5 de agosto de 2017

FESTIVAL DE CINEMA NA COVA DA MOURA

Não queria começar a falar de um evento cultural (ou de arte), relacionando-o com o racismo, mas, oh, está tão difícil fugir de fazer esse paralelo.

Uma lição básica sobre o jornalismo é: se um cão morder um homem é azar, mas se um homem morder um cão é notícia. Porém, se na Cova da Moura mesmo quando o cão morde uma galinha é notícia, como se explica o silêncio dos media sobre o festival do cinema que se realizou no bairro? Será que a Cova da Moura só pode e só deve ser notícia quando acontece algum ato de violência no bairro?

A 6ª Edição da Kova M Festival e a 2ª da Mostra Internacional de Cinema na Cova, organizadas pela Associação Moinho da Juventude e Nêga Filmes e Producões, aconteceram na semana passada, de 26 a 29 de Julho, mas não se ouviu um pio sobre o assunto nos media (com excepção da RFI)… sim, esses mesmos que semanas antes estavam como cães esfomeados na Cova de Moura, por um motivo bastante lamentável.

Uma comunidade trabalha e esforça-se para se livrar dos estigmas que lhe são colados, mas o que se vê é que os estigmatizadores parecem não querer que isso aconteça, porém… a cultura acontece, sob ou fora das objetivas dos media. E não deixou de acontecer na Cova de Moura.

Durante quatro dias foram dezenas de filmes vindos de diversas partes do mundo, diferentes temáticas e diferentes ritmos. O ponto comum de todos esses filmes é o preto, não o africano, mas o preto (eu explico mais tarde), e esse ponto comum é também espetacularmente o ponto de distonia entre eles. 

Nos filmes vindos das Américas e da Europa vê-se a luta do preto tentado afirmar-se como ser, como voz, como identidade e como entidade. Nos filmes vindos da África (tirando um, cujo o tema é sobre o clarear da pele e alisar dos cabelos) o preto é apenas preto, um ser com voz e com identidade, os problemas e os anseios são outros. O que me faz lembrar de responder ao Chico César: Chico, meu caro, ser negão no Senegal não é legal, pois nem sequer é um problema, porque lá negão não é discriminado como elemento estranho.

Agora a explicação para a linha em cima: muitas pessoas pensam que preto e africano são sinónimos, mas estão completamente errados, porque há muitos europeus e americanos que são pretos, mas não são africanos, não conhecem a África sequer (a não ser que a África seja uma questão genética e não geográfica). Da mesma maneira, há muitos brancos africanos. Por isso, eu evito correlações automáticas entre preto e africano, e por isso, não gosto quando os pretos americanos são chamados de afro-americanos só porque são pretos, e conheço um afro-americano de verdade, mas ninguém o chamaria desse jeito porque o gajo é branco.

Bem, esta tergiversação é que me fez dizer a frase com que comecei este artigo, sabia que iria acontecer, que iria desviar-me do tema principal. Mas para fechar a parte de racismo, quero dizer, o silêncio mediático sobre os festivais na Cova da Moura, pode ser assumido também como um ato de racismo.

E aproveito também para criticar os mais fervorosos guerreiros africanistas com quem converso: vocês falam das culturas africana e preta, da necessidade da sua afirmação, mas quando acontece um evento cultural, como este, não aparecem.


A 2ª Mostra Internacional de Cinema na Cova reuniu um acervo muito interessante, como já tinha dito, e também pessoas interessantes, criando uma dinâmica bastante interessante entre os moradores da Cova da Moura e as pessoas de fora. A minha última sentença é um enormérrimo agradecimento às organizadoras. 


Obs: As fotos são de Vania Brayner.
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