A Guiné-Bissau não tem uma
tradição de cinema muito bem construída, ou construída sequer, são parcos os
filmes guineenses, e o único realizador mais ou menos, ou talvez, conhecido é
Flora Gomes. Existem alguns filmes e uns pares de documentários que constituem
todo o volume do cinema guineense, e, não tenho a certeza, mas não perfazem
duas dezenas. E há já um bom tempo que não se fazia um filme com intenção de
ser cinema (não conta o último filme de Flora Gomes, Republica di Mininus, com Danny Glover – aliás, escrevi este artigo
há já ano e meio), tirando alguns vídeos amadores de teatro-fora-de-palco, com
câmaras estáticas, realizados aqui e além por alguns curiosos, os quais, apesar
da sua terrível ou ausente qualidade cinematográfica, fazem a delícia dos
meus compatriotas, por serem produtos com os quais se identificam. E é claro
que gosto de ver alguns deles, mas só porque têm um amigo meu como
protagonista.
Ok! É neste meio árido que surge
o filme Clara di Sabura, construído
com uma mão mais cuidada, porque aspirava a ser cinema, e por isso estou a
falar dele como cinema, usando o mesmo padrão de avaliação que uso para os filmes que vejo.
Clara di Sabura é um filme muito amador, adaptado de um poema pseudo-moralista
(eu disse pseudo, porque no poema o maior atributo de uma boa mulher é
encontrar um homem que a case) e o filme não foge do tema, mantém a
mesma linha construída pelo poema e faz um rol de discursos ocos e repetitivos,
e apesar de querer mostrar a importância que estudar e formar-se pode ter na vida
de uma mulher, não consegue esquivar-se de submetê-la (a mulher, é claro) a um
poder masculino (e olhem que nem sou feminista).
Eis a sinopse: Clara é uma
adolescente sem cabeça para os estudos, preferindo pôr-se bonita e usar a sua
beleza para se safar. E toda, mas toda a gente lhe admoesta, dizendo-lhe que
está errada, desprezando-a, tanto à sua frente como ao seu atrás (de maneira que lhe alcunham de Clara di Sabura –
traduzido em Clara que Gosta Apenas de Bela-Vida, do Bem Bom, da Facilidade, de Festanças, etc…), e toda essa gente advoga, no entanto, estar preocupada com o futuro da
Clara. E um dia (ou anos depois),
Clara é chamada para trabalhar numa empresa e não sabe ligar o computador.
Eu sei que a intenção do filme
era que fossem genuínas as admoestações que as pessoas faziam à Clara, mas como
diz o ditado considju dimas i inveja (demasiados
conselhos é inveja), por isso, o efeito que consegue é o oposto do pretendido,
o que vemos, após as duas primeiras pessoas terem acabado de falar da Clara (ou
com ela), é que ela está rodeada de pessoas invejosas, coscuvilheiras e cheias
de más-línguas, típico de lugares onde as pessoas não têm mais nada com que se
ocupar.
No entanto, se tirarmos todos esses
momentos de más-línguas, não resta nada em Clara
di Sabura, talvez apenas mais uns vinte minutos de quase nada, o que mostra
a grande falta de ambição do filme (entenda-se que não estou a dizer que o
realizador não tivesse sido ambicioso, mas o filme como resultado não é). A promoção
do filme é mais ambiciosa do que o próprio filme.
Um dos maiores problemas de Clara di Sabura é a sua unidade
temporal: simplesmente não existe. O filme começa com uma Clara adolescente que
estuda no ciclo e dorme com um professor para obter boas notas (e ninguém condena o professor), e avança para
uma Clara seduzida por um ministro (ainda adolescente?), ou algo assim, e não sabemos mais o que
acontece. No próximo segmento, dá-se a entender que já se passaram alguns
meses, pelo menos, e a seguir vemos que entre ela e o ministro parece que se
passaram apenas umas semanas e que tinham acabado de se conhecer, para logo a
seguir ela encontrar uma colega do ciclo que já tinha concluído um curso
superior, já trabalhava e já era casada, para percebermos que já se tinham
passado muitos anos, mas os actores não envelheceram. Não existe um tempo para
a história, porque ela está mal estruturada, o argumentista só quis falar mal
da Clara e por isso não ficou atento ao resto.
extracto do filme
o filme todo pode ser visto no youtube
Outros problemas de Clara di Sabura são a edição e a direcçao dos
actores e os próprios; quase todos eles amadores, o que não é nenhum problema, porém maus como tudo, nem mesmo o Mário (o amigo atrás referido) se safa (este a pescar para o filme um bocado do seu personagem de Barudjo – um personagem que interpreta num vídeo) ou a
Neia (esta última fazendo a sua especialidade teatral - chorar, babar-se e
lamentar-se – é a sua imagem de marca), com discursos intermináveis sobre o
valor de mulher, que praticanente se resume em saber cozinhar (talvez porque o homem se agarra pelo estômago). Os dialógos não são naturais, todos actuam como se estivessem a fazer teatro, num tipo de teatro também já ultrapassado, onde as frases são debitadas como poesias.
O que podia salvar Clara di Sabura era uma desenvolvimento
mais ambicioso, em vez de simplesmente falar mal da personagem. No poema pode funcionar,
mas no cinema não, porque a estrutura dos dois é diferente, um poema descreve, metaforiza,
sugere, abstracta-se, concretiza-se, usando para isso palavras, o cinema usa
imagem, por isso, tem de focar-se mais em mostrar do que descrever, e nisso o
filme falhou. Ah, também, a tradução e a legendagem são terríveis.
Talvez, este é o meu ponto de vista, se o filme se focasse em
vez de na Clara, nas pessoas que a rodeiam, já que quer fazer um retrato social, mostrando antes de mais a
maleita da nossa sociedade que, por não fazer nada, por não ter ocupações, concentra-se
mais a falar da vida dos outros, ao invés de focar-se na própria (o que depois se
revela num país onde falta acção e, portanto, mantém-se estagnado), promovendo uma certa reforma de pensamento, mostrando que é necessário cultivar outros valores; Ou então,
mostrar uma sociedade onde, por falta de oportunidades, as pessoas vêm-se
obrigadas a usar as armas de que dispõem para triunfar, no caso da Clara, a sua
beleza, e em vez de atacá-la simplesmente por esse motivo, talvez atacar os
ministros, os professores e os poderosos que fomentam essa prática; se o filme procurasse mesmo os verdadeiros males em vez de simplesmente falar mal das pobres e manietadas mulheres guineenses numa perspectiva machista a beirar a misoginia, talvez Clara di Sabura pudesse ter um estrutura séria.
Para fechar, digo, Clara di Sabura é um filme muito mau e
sem ambição, no entanto, louva-se a ambição dos que nele trabalharam. E,
prevendo já o ataque dos meus conterrâneos, digo: falar aqui do filme,
negativamente ou não, é uma publicidade que estou a fazer dele.