A banda desenhada é, injustamente ou não, considerada literatura menor (não sei dizer a minha opinião sobre isso, porque, em verdade, ainda não gastei dias a pensar no assunto). Talvez o facto de misturar palavras com imagens, e apresentar uma dinâmica diferente da literatura habitual é que o desclassifica no patamar literário, aliás, ela pertence a um grupo artístico diferente, a nona arte. E talvez por isso, muitos autores, destaco Alan Moore, escrevam novelas gráficas, para elevar o respeito ao seu trabalho no plano literário.
Porém, por vezes, essa consideração inferiorizada da banda desenhada como literatura, é, frequentemente, muito injusta, porque dependendo do autor, a banda desenhada consegue ser mais rica e literária que muitas pseudo-literaturas que andam por aí impressas entre duas capas e por vezes mais pobres que uma bula farmacêutica.
Todavia, este post, não pretende falar da banda desenhada em si, mas de um título da banda desenhada: a X-Factor da Marvel. É um assunto que chama mais atenção aos geeks e nerds, do que à gente comum, portanto… vamos em frente.
A Marvel tem sido chamada de pró-direitos humanos, porque nas suas páginas tem escrito sobre a liberdade, a diferença, a aceitação e outros tantos problemas sociais, inclusive o seu grupo mais icónico os X-Men, são um bando de mutantes que tentam sobreviver aos ataques por todos os lados, porque são diferentes. Porém, isso não quer dizer que a Marvel não seja preconceituosa e americanamente panfletária como os outros tantos títulos recentes americanos, por exemplo a recente mini-série Xenogénese, da X-men, é tão preconceituosamente racista que tira todo o gozo da leitura.
No entanto, hoje, talvez por ser mais adulto, ter lido e visto muita coisa, ou talvez porque os argumentistas e escritores tenham maior dificuldade em surpreender um leitor mais ou menos lido, as histórias do universo da BD desenhada têm vindo a sofrer. Ultimamente tenho lido mais a Marvel, e acho que única linha que permanece consistente é a do X-Factor.
Na X-Factor #217, fiquei fascinado com o tratamento que deram à história, houve um diálogo sobre as diferenças e a minoria entabulado entre um grupo de manifestante e J.J. Jameson (sim, conhecem-no do Homem-aranha, talvez não saibam que agora ele não é editor, mas o Presidente da Câmara de Nova Iorque), que, apesar dos lugares-comuns, arrebata. Por quê? Porque Jameson é um hipócrita que persegue o Homem-aranha por esse ser diferente e superior a ele; e porque Jameson incarna o governo americano, que apesar de falar em nome da liberdade é quem vota projectos, como a lei patriótica e toma as decisões que vincam mais as diferenças; a quem na minha terra atribuiríamos o título de sanguessuga, beija enquanto morde.
Porém, para não prolongar-me mais, deixo aqui algumas páginas (a tradução não é das melhores, por causa do meu limitado inglês):
Povo: América para os americanos!… Estrangeiros fora!... Precisamos proteger as nossas fronteiras!... Não precisamos de mais terroristas muçulmanos aqui!... Sim eles são tão maus como os mutantes.
Monet: A sério?… Eu sou muçulmana e sou mutante.
Povo: Já te ocorreu que a tua gente só leva tragédia e morte para onde quer que vá?
Monet: Qual gente? Mutantes ou muçulmanos?
Povo: Escolhe tu!… Sim, as pessoas morrem onde quer que a tua gente apareça.
Guido: A nossa gente? Deixem-me falar-vos da nossa gente. É claro que temos algumas ovelhas negras, pessoas que apenas querem matar os outros. Mas a maioria de nós são pessoas normais que querem uma vida normal. E gostamos dos que as pessoas más fazem tanto quanto vocês. Então como pensam que sentimos quando nos põem nesse grupo?
Monet: Ele tem razão, já é suficiente mau ser condenado por aquilo que és, imaginem ser odiado pelo que não é.
Povo: Não nos enganas! “Eu ouvi” [aspas minhas, as pessoas só ouvem e acreditam sem pensar] que todas os mutantes querem dominar o mundo, ainda que queiram ou não admiti-lo!... Os muçulmanos também! É o que manda os vossos textos sagrados! Vocês estão em guerra com o cristianismo!... E as vossas mesquitas são, na verdade, campos secretos de treinar terroristas…! O quê?
J. J. Jameson: E se elegerem um presidente católico ele vai ser uma marioneta do Vaticano.
J. J. Jameson: Pelo menos foi o que disseram em 1960 para que o povo não votasse em JFK. É claro que isso é uma visão extremista. Engraçado, pensem: extremistas de todos os tipos ganham mais atenção.
Povo: Olha a panela a dizer à chaleira que está tisnado.
J. J. Jameson: Eu não sou panela, puto, eu mexo na panela.
Povo: Olha, eu estou apenas farto das pessoas lutarem pelos direitos dos estrangeiros e não darem uma mínima para os verdadeiros cidadãos.
J. J. Jameson: Da maneira que a multidão te dá atenção, eu digo que estão farto das pessoas como tu dirigindo o debate.
Povo: As melhores ideias dirigem o debate, não as pessoas. Nota de rodapé: só queremos o nosso país de volta.
J. J. Jameson: Engraçado: continuo a ouvir isso de todos de ambos os lados [suponho que seja uma referência aos democratas e aos republicanos]: “queremos o nosso país de volta”. Onde é que foi [o país], se nenhum de vocês o tem? Adivinhem uma coisa: eu tenho-o.
J. J. Jameson: Eu e os meus grandes ancestrais brancos. Viemos aqui e tomamo-lo dos que estiveram cá antes. E logo depois de o tomarmos, raptámos pessoas da África para nos ajudarem a construi-lo. E agora estamos todos preocupados que o karma nos venha a morder o traseiro. Então temos de lutar contra porque de outra maneira daqui a cem anos, pode acontecer sermos aqueles a viver nas reservas e a morrer de varíola. Podemos fazer isso. Manter afastados todos aqueles de quem temos medo. Mandar os intrusos de volta a onde vieram… ou talvez, pô-los num campo de concentração com na segunda guerra mundial [América também tinha campos de concentração, só que ninguém fala disso – pelo menos foi o que li num livro de Pearl S. Buck, e no Focus de Arthur Miller], porque temos medo que sejam terroristas. Ou talvez… é uma ideia absurda, eu sei… mas talvez possamos parar de tratar a toda a gente como uns malditos inimigos.
Povo: Diz o gajo que odeia os super-heróis.
J. J. Jameson: Diz o gajo que acredita que as acções têm consequências, que há leis que deveriam proteger a todos… mesmo às pessoas de quem não gostamos… gentes de quem discordamos não são traidoras, e se elas são novas aqui talvez elas mereçam o tipo de desconto que não damos a outros. Agora, queres discutir os factos, situações e impactos na economia? Bora dançar.
Enfim, eis o discurso por si. E queria falar das suas linhas ou da reacção manifestada pelo povo, ou da própria sátira de J. J. J., porém receio que o post já seja longo o suficiente e acho os discursos bem explícitos para que cada um faça a sua leitura tanto os "supernacionalistas" como os "abolicionistas".