENTÍFICOS E INTERDISCIPLINARES (1º número)


Durante muito tempo só existia uma revista científica na Guiné-Bissau, ou melhor, produzida na Guiné-Bissau: Soronda, uma revista do INEP, que desde 1986, durante 10 anos foi semestral, fez uma pausa de um ano, voltou em 1997 e durante 8 anos tornou-se anual; fez outra pausa de 13 anos e voltou a publicar em 2017, e só espero que não mantenha a frequência.

Para não deixar a Soronda sozinha, eis que aparece, em 2018, SINTIDUS (Revista de Estudos Científicos e Interdisciplinares da Universidade Lusófona da Guiné), que publicou o primeiro número, em formato eletrónico e, agora, físico.

É hábito estudantes (guineenses) dizerem que não há muito material científico sobre a Guiné-Bissau, eu não concordo, quer dizer, em certas áreas há mais que em outras, e podia-se produzir mais. Sem falar da Soronda que contraria essa ideia, a SINTIDUS está a mostrar também agora que ela não é verdadeira.

A Revista nº 1 tem artigos de qualidade e de relevância sobre a Guiné-Bissau. Sem dizer que tem a pinta de fazer os resumos todos em kriol. Estudantes, investigadores e curiosos hão de gostar das matérias. 

O primeiro número consiste da observação sobre a observação da Guiné do ponto de vista de um “observador ou investigador” português, e passa pela relação entre os fulas e o mandingas no Kaabu, que apesar de analisar o passado é bastante pertinente para a situação atual e para a compreensão a parte da nossa sociedade, passando pela literatura e análise social pela escrita, ainda pela questão do kriol e da necessidade de normalizar a sua escrita, e também pela questão da justiça na Guiné-Bissau e relação entre o poder do estado e o poder tradicional nessa esfera, até ao assunto das alterações climáticas e seus indicadores, o que é bastante importante, considerando o que vimos neste último ano em Bissau. Por fim, a revista fecha com um ensaio fotográfico sobre a cidade, que apenas critico porque quer mostrar a África através da Guiné-Bissau, quando nem pode mostrar a Guiné-Bissau através de Bissau, por causa da miríade cultural guineense, o que me faz bradar: “DEUS DO CÉU!, ÁFRICA NÃO É UM QUINTAL NUM BAIRRO! ÁFRICA É IMENSA, PAREM COM SIMPLIFICAÇÕES”.

SINTIDUS encontra-se agora em formato físico e pronto para ficar na tua biblioteca e auxiliar-te nas tuas investigações e se não o quiseres aí, podes sempre adquiri-lo para oferecer a um amigo, e para isso precisas apenas de escrever sintidus.revista@gmail.com ou (se estiveres em Bissau) contactar +245 955977108 ou ir à Universidade Lusófona perguntar, ou mandar menino.

Aproveita e vai comprar que o número é limitado. Kim ki tchiga prumeru siti ku liti bas di kama di si mame.

Eu já tenho o meu. Na verdade, tenho mais dois outros outros e vou oferecer um à primeira pessoa que me responder a esta pergunta: Si kinkinhin kankanhan i “prenhada bambu n’ utru”, nton ke ki kankanhan kinkinhin? Pa konvensim, bu tem nam k' kontam kal ki signifikadu di es dus palabra.

O segundo livro, para ser justo para os meus amigos não falantes de kriol, vai para quem responder a esta pergunta: “uma meia meia feita, outra meia por fazer, quantas meias são?

N.º 1, 2018
AUTOR
ARTIGO
Raul Mendes Fernandes
Manuel Bívar & Sadjo Papis Mariama Turé
Jorge Otinta
Luigi Scantamburlo
Sara Guerreiro
Orlando Mendes
Gustavo Lopes Pereira & Ana Filipa Lacerda



21 de outubro de 2018

CARTA PARA A MINHA NAMORADA BA
















Obi son...

Si badjuda di kumpo pega tras di n'aie,
kumpo ta dispi padja i ta unta lama tambe.

voltas voltiadu toki nha folgus folga,
djambadon na nha pitu ka disam djitu di rispira,
n' ka misti fika, ma n' ka pudi ritira...
para pirmim pruthc, pabia n' na potcholi paratch,
ali panga-bariga patchari pabia bu pegam suma punduntu.
Pabia ki bu ka ntindi inda kuma...

Si badjuda di kumpo pega tras di n'aie,
Kumpo ta dispi padja pa trokal ku plake.

Si i bardadi kuma korson i ka bunda,
anta lantanda bu bunda na nha pitu,
pabia n' sta nam na djitu
di kutkuti pa sakudi
di es malfitu di bu pezu,
el ki pui n' na pega tesu,
pa n' ka paga es bu pres, o.
Alin bas di bo,
bu rafinka riba di mi, suma santchu na po,
alin li bas di bo, n' na longanta mon,
n' na sanau ku forsa, pa pidiu atenson...
bu fala abo i nha ermon, enton, para dja, pon,
tiran di tchon, pabia n' piza dja suma limon...
saklata...

Ma ke bu ka sibi kuma...

si badjuda di kumpo pega tras di n'aie,
kumpu ta fasi planus di kunsa randja lambe.

djubi kuma ki djus djagassinu djorson,
n'djarga na es djiu, n' na djundjun'a
pabia nim djapuf n' ka pudji dja otcha pa djanta,
bu na djanki mbludjus ki no djunta,
bu na djunda elis son pa bu djudju...
ma djimpini dja, djubi tambi kuma ami i djinti.
bu djuti na djitu di sedu djagra,
djankadim... dje...

rapara son kuma...

si badjuda di kumpo pega tras di n'aie,
kumpo ta dispi badja pa ba kulkal na bande?

anta assim ki toma tera sta?,
bu tchoma gera, bu toma sera
pa kortam es po nde ki n' pindra.
bu toma tera, bu toma stera bu sinta,
nim tchur ka tisidu inda?
tchur ka tchiga, ma bu tcholona dja bu prentchentches,
es tchaflakas ku tchampletas tchantchan'ido
ki bu ta tchuli pa e bim tchutchi djintis,
pa tchapa elis pa tchupa se os...
n'sta na tchintchim, i ka pabia tcheben tchiu,
i pabia n'na tchora nan tchur di galinhas ki para tchentchi.
bu pensa bu tchoka?...
ma kal nam pro ki di bo? falam de...

ke ninguim ka kontau kuma...

si badjuda di kumpo pega tras di n'aie,
kumpo ta dispi padja i ta unta lama tambe.

bu ta bim na kexa kuma ami ki ka na fasi dritu,
mas bu misti kume aruz, pa ami n' kume midju,
bu misti buli boka pa ami n' nguli kuspinhu...
saim na pitu... futseru... saim na pitu...

si badjuda di kumpo pega tras di n'aie,
kumpo ta miti boka, i ta miti mon, i ta miti pe.

2 de setembro de 2018

LÍDERES: O PROBLEMA DA GUINÉ-BISSAU - cronices crónicas


Quando há séculos os portugueses chegaram àquelas paragens hoje conhecidas como Guiné-Bissau e quando resolveram começar a desenvolver o negócio de escravos, foram os nossos líderes, os nossos reis (ou régulos) que tratavam de fornecer a mercadoria.

Diz-se que o régulo papel, Incinha Té, teria dito aos portugueses que queriam se instalar em Bissau e fazer um forte “que não criaria no seu quintal uma onça que depois o mataria”. Mas lá se fez o forte (depois virou Amura) e lá se criou a onça. Motivo: deram-lhe bastante prendas que hoje para nós são ninharias: tecidos vermelhos e tabaco, principalmente. Na altura, para ele, tinha feito um bom negócio.

Os líderes “guineenses” participaram no mercado de escravização, eram tão escravocratas quanto os europeus que iam à Guiné comprar pessoas. Balantas, papéis, biafadas, bijagós, fulas e mandingas vendiam-se uns aos outros e a moeda de compra era, usualmente, o tabaco. Vendiam os próprios irmãos pelo tabaco (bem, eles não se consideravam irmãos na altura, mas reinos e povos diferentes). Os povos da Guiné estavam muito bem organizados social e estruturalmente, na Crónica de Guiné, Zurara conta que eles, os portugueses, eram mortos quando desciam no território, razão porque os primeiros aventureiros tugas só nomeavam os rios e não as terras. Eles não tinham poder para entrar num território e arrebanhar pessoas para encher os navios; se isso acontecesse, faria das sociedades africanas agrupamentos desestruturadas e sociedades de animais, e não falaríamos hoje da escravatura ou da colonização, mas da domesticação.    

A ganância dos líderes de então e a estrutura do poder que os os permitia dispor do seu povo como se fosse seu pertence é que permitiram a instalação dos colonialistas na Guiné; a ganância e as quezílias entre as diferentes sociedades que habitavam esses territórios permitiram que fossem atirados uns contra os outros, pavimentando a via para a sua dominação; a ganância dos nossos líderes levou-os a alinharem-se com os colonialistas na luta contra o PAIGC ou na luta a favor do PAIGC; a ganância dos líderes levou também ao assassinato do Amílcar Cabral porque exigia um suicídio da classe.

Quando o PAIGC tomou o poder, e a liderança mudou, começou por fuzilar publicamente os líderes que se tinham aliados com os colonialistas e a tirar poder aos régulos, por achar que eles eram “não intelectuais” e não aptos para governar. Essa atitude, todavia, não era nada diferente da dos colonialistas com que lutaram ou desses próprios líderes que eles estavam a fuzilar. O PAIGC mudou-se a si mesmo com o golpe de estado de 1980, fruto da violência do poder e do poder da violência, desconfiando de si mesmo e da sua própria sombra, vai prendendo, espancando e matando pessoas pelo caminho, como aconteceu mais patentemente em 1985, em 1998 e 2009, e ainda hoje acontece. Quando um líder diz que tem poder para mandar prender e torturar e matar, quando um líder acha que por ser líder se torna a pessoa mais importante do país, e pode dispor das pessoas e do território como bem entender, percebemos que nada mudou.

A ganância de PAIGC levou o país ao seu estado de desgoverno atual. E a fome de "mandar", porque nem sequer falamos de "liderar" na Guiné, levou a que um país de cerca de 1.800.000 de habitantes tenha, em 45 anos, 45 partidos, a maior parte deles e os mais poderosos deles vindo diretamente da escola paigcista.

De 1974 até hoje, apenas a liderança mudou, o procedimento?, nada. Os régulos ainda vendem terra para benefício próprio, possuem quilómetros de terra, porque os herdaram dos seus avós e ninguém questiona. No problema de desmatamento de há uns anos, muitos régulos recebiam dinheiro e permitiam que se cortassem árvores nas zonas que dizem sob sua responsabilidade. Os régulos vendem e influenciam os votos das pessoas por quem são responsáveis, em troca de uns poucos benefícios que só aparecem durante as campanhas e que só ajudam a si próprios e não às suas gentes. Portanto, quando depois se levantam para falar mal contra os nossos governante, não lhes vejo autoridade nenhuma.

E os nossos governantes, que agregam mais poderes que os régulos? Se antes se vendia pessoas, hoje vendem os recursos naturais, vendem a terra, vendem as ilhas, vendem droga, vendem tudo. E se antes os europeus iam à Guiné comprar, hoje os nossos governantes é que vêm cá apregoar e garantir privilégios em troca do “investimento estrangeiro”.

Projetos de exploração de recursos naturais, projeto da central hidroelétrica para a Lagoa de Cufada, a turistificação dos bijagós traduzido em tirar terras aos locais, ou o projeto Augustus para Bolama, que trata aquele espaço como terra de ninguém e inabitado, são exemplos do alinhamento dos nossos líderes com o colonialismo que nunca deixou de existir e apenas mudou de capa.

Neste momento, confiantes da sua vantagem, "líderes", ou melhor, os nossos mandantes, não se preocupam muito, pois ganham muito dinheiro no processo, só que aparentemente não estudaram a história para perceber que os régulos na altura do primeiro colonialismo também não se preocupavam, porque tinham poder… até deixarem de o ter.

Eu costumava culpar apenas a Portugal pela escravatura, pois foi o que aprendi com os livros de PAIGC, até descobrir que os nossos próprios mandantes tinham tomado parte nisso. Ainda hoje, 45 anos depois, culpamos a Portugal pelos problemas da Guiné: ou porque a colonização foi má, ou porque a descolonização não foi bem feita, ou porque Portugal só se preocupa com Cabo Verde e não nos trata como "filhos"(?). 

Colocar o problema da Guiné na "descolonização" é um tanto estúpido e desrespeitoso para os que morreram para alcançar a independência (que é diferente da descolonização). Sobre culpar a Portugal por não nos tratar como "filhos", nem vou comentar... E a colonização?, claro que a colonização foi má… mas se sabemos isso, por que ainda os nossos mandantes continuam a praticá-la e a forçá-la sobre os nossos? A colonização do passado já não é uma desculpa válida. Os nossos mandantes são cúmplices na colonização que hoje se pratica. Lutamos pela independência para nos responsabilizarmos pelas nossas própria ações e devíamos fazê-lo.

Hoje culpamos o Ocidente (forças capitalistas) pelos problemas da Guiné, e sim, operam para manter a desestruturação, com o seu FMI, o seu Banco Mundial e as suas tantas ONGs e outras estratégias mais diretas, mas a verdade é que os nossos mandantes são agentes dessas forças e, como não têm estratégias para os seus povos, simplesmente se deixam enganar pelo conforto que arrecadam para si próprios... ou nem sequer podemos falar de engano, porque alguns são bem estudados e bem conscientes dos seus atos.

Os nossos líderes não se responsabilizam e não são responsabilizados pelos seus próprios atos, o problema são sempre os outros, como já tinha falado aqui (Até Quando?)

Vou parar aqui, por agora. Desenvolvo o tema mais tarde.