17 de maio de 2011

UMA QUESTÃO DE... PERSPECTIVAS

Fiz esta crónica em 2004, mas por não acreditar nela, não cheguei a apresentá-la ao jornal Kansaré, para o qual escrevia, para ser publicada, porque esperava que os meus textos causassem sempre impacto e procurava escrever sobre algo realmente impactante para o meu contexto social.


perspectiva de sapo
Muitas vezes ouvi dizer às pessoas, principalmente aos jovens, em termos de desprezo ou de admoestação: és uma pessoa sem perspectiva. Ouvi-o tanto que comecei a recear ser considerado nesta mesma tabela classificativa e tentei tornar-me num jovem com perspectiva. 

Todavia, como perspectiva é razoavelmente plurissignificativo, embaralho-me por vezes e não consigo saber se sou perspectivado ou se não sou. E piorou quando descobri que ter perspectiva, o primeiro passo da caminhada, pode ser bom mas não resolve os problemas, sem falar que dependendo da perspectiva pode causar problemas até, porque há uma grande possibilidade de ter uma perspectiva errada.

Uma perspectiva errada não deixa de ser perspectiva, todavia, é errada. Então, como dizer a uma pessoa com uma perspectiva errada que ela está num bom caminho? E pensando ainda mais sobre a questão da perspectiva errada, cheguei à outra que é a da errada perspectiva, ou (para simplificar em termos de adjectivações) a má perspectiva.

Se parece que é melhor não ter perspectiva do que ter uma errada, é melhor ter uma perspectiva errada do que ter uma má perspectiva, caso a posse de alguma perspectiva seja mesmo obrigatória ou necessária. No entanto, por poder parecer difícil a diferenciação entre as duas perspectivas, vou fazer o possível para esclarecer isso, e começarei pela perspectiva errada.

A perspectiva errada, como é fácil notar, não é uma má perspectiva, e pode até ser uma boa perspectiva (não confundir com uma perspectiva boa), porém é errada conforme a nossa perspectiva, ou seja, a perspectiva com que perspectivamos uma coisa influi nessa perspectiva e molda-a conforme a nossa perspectivação… Bem, parece que estou a usar um rol de palavras gratuitas sem, no entanto, me explicar bem. Talvez seja mesmo ilustrar com um exemplo:


Estive a ler o livro de Poe, Aventuras Extraordinárias de Gordon Pym, e apesar de ter visto na contracapa que era um livro de aventura, aliás o próprio título o patenteava – quer dizer, já tinha sido pré-estabelecido uma perspectiva pela qual eu devia fazer a leitura –, depois de algumas páginas, entrei numa cena de cama tão escaldante e cheia de metáforas constituídas de puro erotismo, porém leves e pueris; pueris pela forma como Poe usava os termos para se referir a certos aspectos. E o livro ter sido escrito em mil e oitocentos e tanto, numa época de muita censura e pseudo-purismo, fazia-me admirar como é que escapara da guilhotina dos censores essa aventura que descrevia folguedos homossexuais na cama (bem, Satíricon também escapou, mas Petronius viveu numa época diferente, e provavelmente menos hipócrita em relação ao sexo), porém, mais me admirava ainda que o livro fosse considerado um clássico universal, com recomendação à juventude.

Eu estava ensonado quando comecei a ler essa obra de Poe, mas era interessante a forma com ele descrevia, porque, em boa verdade, a história não me dizia nada – culpa do sono, como depois vim a confirmar ­-, por isso, depois de algum bocado a insistir na leitura resolvi desistir e fechar o livro, não antes de ter anotado a página (mentalmente, pois não gosto de dobrar folhas dos livros, nem de escrever nelas, porque, embora os livros possam ser nossos, considero-os transmissíveis, mas com a ideia do autor a levar o futuro leitor a fazer as próprias interpretações do livro, sem a nossa interpretação escrita nos cantos da página a servir de ruído).

No dia seguinte, logo que tive tempo para ler, ataquei o livro com voracidade, não porque era um clássico, mas por causa do seu conteúdo erótico e da perspectiva que tinha dele. Na verdade, quem vai ler Memórias de Bill Clinton tendo ao lado Memórias de Monica Lewinski

Ataquei o livro, sem me preocupar com as páginas já lidas, retomei na página onde tinha parado, porém, vinte e sete páginas depois, não encontrando nenhuma alusão ao erótico, nenhuma passagem com conteúdo do género, senti-me despistado. Afinal qual era o livro que estava a ler ontem? As personagens eram as mesmas, no entanto, algo estava diferente. Voltei então para as primeiras páginas e comecei a reler. Maior confusão me fez ainda, porque já tinha lido aquelas páginas, mas não reconhecia nada... então entendi, apenas julgara tê-las lido; no entanto, continuei pacientemente a percorrer as linhas, sorvendo as passagens até chegar de novo aquela cena de cama. Afinal, no dia anterior, só tinha passado vista em cima das letras e identificado as palavras, no verdadeiro sentido de ler não lera mesmo nada. A cena de cama contava um história bem diferente.

Durante minha primeira leitura, o sono e outros pensamentos misturaram-se com as palavras lidas e criaram uma outra perspectiva sobre o livro de Poe, e vou transcrever o texto, usando supressões e acréscimos meus que me levaram ao logro.


Uma noite (…) August e eu estávamos razoavelmente tocados. Como costumava fazer em casos destes, em vez de voltar para a casa preferia compartilhar a cama dele. Adormeceu muito tranquilamente sem dizer uma palavra sobre o seu assunto preferido. (…) eu ia justamente dormir quando ele acordou e blasfemou. (…) Não sei o que se apoderou de mim, mas logo que lhe ouvi as palavras, senti um arrepio de uma excitação, o maior ardor de prazer e achei que a sua ideia louca era uma das mais deliciosas e razoáveis do mundo.
Saltei da cama, contudo, numa espécie de demência, e disse-lhe que me sentia tão decidido (…) e pronto a dar todas as voltas do mundo com todos os August Barnard de Nantucret. Envergámos os nossos fatos [de Adão] – tinha lido Tchekov à tarde –, August pegara o leme, e eu instalara-me perto do mastro (…). Corríamos a direito com grande velocidade e nem eu nem outro havíamos (…) desamarrado o barco do cais. (…) virando os olhos para ele, logo me percebi de que (…) estava perto de uma forte agitação (…). A mão tremia-lhe tanto que mal podia segurar o leme (…). Nessa época eu não era muito forte em manobras e achei-me completamente à mercê da ciência [erótica] – metáfora de Pitigrilli ­– do meu amigo (…) contudo, sentia uma vergonha de deixar transparecer o mínimo receio. Todavia não pude suportar por mais tempo e falei a August na necessidade de voltarmos para a terra. (…) permaneceu um minuto sem me responder e disse: “daqui a bocado… temos tempo… em nossa casa… daqui a bocado”.


perspectiva de pássaro
Foi mais ou menos aqui que parei de ler, e mesmo assim transcrito o texto continua pueril, no sentido erótico, mas apesar da perspectiva do livro, a minha perspectiva mental levara-me a confundir as perspectivas e a ver tudo consoante essa minha perspectiva. Ou seja, é algo como isto que chamo de perspectiva errada, é errada, não porque seja má, mas porque não corresponde à realidade e muito menos ao que está à mostra, errada porque perspectivamos-lhe à luz dos nossos próprios desejos e ficamos com a razão obnubilada e iludimos o real.

Entretanto, uma má perspectiva não funciona assim, uma má perspectiva ou perspectiva má é do tipo Hitler ter a perspectiva de que assar todos os judeus faria do mundo um lugar melhor. Talvez debruce depois sobre o que é a má perspectiva. Aliás, como disse alguém de quem não me lembro o nome: não são as pessoas que não pensam bem as coisas que me preocupa, mas sim as que pensam bem as coisas más.
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