A civilização, hoje, relaciona-se mais com a capacidade tecnológica e não com o que lhe deu origem civita, cidade, ou seja aglomerado de pessoas. Aliás, lembro-me de um professor meu, que para ele, a cidade não se refere a aglomerado de pessoas que vivem segundo umas determinadas leis morais, sedentárias, abrigadas e fazendo uso de estruturas e infra-estruturas que facilitem a sedentarização, mas sim a quantidade de pessoas, de maneira que para ele, Lisboa não é uma cidade, porque não tem os milhões de pessoas que Nova Iorque ou Tóquio abrigam; ou seja, pelo número dos habitantes, Lisboa seria uma aldeia, e seguindo a ideia, Guiné-Bissau seria um país sem cidades porque o número da sua população é quase igual, ou pode ser menos ou mais (não sei), do que a população de Lisboa. Hoje a definição da cidade mudou, daí que temos vilas, aldeais, tabancas, entre outras denominações.
Entretanto, apesar das diferentes denominações que o aglomerado pode receber, ainda continua a ser o cumprimento das regras de um civita a fazer um civil, ou um bom civil, um civilizado e com civilidade. É claro que os europeus julgavam que a civilidade era rezar padres- nossos, e quando foram escravizar a África, disseram que lhes estavam era a levar a civilização. Hoje, mais do que antes, a civilidade define-se pelas regras europeias e não pelas regras civis de qualquer aglomeração civita.
Pois bem, depois da longa introdução vou ao ponto, ontem estava a passar na TVI o seu novo programa, Perdido na Tribo, ainda achei que talvez valesse a pena ver pela sua componente antropológica, porém rapidamente me apercebi que a maioria dos participantes estavam ali apenas para fazer figura e ganhar dinheiro do que propriamente interessada em aprender uma cultura diferente, e toda aquela cambada julga que a sua cultura é melhor do que a do povo com quem convivem, e nenhum parecia saber que não há melhor ou pior em termos culturais – quando éticos – sendo que estes são sistematizações de regras, e a partilha de uma cabaça de água para beber pode ser tão ridícula como a missa do Natal e o Coelho da Páscoa, ou tão porca como uma partilha de germes pelo beijo.
É certo que todos os concorrentes ficaram fora da sua zona de conforto e nenhum deles é antropólogo, mas eu julguei que pelo menos teria recebido um preparação mínima para se comportarem como convidados da tribo com quem conviviam e não como os seus senhores. E foi de extrema incivilidade os participantes vomitarem e fazerem esgares de nojo, depois de provarem um pitéu oferecido pelos nativos. Julgaram eles que o sentimento de mágoas que a repulsa provoca é exclusiva dos europeus? Eu, pelo menos, quem entrar na minha casa para torcer o nariz pelas minhas práticas não será bem-vindo e será posto fora, e aposto que eles fariam a mesma coisa.
A expressão máxima da incivilidade desses participantes foi José Castelo Branco, que na verdade, pelo seu estilo (não estou a falar da sua sexualidade, mas da sua extrema finece), não sei o que foi ali fazer, mas ele resumiu bem esse sentimento europeu de serem os mais civilizados e donos do mundo quando ao lhe ser ensinado a apanhar a água correctamente, veio com esta (a partir do minuto 4): vassalas me põem a mim a vassalar. Ai, meu deus!, como os tempos mudaram. Ai, sim, ai, bom, com que então os pretos são vassalos, não importa se estão na sua casa ou não?
É extremista usar o exemplo de Castelo Branco para caracterizar todos os participantes, mas se ele assim falou, a maioria assim agiu (não consegui mais ver o programa depois disso, já estava farto da estupidez e teimosia dos europeus, e essa foi a gota de água). E seria, também extremista, ilustrar com isso o facto de boa parte dos portugueses acharem que os pretos cá em Portugal deviam era apenas servi-los, fazer os trabalhos que eles não querem e ainda por cima irritarem-se por estes estarem a ganhar migalhas por esses trabalhos (mas isso é para um outro fórum).
De antropologia, antropologia, esse programa da TVI só tem fogo-de-artifício, está mais centrado nos europeus do que nas culturas onde estes foram inserir, melhor é voltar para os documentários feitos pelos verdadeiros antropólogos que participam nas actividades das tribos mais estranhas sempre respeitando as suas normas e não mostrando-se superiores.