4 de novembro de 2021

NÃO É SOBRE NÓS

Recentemente participei num grupo de discussão, chamado campo de treino anticolonial, antirracista e antitransfóbico, no sentido de aprender com pessoas que desenvolvem essas práticas. Foi uma aprendizagem intensa que me levou a desconstruções, reconstruções e consolidações.

Depois de muitas partilhas e exercícios, fizemos um balanço do processo e, naturalmente, algumas fragilidades apareceram e choques e conflitos, porque é o mais óbvio quando se juntam pessoas de diferentes sensibilidades e experiências e vivências para discutirem assuntos sérios. Algures durante o balanço, apontamos dedos uns aos outros, porque alguém falhou neste ponto, alguém ofendeu naquele, e durante esses momentos todos, toda a gente a quem o dedo foi apontado, defendeu-se com algo como isto: “Peço desculpas se ofendi a alguém, isto é um processo e estou em aprendizagem”.

Foi-me apontado dedo porque eu disse que não sabia usar “linguagem neutra” e eu pensei, “deus!, durante toda a minha vida aprendi a falar dentro de determinados códigos, não é fácil para mim mudar de repente.  Não tenho intenção de ofender a ninguém com uso de pronomes generizados, e quando os uso não o faço nem para ofender, nem para agradar.” Estou em aprendizagem.

Eu achei que não era justo que alguém me apontasse dedo, só porque eu não sei usar linguagem neutra e estou certo, certérrimo, super certo, de que o não a saber usar não é para ofender a ninguém, e estou certo que durante muitos anos convivi com uma linguagem que não neutraliza e que é difícil mudar de um momento para outro, e que os meus “lapsos” de linguagem não eram direcionados a ninguém.  Não era justo para mim… pois, não era! Mas e quando faço eu o mesmo?

Extrapolei então o pensamento para além de mim mesmo. Como a questão da linguagem neutra não me afecta, pensei no racismo, e pensei em todas as pessoas que usam expressões racistas na linguagem. Tirando o An_desVentura e algumas outras pessoas, uma penca delas diz coisas racistas porque faz parte da sua normalidade, mas sem a intenção do ser. 

Não posso… querzer, posso, mas não devo levantar e apontar o dedo e chamar de racista a qualquer um que diga coisas como, por exemplo, “trabalhei como um preto”, ou pensar que o disse para me ofender a mim. Quando muito, se achar a linguagem problemática, devo ou posso tentar apontar isso à pessoa, sem fazer com que seja SOBRE MIM.

Algumas pessoas falam como falam porque não sabem diferente e não é fácil depois de andarmos anos a tentar aperfeiçoar um código de linguagem, ao alguém nos dizer que é errado mudarmos imediatamente, sem confrontos, sem sequelas e sem deslizes (deus!, há muita gente ainda contra o acordo ortográfico, que é mais inócuo e mais simples do que isto). Há todo um processo de luto por que temos que passar sempre que temos de mudar a nossa forma de pensar (negação, raiva, negociação, depressão e aceitação), por isso é natural encontrarmos e/ou fazermos resistências de opinião sempre.  

Se mesmo nós, que participamos no campo de treino e que temos pessoas a educar-nos e que nos relacionamos (e debatemos) constantemente com estas questões, erramos não intencionalmente, imaginem, por exemplo, alguém de sessenta anos sem um único amigo preto. Uma pessoa em Portugal que não tenha pretos ou não-brancos no seu círculo de convívio dificilmente problematizará questões raciais.

Enfim, resumo o assunto em: “as coisas podem estar relacionadas connosco, mas não é necessariamente sobre nós, a não ser que nos sejam diretamente direcionadas”. Sim, isso, NÃO É SOBRE NÓS.
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