Fiz esta crónica em 2004, mas por não acreditar nela, não cheguei a apresentá-la ao jornal Kansaré, para o qual escrevia, para ser publicada, porque esperava que os meus textos causassem sempre impacto e procurava escrever sobre algo realmente impactante para o meu contexto social.
perspectiva de sapo |
Todavia, como perspectiva é razoavelmente plurissignificativo, embaralho-me por vezes e não consigo saber se sou perspectivado ou se não sou. E piorou quando descobri que ter perspectiva, o primeiro passo da caminhada, pode ser bom mas não resolve os problemas, sem falar que dependendo da perspectiva pode causar problemas até, porque há uma grande possibilidade de ter uma perspectiva errada.
Uma perspectiva errada não deixa de ser perspectiva, todavia, é errada. Então, como dizer a uma pessoa com uma perspectiva errada que ela está num bom caminho? E pensando ainda mais sobre a questão da perspectiva errada, cheguei à outra que é a da errada perspectiva, ou (para simplificar em termos de adjectivações) a má perspectiva.
Se parece que é melhor não ter perspectiva do que ter uma errada, é melhor ter uma perspectiva errada do que ter uma má perspectiva, caso a posse de alguma perspectiva seja mesmo obrigatória ou necessária. No entanto, por poder parecer difícil a diferenciação entre as duas perspectivas, vou fazer o possível para esclarecer isso, e começarei pela perspectiva errada.
A perspectiva errada, como é fácil notar, não é uma má perspectiva, e pode até ser uma boa perspectiva (não confundir com uma perspectiva boa), porém é errada conforme a nossa perspectiva, ou seja, a perspectiva com que perspectivamos uma coisa influi nessa perspectiva e molda-a conforme a nossa perspectivação… Bem, parece que estou a usar um rol de palavras gratuitas sem, no entanto, me explicar bem. Talvez seja mesmo ilustrar com um exemplo:
Estive a ler o livro de Poe, Aventuras Extraordinárias de Gordon Pym, e apesar de ter visto na contracapa que era um livro de aventura, aliás o próprio título o patenteava – quer dizer, já tinha sido pré-estabelecido uma perspectiva pela qual eu devia fazer a leitura –, depois de algumas páginas, entrei numa cena de cama tão escaldante e cheia de metáforas constituídas de puro erotismo, porém leves e pueris; pueris pela forma como Poe usava os termos para se referir a certos aspectos. E o livro ter sido escrito em mil e oitocentos e tanto, numa época de muita censura e pseudo-purismo, fazia-me admirar como é que escapara da guilhotina dos censores essa aventura que descrevia folguedos homossexuais na cama (bem, Satíricon também escapou, mas Petronius viveu numa época diferente, e provavelmente menos hipócrita em relação ao sexo), porém, mais me admirava ainda que o livro fosse considerado um clássico universal, com recomendação à juventude.
No dia seguinte, logo que tive tempo para ler, ataquei o livro com voracidade, não porque era um clássico, mas por causa do seu conteúdo erótico e da perspectiva que tinha dele. Na verdade, quem vai ler Memórias de Bill Clinton tendo ao lado Memórias de Monica Lewinski?
Ataquei o livro, sem me preocupar com as páginas já lidas, retomei na página onde tinha parado, porém, vinte e sete páginas depois, não encontrando nenhuma alusão ao erótico, nenhuma passagem com conteúdo do género, senti-me despistado. Afinal qual era o livro que estava a ler ontem? As personagens eram as mesmas, no entanto, algo estava diferente. Voltei então para as primeiras páginas e comecei a reler. Maior confusão me fez ainda, porque já tinha lido aquelas páginas, mas não reconhecia nada... então entendi, apenas julgara tê-las lido; no entanto, continuei pacientemente a percorrer as linhas, sorvendo as passagens até chegar de novo aquela cena de cama. Afinal, no dia anterior, só tinha passado vista em cima das letras e identificado as palavras, no verdadeiro sentido de ler não lera mesmo nada. A cena de cama contava um história bem diferente.
Durante minha primeira leitura, o sono e outros pensamentos misturaram-se com as palavras lidas e criaram uma outra perspectiva sobre o livro de Poe, e vou transcrever o texto, usando supressões e acréscimos meus que me levaram ao logro.
Uma noite (…) August e eu estávamos razoavelmente tocados. Como costumava fazer em casos destes, em vez de voltar para a casa preferia compartilhar a cama dele. Adormeceu muito tranquilamente sem dizer uma palavra sobre o seu assunto preferido. (…) eu ia justamente dormir quando ele acordou e blasfemou. (…) Não sei o que se apoderou de mim, mas logo que lhe ouvi as palavras, senti um arrepio de uma excitação, o maior ardor de prazer e achei que a sua ideia louca era uma das mais deliciosas e razoáveis do mundo.
Saltei da cama, contudo, numa espécie de demência, e disse-lhe que me sentia tão decidido (…) e pronto a dar todas as voltas do mundo com todos os August Barnard de Nantucret. Envergámos os nossos fatos [de Adão] – tinha lido Tchekov à tarde –, August pegara o leme, e eu instalara-me perto do mastro (…). Corríamos a direito com grande velocidade e nem eu nem outro havíamos (…) desamarrado o barco do cais. (…) virando os olhos para ele, logo me percebi de que (…) estava perto de uma forte agitação (…). A mão tremia-lhe tanto que mal podia segurar o leme (…). Nessa época eu não era muito forte em manobras e achei-me completamente à mercê da ciência [erótica] – metáfora de Pitigrilli – do meu amigo (…) contudo, sentia uma vergonha de deixar transparecer o mínimo receio. Todavia não pude suportar por mais tempo e falei a August na necessidade de voltarmos para a terra. (…) permaneceu um minuto sem me responder e disse: “daqui a bocado… temos tempo… em nossa casa… daqui a bocado”.
perspectiva de pássaro |
Entretanto, uma má perspectiva não funciona assim, uma má perspectiva ou perspectiva má é do tipo Hitler ter a perspectiva de que assar todos os judeus faria do mundo um lugar melhor. Talvez debruce depois sobre o que é a má perspectiva. Aliás, como disse alguém de quem não me lembro o nome: não são as pessoas que não pensam bem as coisas que me preocupa, mas sim as que pensam bem as coisas más.